A Barretina do Colégio
Militar
Pedro Soares Branco
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Mais do que um simples artigo
do uniforme, a barretina constitui um verdadeiro
símbolo do Colégio Militar. No entanto,
o conhecimento da sua história é profundamente
ensombrado pelo facto de quase nenhum dos exemplares
mais antigos ter sobrevivido. Também a documentação
sobre este assunto é difícil de obter,
embora a magnífica "História
do Colégio Militar", recentemente publicada,
tenha iluminado decisivamente muitos dos aspectos
mais obscuros. |
Apesar de muitas coberturas
de cabeça terem sido usadas desde a fundação
do Colégio Militar, a actual barretina deriva
em minha opinião dos modelos usados a partir
de 1866. Com efeito, é nessa altura que pela
primeira vez se reúnem os três elementos
que ainda hoje caracterizam a barretina: as iniciais
do colégio em letras góticas, a copa de
pano da cor da farda (já com vivos, embora não
encarnados como actualmente) e o penacho em lã
de cor verde. A evolução da barretina
desde 1866 até ao presente é apresentada
no quadro 1.
Quadro 1
Modelo
|
Copa
|
Vivos
|
Iniciais
|
Coroa
|
Laço
|
Penacho
|
1866
|
Pano
|
Verdes
|
R.C.M.
|
Real
|
Azul e branco
|
Lã verde
|
1870
|
Feltro
|
-
|
R.C.M.
|
Real
|
Azul e branco
|
Penas encarnadas
e verdes
|
1871
|
Feltro
|
-
|
R.C.M.
|
Real
|
Azul e branco
|
Lã (?)
verde
|
1872
|
Pano
|
Encarnados
|
R.C.M.
|
Real
|
Azul e branco
|
Lã verde
|
1910
|
Pano
|
Encarnados
|
C.M.
|
-
|
-
|
Lã verde
|
1912
|
Pano
|
Encarnados
|
C.M.
|
-
|
Encarnado e verde
|
Lã verde
|
1950
|
Pano
|
Encarnados
|
C.M.
|
Mural
|
Encarnado e verde
|
Lã verde
|
Quadro 1: principais características das barretinas
do Colégio Militar, desde 1866 à actualidade.
Alguns dos modelos referidos nunca foram regulamentados
como tal, embora tenham existido na prática.
Nos modelos de 1872, 1912 e 1950, a versão original
diferiu das versões usadas subsequentemente.
A barretina aprovada por portaria de
5 de Setembro de 1866 do Ministério da Guerra,
veio substituir o barrete usado a partir de 1861. Esta
barretina era de pano cor de pinhão, avivada
de verde e muito possivelmente dotada de penacho de
lã da mesma cor, que embora não seja mencionado
na referida portaria, havia sido preconizado no ofício
que a originou, dirigido pelo Director do Colégio,
General Augusto Xavier Palmeirim, ao Ministro da Guerra.
Desta barretina não conheço qualquer exemplar
ou registo fotográfico.

Figura 1:
Barretina de Oficial de caçadores, modelo
de 1868.
Esta cobertura
de inspiração francesa, "à
Napoleão III", terá por sua
vez inspirado a barretina adoptada para os alunos
do Real Colégio Militar em 1870. A sua
forma obrigava à utilização
de diversas peças de feltro, cosidas
entre si, para revestir a copa. As costuras
eram depois ocultadas por tiras de couro, dispostas
em "V" de cada um dos lados.
(Colecção particular)
|
A
barretina de 1870, que veio substituir a de 1866,
foi adoptada sob influência do Coronel (então
Major) António José da Cunha Salgado.
Provavelmente inspirada nas barretinas adoptadas
para o Exército em 1868 (figura 1), era confeccionada
em feltro, sendo a sua característica mais
peculiar o penacho de penas encarnadas e verdes,
a lembrar o modelo adoptado para as barretinas do
Asilo dos filhos dos soldados em 1863. Desta barretina
conheço uma única fotografia, que
em tempos publiquei no livro "Portugal Militar,
1850-1918" e se encontra reproduzida na "História
do Colégio Militar". O penacho desta
barretina foi modificado no início do ano
lectivo de 1871/1872, passando a ser de cor verde.
Não me é possível afirmar se
foram mantidas as penas ou readoptada a lã
para a sua confecção, mas esta última
hipótese parece-me francamente mais provável. |

Figura 2:
Barretina do Real Colégio Militar, modelo
de 1872.
Este exemplar corresponde
a uma versão intermédia do modelo
de 1872. As aplicações metálicas
são douradas por electrólise e o
laço nacional "em relevo de seda azul
e branca" é formado por duas pequenas
calotes metálicas revestidas de seda, sobrepostas
e fixadas por um botão metálico.
O penacho, que neste exemplar é de lã
aparada, passaria mais tarde a ser confeccionado
em lã não aparada, talvez por influência
dos penachos adoptados para o Exército
em 1892 e 1902.
(Colecção
particular)
|
Pouco
tempo depois, na Ordem do Colégio nº
12, de 12 de Janeiro de 1872, é referida
uma nova barretina, "de pano igual ao da farda,
tampo liso, avivada de encarnado, laço de
seda azul e branco seguro com botão dourado,
coroa colocada entre o laço e as letras RCM",
com "penacho de lã verde". Este
modelo de barretina, que seria usado até
à implantação da república,
sofreu modificações ao longo dos anos.
Os exemplares mais antigos teriam aplicações
metálicas douradas a fogo (processo só
abandonado em meados da década de 80 do século
XIX) e penacho de lã aparada. O laço
nacional seria "em relevo de seda" ou
talvez em retrós, do modelo adoptado para
os oficiais do Exército em 1868. A evolução
da barretina do modelo de 1872, que se traduziu
em alterações introduzidas no seu
processo de fabrico (figura 2), culminaria naquela
que viria a ser a sua versão final, regulamentada
em 1906. |
A implantação da república
levou à proibição, por decreto
de 8 de Outubro de 1910, do uso da coroa real nos artigos
de uniforme. Tal facto levou à modificação
das barretinas em uso, que foram despojadas do laço
nacional azul e branco, da coroa real e da letra "R"
que integrava as iniciais do Real Colégio Militar.
Por uma questão estética, a letra "C"
foi passada para o lugar anteriormente ocupado pela
letra "R", deixando livre (e perfurado) o
espaço central. Tive em tempos oportunidade de
observar uma destas barretinas, a única que encontrei
até hoje e à qual perdi posteriormente
o rasto.

Figura 3:
Barretina do Colégio Militar, modelo de
1912.
Este exemplar apresenta
penacho de lã não aparada e aplicações
metálicas douradas. O laço nacional
"em relevo de seda" encarnada e verde
adoptado em 1912 foi rapidamente substituído
- talvez logo em 1913 - pelo retrós. Um
aspecto muito curioso reside na cor preta do pano
da copa, em vez da cor de pinhão regulamentar.
O francalete encontra-se ausente.
(Colecção
particular)
|
Por
decreto de 11 de Setembro de 1912 foi adoptada uma
nova barretina (figura 3), com a mesma forma da
anterior e cujas diferenças mais notórias
consistiam precisamente na ausência da coroa
real e da letra "R". O laço nacional
passou naturalmente a ser encarnado e verde, as
novas cores nacionais, mas manteve o seu característico
fabrico "em relevo de seda". Esta versão
original do modelo de 1912 teve provavelmente uma
existência fugaz, uma vez que o laço
nacional "em relevo de seda" parece ter
sido rapidamente substituído pelo laço
nacional em retrós encarnado e verde de modelo
semelhante ao adoptado para os oficiais do Exército
por decreto de 23 de Agosto de 1913. |
Embora se possa afirmar que o modelo
actualmente em uso é ainda o de 1912, tal não
me parece inteiramente aceitável. Com efeito,
mesmo ignorando a pequena alteração do
laço nacional, a barretina do Colégio
Militar transformou-se radicalmente pela adopção
da coroa mural. Este símbolo heráldico,
inspirado na coroa atribuída ao primeiro legionário
romano a pisar uma muralha inimiga, foi curiosamente
adoptado por alturas da "conquista" de Madrid
pelo batalhão colegial, em Junho de 1950. A esta
"nova" barretina bem poderia corresponder
a designação, nunca oficializada, de "modelo
de 1950".
O modelo adoptado em 1950 (figura 4) é aquele
que de facto perdura até hoje; no entanto, foi
sofrendo diversas modificações ao longo
dos anos, entre as quais a substituição
do couro por materiais sintéticos (figura 5).
O processo de confecção da pala foi também
modificado; talvez mesmo antes de 1950, esta deixou
de ser cortada numa só peça de couro,
passando a ser menos espessa, dotada de uma virola de
remate e adquirindo por vezes uma certa tendência
para revirar para cima. Embora esta tendência,
que se acentuou durante os últimos anos, pareça
actualmente ultrapassada, a forma da copa encontra-se
hoje profundamente adulterada (quadro 2). A aparência
da barretina continua também a sofrer com a exagerada
dimensão e alteração da cor do
penacho, que é desde há alguns anos duma
tonalidade de verde muito mais escura do que o tradicional
verde-salsa (figuras 6, 7 e 8).
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Figura 4: Barretina do
Colégio Militar, modelo de 1950.
Este exemplar,
provavelmente fabricado na década de
1950, apresenta pala revestida a couro e debruada
com virola do mesmo material. As aplicações
metálicas - incluindo a coroa mural -
são de metal amarelo. Apesar de cinquentenário,
este exemplar apresenta uma forma adulterada
com pala revirada para cima. Esta prática
infeliz viria mais tarde a adquirir grande expressão.
(Colecção
particular)
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Figura 5: Barretina do
Colégio Militar, modelo de 1950.
Neste exemplar,
fabricado durante a década de 1980, o
couro foi substituído por material sintético
e a copa revestida por tecido pouco adequado
para o efeito. Note-se a perfeita horizontalidade
da pala e a elegante (embora não regulamentar)
inclinação do penacho para a frente.
Note-se ainda a alteração da cor
do tecido provocada pelas repetidas limpezas
das aplicações de metal amarelo.
(Colecção
particular)
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Figura 6: Barretina do
Colégio Militar, modelo de 1950.
Adquirida nas OGFE
em Março de 2004, este exemplar representa
a versão actual da barretina do Colégio
Militar. A pala readquiriu a sua posição
horizontal (neste caso vai mesmo ao ponto de
revirar quase imperceptivelmente para baixo)
e as aplicações metálicas
voltaram (em boa hora!) a ser douradas. O penacho,
porém, mantém-se demasiado grande
e escuro, o pano da copa é pouco adequado
e o laço nacional poderia ser mais elegante.
(Colecção
particular)
|
Figura 7: A mesma barretina,
observada de perfil.
Note-se a profunda
adulteração da forma, quando comparada
com o modelo de 1872: a porção
anterior da copa inclina ligeiramente para trás,
quando devia inclinar para a frente. A porção
posterior devia ser mais inclinada e o tampo,
que devia também inclinar para a frente,
é praticamente horizontal. Embora o fabrico
das OGFE seja de excelente qualidade, a falta
dum modelo adequado é mais do que evidente.
Algumas modificações, que não
seriam difíceis, permitiriam recuperar
na íntegra a aparência tradicional
da barretina.
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Figura 8: Penachos de
barretinas.
Da esquerda para
a direita: penacho de lã aparada do modelo
de 1872 e penachos de lã não aparada
dos modelos de 1912 e 1950 (versão original,
intermédia e actual). Notem-se as diferenças
de dimensão e cor ocorridas ao longo
dos anos.
|
|
Quadro 2
Ângulo com
o plano horizontal (em graus) |
1872
|
1912
|
1950
|
Face anterior da copa |
85
|
85
|
95
|
Face posterior da copa |
45
|
45
|
40
|
Tampo |
15
|
15
|
<5
|
Quadro 2: evolução da forma
da barretina, através de medições
realizadas em exemplares originais de 1872, 1912 e numa
versão actual (Março de 2004) do modelo
de 1950, fabricada nas OGFE. Note-se a semelhança
entre os modelos de 1872 e 1912 e a adulteração
da forma actual da barretina.
Não gostaria de
terminar sem exprimir os meus agradecimentos à
Associação dos Antigos Alunos do Colégio
Militar, na pessoa do Sr. Engenheiro Mário Falcão,
pelo honroso convite para a elaboração
deste texto, cuja versão original foi publicada
na revista daquela associação, ao Sr.
Coronel Costa Matos, pelas preciosas informações
fornecidas, em especial quanto à data de introdução
da coroa mural, ao Sr. Major Carlos Fernandes, um velho
amigo, pelas facilidades concedidas junto das OGFE e
ao Sr. Dr. Jaime Regalado, habitual companheiro destas
"lides", pelas fotografias que ilustram estas
linhas.
Bibliografia:
Fontes Manuscritas:
Matos, José Alberto da Costa: Actual uniforme
dos alunos - sugestões para a melhoria da sua
imagem e contributo para a definição das
normas e padrões destinados à sua confecção.
Informação/Proposta nº 12/CM, 20
de Julho de 2002.
Fontes Impressas:
Branco, Pedro Soares: Coberturas Militares Portuguesas,
1740-1918. Edições Inapa, 2000.
Branco, Pedro Soares: Portugal Militar, 1850-1918. Edições
Inapa, 2003.
Matos, José Alberto da Costa: História
do Colégio Militar. Estado-Maior do Exército
(Portugal), 2003.
Shan, Stephen; Delperier, Louis: French Army 1870-71.
Franco-Prussian War. 1 - Imperial Troops. Osprey, 1991.
Publicações periódicas:
Colecção das Ordens do Exército
do Anno de 1868 (1ª Série). Imprensa Nacional,
Lisboa, 1869.
Colecção das Ordens do Exército
do Anno de 1892 (1ª Série). Edição
da Revista Militar, 1892.
Colecção das Ordens do Exército
do Anno de 1902 (1ª Série). Imprensa Nacional,
Lisboa, 1902.
Colecção das Ordens do Exército
do Anno de 1906 (1ª Série). Imprensa Nacional,
Lisboa, 1906.
Colecção das Ordens do Exército
do Anno de 1910 (1ª Série) de 13 de Outubro
a 17 de Dezembro. Imprensa Nacional, Lisboa, 1911.
Colecção das Ordens do Exército
do Ano de 1912 (1ª Série). Imprensa Nacional,
Lisboa, 1913.
Colecção das Ordens do Exército
do Ano de 1913 (1ª Série). Imprensa Nacional,
Lisboa, 1914.
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