A Conservação do
Uniforme Militar
Pedro Soares Branco (1)
Apesar do grande
interesse que suscita na maioria dos países
desenvolvidos, a uniformologia não tem sido, em
Portugal, motivo de grandes atenções. E, no entanto, o
uniforme é uma componente indissociável da história
militar, de grande importância para o seu estudo e
compreensão. À importância histórica do uniforme
associa-se frequentemente a importância estética, que o
torna motivo de grande atracção e leva a maioria dos
grandes museus militares do mundo a darem grande
destaque aos uniformes. Um exemplo paradigmático é o do
Musée de l’Armée, em Paris, cujas deslumbrantes
colecções exercem sobre o visitante um efeito
absolutamente esmagador. De tudo aí se encontra, desde o
esplendoroso uniforme que Napoleão Bonaparte envergou em
Marengo até ao comovente uniforme de um militar francês,
caído na Grande Guerra, que se conserva empapado com a
lama das trincheiras onde combateu e com o sangue que
derramou ao morrer.
Em
Portugal, por motivos que não cabe aqui aprofundar, a
uniformologia desligou-se quase completamente do objecto
real. Os trabalhos publicados, aliás muito escassos,
sobre uniformes militares portugueses, são geralmente
colectâneas mais ou menos estéreis dos textos e
ilustrações dos planos de uniformes. Trabalhos que se
pretendem de fundo conseguem a proeza verdadeiramente
extraordinária de não incluir, ao longo de centenas de
páginas, a imagem dum único artigo de uniforme. Por
força deste divórcio entre a teoria e a prática, muitos
uniformologistas acabam por se tornar incapazes de
analisar os objectos reais, cometendo erros de
classificação gravíssimos, incompreensivelmente aceites
e divulgados em publicações nacionais e internacionais.
Para que esta situação não se perpetue, causando danos
ainda maiores, é necessário que os uniformologistas
abandonem as suas “torres de marfim” e se dediquem aos
objectos ainda existentes… e não apenas a textos e
ilustrações.
Porquê, então, conservar? Sem dúvida, pelo interesse
histórico: para preservar a nossa memória colectiva e
poder deixá-la às próximas gerações. Mas também pelo
interesse estético (figura 1), pois a beleza dos
uniformes portugueses, que rivaliza com a dos seus
congéneres europeus, merece ser conhecida e divulgada.
Conservar os uniformes permite também “ler melhor” a
legislação, apreciando as disparidades entre o que foi
legislado e o que efectivamente se utilizou e percebendo
as diferenças atribuíveis à qualidade de fabrico (figura
2). Se a conservação é importante face a textos
ilustrados (figura 3), essa importância torna-se
decisiva quando o texto não contém ilustrações. Nesses
casos (que são muitos!), apenas a confrontação entre o
texto e o objecto permite a compreensão global de ambos
(figura 4). A preservação duma adequada visão de
conjunto depende também, largamente, da preservação dos
objectos: tome-se, por exemplo, uma espada. Se tiver
ainda o seu talim e o seu fiador, a identificação destes
objectos poderá ser fácil (figura 5); separe-se o
conjunto e a identificação poderá tornar-se impossível.
Preservar os objectos permite, em suma, sistematizar e
comparar (figura 6).
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Figura 1: ferragens pertencentes a um uniforme
de oficial de voluntários realistas. Em cobre
dourado e prata, destinavam-se a ornamentar uma
cartucheira, entretanto desaparecida. |
Figura 2:
emblemas de barrete de oficial de engenharia,
modelo de 1885. Note-se a diferença entre os
emblemas regulamentares, bordados a ouro, e a
versão mais económica, de metal sobre veludo. |
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Figura 3:
ferragens do talim de oficial general, modelo de
1806. Note-se as semelhanças (e também as
diferenças!), entre o regulamento e o objecto
real. |
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Figura 4:
charlateiras de oficial general, modelo de 1857.
Neste caso, o regulamento publicado em ordem do
exército, não foi acompanhado por qualquer
gravura; como se faria a investigação, se todos
os exemplares desaparecessem?
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Figura 5:
espada modelo 1852 para oficial empregado no
estado maior do exército, acompanhada do
respectivo talim e fiador. |
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Figura 6: botões
usados pelo exército e armada de Portugal entre
1885 e 1910: a comparação entre sucessivos
modelos é facilitada pelo acesso aos objectos,
que permitem também, ao contrário dos planos, a
identificação dos fabricantes. |
Do “porquê conservar?” decorre naturalmente
a questão de “como conservar?”. Um uniforme é, antes de
mais, um somatório de objectos; mas é também,
simultaneamente, um somatório de materiais. Este
somatório é por vezes muito complexo e heterogéneo,
levando a enormes problemas de conservação: são
diferentes os cuidados a ter com materiais de origem
animal (couro, crina, lã, seda…), vegetal (linho,
algodão…) ou mineral (ouro, prata, cobre…). Desta forma,
a conservação dos artigos de uniforme tem sempre que ser
ponderada caso a caso, sem nunca esquecer que a própria
exposição, sobretudo em regime permanente, poderá
acarretar danos. Sem regras definidas, existem todavia
alguns princípios gerais que se deverão ter em conta:
todos os objectos devem ser inventariados (e se
necessário re-inventariados!). O seu manuseamento deve
ser reduzido ao mínimo indispensável e ser realizado com
luvas adequadas, que deverão estar limpas. Os objectos,
que nunca deverão ser separados das suas caixas ou
estojos, deverão ser expostos ou armazenados em
ambientes de luminosidade, temperatura e humidade
controladas.
Toda e qualquer intervenção deve ser
cuidadosamente ponderada e adequadamente registada:
conservar não significa necessariamente restaurar e
restaurar não significa seguramente apagar a memória.
São preferíveis objectos danificados ou incompletos, mas
impregnados de autenticidade, a “vítimas” de restauros
intempestivos ou intervenções danosas, como a limpeza
inadequada (particularmente de metais dourados ou
prateados, em que a cor original é destruída pela
“limpeza”) ou a substituição de materiais de época por
“sucedâneos” desajustados. A conservação e o restauro
devem ser cuidadosamente ponderados e confiados a
técnicos com habilitações adequadas. Embora
indispensáveis, os conhecimentos gerais sobre restauro
não são suficientes; a conservação do uniforme militar
necessita de conhecimentos específicos e é
frequentemente interdisciplinar, com a concorrência de
especialistas nos diferentes materiais a tratar. Só com
o esforço de todos, individual e colectivamente, será
possível salvar o que resta (e é, infelizmente, muito
pouco…) do riquíssimo património uniformológico de
Portugal.
(1) - Médico.
Membro da Academia Nacional de Belas Artes
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