ANTÓNIO CARVALHO O público passa, pára, olha e
fica por ali, espantado: o caso não é para menos - em
pleno centro da cidade de Santarém, no Largo Cândido
dos Reis, duas valas abertas mostram esqueletos. Para
os habitantes da cidade, isto é insólito; para o mundo
dos arqueólogos e também dos historiadores, isto é uma
festa: um simples acaso permitiu encontrar o que se
procurava há quase um século, ou seja, a localização
de um grande cemitério islâmico nesta cidade de tantas
tradições muçulmanas, desde o século VIII até ao
século XVI.
Tudo aconteceu na terça-feira da passada semana,
quando se procedia à abertura de valas para o
saneamento básico do Largo Cândido dos Reis, onde vai
ser criada uma rotunda oval. Subitamente, apareceram
dois pés de um esqueleto visivelmente muito antigo. De
acordo com as normas estabelecidas, foi imediatamente
chamado o arqueólogo de serviço, António Matias. Este
ficou surpreendido por ver que um dos pés, o esquerdo,
se sobrepunha ao direito - era um forte indício de que
se podia tratar dos restos de um muçulmano. As
escavações continuaram, revelando a presença de um
pequeno cemitério, com cerca de três dezenas de
corpos, em sepulturas escavadas na rocha, devidamente
orientados à maneira muçulmana.
Por uma singular coincidência, António Matias tinha
escrito um dos textos do catálogo da exposição
«Santarém e o Magrebe», agora patente na Igreja de São
João de Alporão. E nesse texto, Voltados para a
Caaba -mundo da morte e as práticas funerárias
islâmicas: o caso de Shantarín, o arqueólogo, que
explicava todos os detalhes de um enterramento
muçulmano (permitindo a sua identificação), referia o
«completo desconhecimento da localização da necrópole
islâmica» de Santarém. E eis que, de repente, as
escavações vinham revelar onde se encontrava a tal
necrópole...
Até quarta-feira já tinham sido encontradas 45
sepulturas, todas elas com enterramentos iguais,
orientados para Meca, homens e mulheres, jovens e
crianças. Em alguns casos, descobriram-se
enter-ramentos a 40 centímetros do alcatrão... E como
a extensão é grande (cerca de 3400 metros quadrados) e
os poucos metros escavados já deram estes resultados,
agora António Matias não tem dúvidas: devemos estar
perante «a maior necrópole islâmica do País». O que
constitui «uma oportunidade única de conhecer o povo
islâmico de Santarém».
Para já, é necessário conciliar as obras em curso com
a preservação deste património, uma preocupação
essencial do Município. À medida que aparecem os
enter-ramentos, são registados e fotografados; depois,
serão escrupulosamente retirados, recolhendo-se o
máximo de informações, sendo levados para as reservas
arqueológicas do Museu Municipal, onde estes materiais
serão depois tratados, submetidos a uma análise
paleobiológica.
Segundo António Matias, a simples observação das
inserções musculares revelou que estes indivíduos
«caminhavam muito». Ora acontece que até agora se
julgava que a população muçulmana da antiga Shantarín
se concentrava sobretudo na Ribeira de Santarém. A
descoberta desta necrópole em pleno centro da cidade,
juntamente com outros achados já feitos, de silos de
cereais, vem «baralhar» os dados que se julgavam
adquiridos: «Provavelmente saíam daqui para trabalhar
nas lezírias e aqui voltavam para armazenar os cereais
nos silos. Aqui viviam e aqui morriam.» E aqui tinham
igualmente a sua mesquita «aljama», localizada
provavelmente na zona onde se ergue a igreja de
Marvila, local de trânsito considerável - talvez
futuras obras de saneamento venham a revelar a sua
localização exacta.
O Largo Cândido dos Reis era outrora uma encosta com
mais três ou quatro metros do que a cota actual.
«Voltada a Leste, era um local propício para a
reflexão e certamente um óptimo local para a oração.»
Ainda é cedo para se saber a verdadeira extensão da
necrópole ali encontrada. É preciso fazer sondagens,
com escavações profundas, que poderão trazer mais
dados ou reconfirmar os que já existem. «As
coincidências são muitas, estamos no caminho certo.»