1821-1822
MINHA IRM
D. MARIA DE ARAJO BELTRO
TRIBUTO DE MUITA AFEIO
1. de julho de 1921
Washington, D.C.
3536, 13th Street, N.W.
CAPTULO I
O REGRESSO DE DOM JOO VI PARA LISBOA
CAUSAS E EFEITOS DA REVOLUO
PORTUGUESA DE 1820
Tem-se dito da independncia do Brasil
que foi um desquite amigvel entre os reinos unidos. No h,
porm, desquite perfeitamente amigvel: precedem-no sempre
incompatibilidades, rusgas, desavenas. Pode no ocorrer
propriamente violncia. Foi o que se deu nesse caso: a
separao s teve que arcar com a resistncia do general
Madeira na Bahia, depressa vencida. O mais consistiu em
amuos, ameaas e ajustes de interesses. Sobreviveu,
entretanto, um como que ressentimento entre as duas partes
que, querendo simular indiferena, de fato caram num
alheiamento, o qual, aps durar bastante tempo, se foi
progressivamente desvanecendo, j nos nossos dias, para dar
lugar a uma cordialidade necessria e possivelmente fecunda.
A independncia, tal como se operou, teve
alis o carter de uma transao entre o elemento nacional
mais avanado, que preferiria substituir a velha supremacia
portuguesa por um regime republicano segundo o adotado nas
outras antigas colnias americanas, por esse tempo
emancipadas, e o elemento reacionrio, que era o lusitano,
contrrio a um desfecho equivalente, no seu entender, a uma
felonia da primitiva possesso e a um desastre financeiro e
econmico da outrora metrpole. A referida transao
estabeleceu-se sobre a base da permanncia da dinastia de
Bragana, personificada no seu rebento capital, a frente de
um imprio constitucional e democrtico, cujo soberano se
dizia proclamado "pela graa de Deus e pela unnime
aclamao dos povos", a um tempo ungido do Senhor e
escolhido pela vontade popular.
Impossvel seria, chegadas as coisas a
certo ponto, continuarem por mais tempo como estavam: disto
se achavam plenamente convencidos os que sobre elas
meditavam e mais persuadido do que ningum o prprio Dom
Joo VI. No ddalo das suas hesitaes buscava ele a soluo
mais consentnea com os interesses da monarquia dos seus
maiores, que debaixo do seu cetro se ia cindir, o menos
positivamente, o mais nominalmente que na sua vontade
pudesse ser, afim de que se no perdessem as eventuais
recprocas simpatias e fosse at praticvel algum dia a
reunio das duas coroas, com a qual Dom Pedro havia de
realmente sonhar.
A psicologia do rei no era complicada,
mas eram complicados os seus processos psicolgicos, porque
provinham de vacilaes filhas do seu raciocnio inteligente
e obedeciam no s a mveis ntimos, que ele tinha o hbito
de dissimular, como tambm a presses externas que
alternadamente com aqueles agiam sobre a sua vontade. "Il a
autant de finesse dans l'esprit que de fausset dans le
caractre" - escrevia sobre Dom Joo VI a Metternich
(1) o baro de Sturmer, chegado ao Rio de Janeiro a 23
de dezembro de 1820 e que enxergara depressa e argutamente a
situao.
No entender desse diplomata, o conde de
Palmela, seu companheiro de viagem pois que, tendo-o
encontrado desembarcado em Gibraltar por motivo de
desconcerto no paquete que o levava de Lisboa ao Brasil e
que ali tivera de arribar, o ministro da ustria
oferecera-lhe transporte a bordo da corveta de guerra
Carolina, estivera perdendo seu tempo em querer dizer as
verdades ao rei, acerca da revoluo constitucional que
fermentava em Portugal. O rei s fazia o que lhe convinha, e
o que lhe convinha na ocasio era no fazer coisa alguma.
Entretanto, no estava mais nas mos do
monarca o garantir de algum modo a tranqilidade nacional
sem empreender srias reformas. Os outros tinham tambm os
seus mveis a atuarem como impulsos. A antecipada aprovao,
por exemplo, da constituio que as Cortes de Lisboa viessem
a elaborar e que teria seguramente por modelo a constituio
espanhola de 1812, fora imposta a Dom Joo VI por agitadores
de quartel e de rua que para tanto amotinaram tropa e
populaa, em oposio ao projeto mais prudentemente aventado
de redigirem no Rio de Janeiro, com destino ao Brasil, uma
lei orgnica particular, de acordo com as condies e
interesses do reino americano, os procuradores das cmaras
da sua capital e cidades de provncias.
primeira vista traduziu o
pronunciamento o despeito dos partidrios da metrpole
lutando para recuperar seu prestgio: por trs destes havia
contudo os republicanos das lojas manicas, ansiosos por
verem o rei de barra fora porque nele divisavam, e com
razo, o principal obstculo independncia de acordo com
os ideais da grande revoluo. E tanto os adivinhava Dom
Joo VI, que no partiu afinal sem deixar o filho de
sentinela aos acontecimentos, alvitre adotado aps uma crise
prolongada de dvidas, pois que seu desejo muito ardente
seria ficar em So Cristvo ainda que Portugal se tornasse
constitucional. Um constitucionalismo distncia no
humilhava assim tanto e o reino europeu carecia
absolutamente do reino americano. O Brasil - acreditava ou
antes fingia acreditar o astuto monarca- j se achava afeito
ao seu paternalismo: deix-lo entregue ao herdeiro da Coroa,
moo ambicioso e estouvado como ao prprio pai se afigurava,
era facultar uma transformao radical como a que se
verificou.
Se o regresso de Dom Joo VI para
Portugal, efetuado em abril de 1821, no fora absolutamente
do agrado real, tampouco o fora do da maioria dos seus
sditos transatlnticos. Apenas embaraava assaz aos
facciosos na execuo dos seu planos a presena no pas
da famlia real. Os facciosos eram pura e
simplesmente em bom nmero os constitucionais, mas Sturmer
no fazia distino entre eles e os contagiados do mal
democrtico, adeptos das idias republicanas "que tout
habitant du Nouveau Monde nourrit au fond de son coeur" e
que escandalizavam o representante austraco. O
descontentamento era geral antes mesmo da retirada da corte.
Alm da agitao produzida nos espritos pelo choque das
doutrinas, havia que notar o pssimo efeito por fim causado
pela venalidade de homens em evidncia e pelos abusos na
administrao. O prncipe herdeiro, cheio de ardor poltico,
andava de corao com os constitucionais, mesmo porque era a
esse tempo Dom Pedro portugus na alma, da mesma forma que
Dom Joo VI se tornara brasileiro. No dizer de Sturmer(2),
"il gmissait de l'abandon ou on laisse le pays qui l'a vu
naitre" e chegava a mostrar-se disposto a rebelar-se contra
a autoridade paterna, com o fato de assumir uma posio de
iniciativa e responsabilidade prprias. A darmos inteiro
crdito verso exarada em semelhante correspondncia
oficial, precisava at a princesa Leopoldina de empregar
seus melhores esforos para conservar o marido no caminho do
dever e da honra que competiam ao primeiro dos sditos da
monarquia.
No escapava perspiccia, que era
grande, de Dom Joo VI, o que se passava no ntimo do filho,
e isto contribua para que mais hesitasse em mand-lo para
Portugal na qualidade de seu lugar-tenente, segundo lhe
aconselhavam tantos, no numero o ministro ingls Thornton,
ao urgir pela centsima vez o rei a adotar resolues
decisivas que impedissem a dissoluo iminente da monarquia
portuguesa. Enciumava-o aquilo que Dom Pedro poderia ultimar
em Lisboa e redundasse em fama do herdeiro da Coroa,
receando tambm concesses que fossem de natureza a
deslustrar o poder real e a ofuscar sua autoridade soberana,
da qual era mui cioso.
Tais zelos misturavam-se no seu esprito
com o apego que ele nutria pela terra brasileira e que neste
caso favorecia a indolncia fsica to sua caracterstica e
to fcil de agravar, tratando-se de uma travessia
prolongada e de uma mudana completa de hbitos adquiridos e
de horizontes tornados familiares. Era de ver-se o ar
desvanecido (panoui reza o ofcio de Sturmer) com
que Dom Joo VI respondia "n'est-ce pas, c'est un beau
pays?" - observao tendenciosa do ministro austraco de
que no perdera o rei seu tempo nos treze anos j decorridos
da sua residncia fluminense, ali fundando "un empire qui
sera un jour un des plus florissans de la terre" (3).
Sabia Sturmer perfeitamente, e dizia-o
mesmo, ter assim tocado no ponto fraco de Dom Joo VI, o
qual sem demora se ps a discorrer sobre o porto do Rio de
Janeiro, a extenso do novo reino e suas riquezas, com o
entusiasmo de um propagandista que fosse bem sincero nas
suas convices. Nem duvidou concluir respondendo
afirmativamente e com a maior prontido reflexo do
diplomata, de que bem percebia a mgoa que ao seu rgio
interlocutor causaria deixar esse extraordinrio pas. Com o
seu natural desconfiado ajuntou porm logo Dom Joo VI -
comme pour me sonder observava Sturmer na
correspondncia: - "Entretanto sou europeu, nasci em
Lisboa". claro que o ministro da ustria no perderia o
belo ensejo de replicar-lhe: "Treze anos de novos hbitos e
o amor de um povo que tudo deve a V. M. so motivos
bastantes para fazerem esquecer Portugal. No se acha no
mesmo caso o prncipe real, que moo e arde em ambio de
servir V. M. em qualquer hemisfrio que seja". O rei contudo
desconversou ao chegarem as coisas a tal ponto, falando da
morte da me, do calor excessivo que fazia naquele momento,
das suas mazelas e de outros assuntos alheios ao primitivo.
* * *
De fato tanto repugnava a Dom Joo ir
como consentir em que fosse Dom Pedro. Ele prprio se iludia
- porventura voluntariamente - quanto gravidade do
movimento revolucionrio portugus, e pode ter-se como certo
que refletia bem sua opinio o panfleto por essa ocasio
clandestinamente editado, na verdade sado do prelo da
Imprensa Rgia do Rio de Janeiro, advogando a permanncia de
toda a famlia real na Amrica. A razo dada era que o
Brasil poderia dispensar Portugal, ao passo que a Portugal
no era lcito dispensar o Brasil, o qual nenhuma vantagem
estava auferindo do estado de unio. A partida da famlia
real marcaria o preldio da independncia do Brasil; muito
pelo contrrio sua permanncia, com a autoridade intacta,
assinalaria a fundao ultramarina "de um Imprio de
bastante peso na poltica do mundo" (4). A posse
do Brasil era a garantia desse Imprio e o penhor do seu
soberano.
O fundo do pensamento real era
precisamente esse, e no pouco se orgulhava ele de se no
encontrar no Rio, segundo expresso do folheto, sob a
ferula da Inglaterra, como o tinha estado a regncia de
Lisboa. A expresso ofendeu mesmo o ministro britnico que,
ajudado por Arcos e Palmela, obteve a proibio da
circulao da brochura, depois todavia que esta correra a
cidade e fora expedida para a Europa, qual se destinava
especialmente pois que era em francs.
Para desnortearem a curiosidade pblica,
seu autor ou autores atriburam ao folheto paternidade
austraca, dando-o at como escrito por Metternich; mas no
era preciso ir procurar to longe a sua origem. No Rio foi
ele considerado obra de Joo Severiano Maciel da Costa
(futuro marqus de Queluz), ou mais verossimilmente de
Silvestre Pinheiro Ferreira, que manejava bem a lngua
francesa (5).
No menos do que a ferula britnica,
queria Dom Joo VI escapar ferula revolucionria, que no
deixaria de ser-lhe aplicada se o tivessem mo. As Cortes
admitiam um rei, mas um rei-ttere, educado na obedincia
completa e passiva representao nacional.
Em abril de 1821 publicava-se em Portugal
uma contestao ao folheto do Rio, intitulada
Consideraes sobre a integridade da monarquia portuguesa
(6), e na Bahia tambm logo se publicou um
Exame analtico-crtico da soluo da questo posta na
brochura, contradizendo cada uma das suas proposies.
Assim, se o Brasil podia ir buscar melhor alhures os artigos
manufaturados e os imigrantes de que carecia, sendo no
entanto de esperar que argumentasse extraordinariamente a
emigrao de Portugal, uma vez reduzido o velho reino
misria pela separao, melhor faria o novo reino -
comentava o autor da resposta - permanecendo unido, a fim de
no cair nas garras dos estrangeiros.
O Portugal constitucional ia ter,
sonhavam os seus fiis, fbricas, artes, indstria, com que
suprir o consumo brasileiro, e mais justo parecia ficar em
casa o lucro enorme derivado pelas naes manufatureiras que
ao Brasil vinham buscar as matrias-primas dos seus teares e
maquinismos. Os benefcios colhidos pelo pas americano de
ser, treze anos havia, a sede da monarquia portuguesa,
apareciam no fim de contas ilusrios, pois que se cifravam
em graas para os favoritos e tributos para os demais - a
saber, para o grande nmero. O regime constitucional
portugus asseguraria, pelo contrrio, as franquias
necessrias: com ele no se faria mister um divrcio. "A
Constituio Portuguesa tem a virtude da Arca Noemtica, ho
de habitar sua sombra diversos caracteres e todos em
perfeita paz".
Escrevera o discursista do Rio que
a fermentao dos espritos no Brasil no significava muito,
porque o descontentamento se originava em vcios de
administrao e no incidia propriamente sobre as bases do
edifcio social, procedendo sobretudo de cidades onde se
aglomeravam europeus eivados do morbus revolucionrio
e no do grosso do pas, fundamentalmente distinto. A
supresso desses facciosos e a correo dos abusos apontados
eram coisas relativamente fceis e o essencial consistia em
preservar-se a realeza envolta em toda sua dignidade.
Guardando a plenitude do seu poder; o rei do Brasil e
Portugal desempenharia na poltica que hoje se denominaria
mundial o papel importante que lhe reservavam a magnitude do
seu Imprio, a posio geogrfica deste e as possibilidades
infinitas que comportava.
"A Amrica vai pesar na Balana das
Naes com todo o peso do seu imenso e frtil territrio, da
sua populao sempre crescente, do vigor, enfim, que
acompanha a mocidade dos povos, como a dos indivduos".
Assim se expressava o folheto fluminense e, prosseguindo nas
suas consideraes, vaticinava que o oceano seria o futuro
campo de batalha entre as naes e que, neste caso, grande
relevncia caberia ao Brasil num conflito geral. Poderia
assumir a dinastia a importncia correspondente a essa
ingente tarefa se continuasse encolhida no seu cantinho
europeu, oscilando entre o temor da opresso espanhola e o
respeito palmatria inglesa? No lhe cumpriria antes, no
seu prprio interesse, no abandonar o Brasil, a fim de no
perder aquilo que unicamente permitia a Portugal sustentar
sua categoria, a saber, a grandeza territorial ultramarina?
No fundo de toda esta argumentao
poltica o que j se divisava era o litgio entre as duas
sees da monarquia; os portugueses apregoando a
constituio como panacia para todos os males e dela
fazendo manto para restabelecerem seu monoplio,
representando o seu constitucionalismo um bom emprego de
capital pois que se baseava na recolonizao (7);
os brasileiros no querendo abrir mo das vantagens obtidas
com a trasladao da corte para o seu seio e encarando mesmo
a hiptese de uma separao, no caso de pretenderem
priv-los dos benefcios auferidos.
curioso como, no intuito de vincularem
o liberalismo ao passado nacional, os publicistas e
polticos de ento recordavam a cada instante as imaginrias
Cortes de Lamego e as tradies de governo representativo
que diziam ser as da realeza lusitana. Porventura com isso
intentavam tambm acalmar os receios de Dom Joo VI, educado
nas tradies do puro absolutismo e temendo, no s
atentados contra a sua soberania, mas contra o seu decoro.
Os argumentos histricos, as velhas
tradies, assim serviam para responder aos conselhos de
permanncia no Brasil, ocasionados, quando mais no fosse,
pelo propsito de poupar ao soberano do Reino Unido
desacatos como os sofridos por Lus XVI, prisioneiro da
Assemblia Nacional antes mesmo da Conveno o tornar seu
joguete. O rei estava alis convencido de que no Brasil
escaparia arrogncia dos revolucionrios e lhes ditaria a
lei em vez de receber-lhe a imposio. O citado folhe-to em
francs, o qual levava seu antagonista da Bahia a escrever
que "nem todos os portugueses tm juzo slido, nem s os
franceses dizem frioleiras", externava portanto o pensamento
recndito do monarca sagaz que apenas pecava pela fraqueza
de vontade.
* * *
Instado no entanto de muitos lados,
fingiu Dom Joo VI anuir partida do seu herdeiro, sozinho
porm, sem a filhinha de ano e meio e sem a esposa, cujo
estado adiantado de gravidez no permitia empreender sem
risco uma longa e penosa viagem martima. A restrio
parecia ter por fim levar Dom Pedro a renunciar partida ou
ento proporcionar ao rei o penhor de um pronto regresso do
filho. "L'tat de grossesse avance ne permettant pas
cette Princesse de s'exposer aux prils d'une longue
traverse et aux inquitudes d'un voyage dont l'on ne peut
encore considrer les resultats comme assurs, et la
tranquillit do Brsil exigeant qu'un nombre si considerable
de membres de la famille royale ne le quitte en mme
temps..." - eis como rezava a traduo remetida para Viena
do exrdio da circular com que, nos comeos de fevereiro de
1821, foi comunicada s legaes estrangeiras no Rio de
Janeiro a ida iminente do prncipe real no carter de
Condestvel, levando por misso restabelecer a ordem e a paz
entre os espritos portugueses.
A melhor prova contudo de que isto no
passava do que em linguagem de jogo se chama um bluff
est em que logo se alterou a data dessa partida para depois
do bom sucesso da princesa; e como o movimento
constitucional fosse menos paciente do que a natureza e no
esperasse o termo prescrito para arrastar o Brasil na rbita
da nova poltica portuguesa, surgindo a revoluo na Bahia e
estando a estalar no Rio, um outro decreto, de 22 de
fevereiro, pela segunda vez prometeu formalmente o embarque
do lugar-tenente real. O paquete de 24 velejou para o velho
reino com to grande e jubilosa novidade, ficando Dom Joo
VI momentaneamente livre das importunaes de Palmela e de
Thornton, que ambos instavam pela partida de algum
que pudesse ainda sustar o movimento no seu pendor
democrtico.
To pouco disposto se mostrava todavia o
rei a respeitar seu compromisso oficial, que pela filha
favorita, a princesa Dona Maria Teresa, viva de Dom Pedro
Carlos, infante de Espanha, mandava dizer em sigilo
princesa Dona Leopoldina que se no agoniasse com a idia da
separao do marido porquanto este no iria, apesar da
participao pblica declarar o contrrio (8). O
que em seguida se passou caberia antes no domnio das
comdias agitadas, absurdas e hilariantes do repertrio do
Palais-Royal.
Palmela continuou, claro, a fazer
presso para que no fosse deixado de honrar o compromisso
internacional assumido, mas com toda sua hbil diplomacia s
conseguiu ser uma vez mais ludibriado pelo rei. Na frase de
Sturmer para Viena, "il fut jou d'une manire cruelle". J
chegada de Lisboa do seu ministro de estrangeiros e da
guerra - cargo de que Palmela viera tomar posse - Dom Joo
VI o persuadira de seu desejo de regressar para Portugal,
quando o certo que no pensava absolutamente naquela
ocasio, nem mesmo depois, em retirar-se do Brasil. Sabedor
entretanto do prestgio de que gozava Palmela pela sua
inteligncia fora do comum e servios importantes prestados
no congresso de Viena e em vrias misses, quis de algum
modo cerc-lo para que no fosse dado ao ministro, com suas
idias mais largas que as dos outros conselheiros, tomar
grande autoridade sobre a revoluo portuguesa, gui-la e
servir mesmo de intermedirio entre o trono e a nao. Com
tal fim, segundo se conta, promoveu Palmela, de uma
assentada, de major de voluntrios a marechal de campo,
fazendo destarte maquiavelicamente crer ao pblico que o
ministro se aproveitava da sua situao nos conselhos da
Coroa para satisfazer suas prprias ambies, vaidades e
convenincias.
Palmela, militar de emprstimo mas
diplomata nato, era temperamento de conservador simptico a
um liberalismo moderado: por outras palavras era um
constitucional da escola a um tempo adiantada e
tradicionalista desse Benjamin Constant, com quem ele
convivera na intimidade de Madame de Stal. Seu objetivo
atingia mais longe do que o campo pessoal, o terreno das
instituies, e seu af voltava-se para no deixar abolir a
realeza como daninha ou mesmo intil, antes assinalar-lhe
uma funo essencial no novo mundo poltico, recordando que
na Idade Mdia fora a coroa quem protegera o terceiro estado
contra os vexames e iniqidades da nobreza e do clero.
Ao pisar em terras brasileiras, com o
pessoal e os acessrios que o acompanharam, o prncipe
regente exclamara sem ambages que nelas viera fundar um novo
Imprio. Dados o cenrio e os atores, que espcie de
monarquia podia ele porm criar no meio americano? Aquela
somente a que com efeito deu origem: uma monarquia hbrida,
misto de absolutismo e de democracia; absolutismo dos
princpios, temperado geralmente pela brandura e bondade do
prncipe, e democracia das maneiras, corrigido o abandono
bonacheiro pela altivez instintiva do soberano. Foi esta a
espcie de realeza levada ao seu auge, e tomando em
considerao a diversidade do meio poltico e o
desenvolvimento do regime representativo, pelo imperador Dom
Pedro II, personagem em muitos traos parecida com o av.
De Dom Joo VI no se podia esperar
impulso diferente. Por um lado crescera o orgulho da
aristocracia transplantada da Europa e mais intimamente
ligada com a famlia real, cujos sofrimentos e humilhaes
compartilhara e de cuja confiana imediata gozava, educada
como classe nas mximas do direito divino e machucada na sua
vaidade pela atual relativa modstia de recursos em
contraposio com os da gente abastada da terra. Por outro
lado a despretenso gerada no intercurso menos cerimonioso e
mais direto dos grados locais com os vice-reis
representantes da suprema autoridade da metrpole, no
exclua, quer urbanidade, quer deferncia.
Os brasileiros estavam pois
inconscientemente mais preparados para uma monarquia
constitucional, ao passo que no faltavam entre os
portugueses os que por seus sentimentos e interesses tinham
que se manter instintivamente aferrados monarquia
absoluta. E na verdade, quando se deu o movimento geral e
impetuoso de adeso do reino ultramarino ao programa
revolucionrio de Lisboa, encarnado legal e ordeiramente nas
Cortes de 1820, muitos eram os brasileiros arrastados pela
quimera liberal e muitos eram os portugueses instigados pelo
ideal da recolonizao.
As Cortes de Lisboa ultrapassavam as
opinies polticas de Palmela, mas tinham ainda assim
estacado diante da majestade do trono, posto que pensando em
reduzi-lo a satlite da soberania popular. Passadas as
primeiras efuses, determinadas pela adeso brasileira, que
comeara sendo uma incgnita, a obsesso da assemblia
liberal portuguesa foi reduzir o Reino Unido anterior
condio de metrpole e colnia, isto quando a independncia
do Brasil, examinada pelo prisma da histria e da simples
lgica, era um acontecimento fatal.
* * *
natural que o filho chegado
maioridade se emancipe, e sucede entre as naes como entre
os indivduos. A fase de subordinao cessara pela fora das
circunstncias; a de igualdade poderia ter-se prolongado um
pouco mais, mas tambm tinha forosamente de acabar embora
houvesse sido sincera a inteno e inteligente o plano do
monarca e dos seus conselheiros do momento. A igualdade
feria porm o sentimento geral do reino que por trs sculos
representara o papel de metrpole, com tudo quanto na
concepo daqueles tempos encerrava a expresso em matria
de autoridade e de exclusivismo. Havia de por isso chegar,
como chegou, o dia em que a mesma igualdade seria iludida no
esprito e desvirtuada na prtica.
A revoluo portuguesa de 1820 foi pois a
causa apenas prxima de uma separao que contava muitas
causas remotas e obedecera ela prpria a diversas razes das
quais nenhuma contrariava, antes todas militavam a favor da
soluo radical, sem ser quase violenta, que o problema
poltico da unio veio a receber. Foram sobretudo quatro os
motivos determinantes do movimento liberal que implantou o
constitucionalismo em Portugal. Em primeiro lugar a misria
do velho reino, refletida no somente no atraso do pagamento
de ordenados e soldos - misria financeira - como no
fechamento das fbricas e no abandono da agricultura -
misria econmica -; depois a dupla humilhao da tutela
britnica e da primazia brasileira; por fim o contgio
espanhol (9).
s trs invases francesas, sucedendo-se
a curto prazo e assolando a Pennsula com o carter
invariavelmente feroz das guerras, juntara-se, como geradora
de pobreza para Portugal, a concorrncia mercantil inglesa
provocada pela abertura dos portos brasileiros em 1808. Esta
medida, a um tempo diplomtica e econmica, tivera por
efeito direto cerrar to amplo mercado quanto o da Amrica
Portuguesa ao monoplio comercial da sua antiga me-ptria e
indiretamente trouxera a esta os graves males de penria do
errio e de vagabundagem por falta de trabalho. Fcil de
ver que no s o povo sofria de tal situao: dela sofria
no menos, pela natureza mesma dos fatos, a burguesia de
negociantes e lavradores que foi quem fez a revoluo, de
mos dadas com o exrcito enciumado. O povo por si,
desacompanhado de outros elementos, jamais conseguiria levar
por diante um empreendimento desse gnero, no s destruidor
como construtor. O desespero produz jacqueries, mas,
no organiza regimes.
A tutela britnica no era disfarada,
antes bem visvel, pois que se achava representada pelo
procnsul Beresford, o algoz de Gomes Freire, desempenhando
junto regncia o papel que, j antes do franco protetorado
de hoje, cabia no Egito a lord Cromer ou a lord Kitchener.
Ainda depois da revoluo o governo britnico dava como uma
das razes para no querer intervir nos negcios de
Portugal, o que era um meio de deles afastar a Santa
Aliana, o azedume que ficara no exrcito nacional,
produzido pela subalternao dos seus oficiais aos oficiais
estrangeiros, quais eram os ingleses, durante e aps a
campanha peninsular contra Napoleo.
Ao passo entretanto que Portugal andava
assim humilhado na sua mais briosa instituio, dava o rei
mostras inequvocas de no querer mais regressar do Brasil,
transformando qui de direito, como de fato j o era, a
antiga colnia em sede da monarquia. No Campeo, que
se publicava em Londres, considerava-se assente que Dom Joo
VI, nem queria voltar, nem repartir sua autoridade.
O exemplo da Espanha no podia deixar de
ser imitado no pas vizinho, onde as condies reclamavam as
mesmas reformas. Desde poucos anos que no Porto se
organizara uma sociedade secreta sob o nome de Sindrio,
cujo fito era fazer vingar em Portugal os princpios do
governo representativo. natural que esta associao
(10) tivesse ligaes com agremiaes congneres da
Espanha. O certo que a revoluo de Cadiz ocorreu a 7 de
maro e a 24 de agosto do mesmo ano a do Porto. Nenhuma
delas visava a estabelecer um regime republicano: no o
toleraria o resto da Europa, entregue reao. Visavam
porm ambas a reduzir quanto possvel as prerrogativas da
realeza e a firmar a preponderncia da nao. A regncia
portuguesa, organizada a 30 de janeiro de 1821 para exercer
o executivo em nome do rei ausente, tinha um carter
conservador e mesmo tradicional, compondo-se de cinco
membros com outros tantos secretrios de Estado. Esses cinco
membros foram tirados, dois da nobreza (o marqus de Castelo
Melhor e o conde de Sampaio), um do clero (o patriarca frei
Francisco de S. Luiz, tambm conhecido como cardeal Saraiva)
e dois da burguesia (Jos da Silva Carvalho e Joo da Cunha
Souto-Maior).
O egosmo no desampara contudo as
manifestaes polticas, nem sequer as que proclamam
guiar-se por mximas liberais. Os manes das vtimas
portuguesas de 1817 reclamavam um sacrifcio expiatrio, mas
o fito essencial do movimento de 1820 foi, sombra do
constitucionalismo, exaltar o reino europeu e deprimir o
reino americano que alm-mar se estendia numa vastido
colossal, vaidoso dos seus recursos e desejoso de
aproveit-los para seu nico desenvolvimento, no benefcio
da sua prpria populao.
A Amrica Inglesa estava livre, afora as
ilhas do mar do Caribe, a Guiana equatorial e o domnio
gelado do Canad; igualmente em vsperas de tornar
definitiva sua independncia a Amrica Espanhola, exceo
feita das Antilhas que Os Estados Unidos no consentiram que
fossem libertadas pelo esforo conjugado do Mxico e da
Colmbia, de medo que lhes escapasse para sempre aquilo
sobre que j cobiavam estender seu domnio. Por que no se
havia de tornar livre o Brasil, que era um mundo e que
acabava de dar seguro e honroso asilo por treze anos,
dinastia deposta por Napoleo? Quem tinha condies para
tanto, tinha tambm condies para por si se governar, para
assumir as responsabilidades do seu destino.
Apenas entre os homens pblicos ou melhor
dito, que iam surgindo para a vida pblica, reinava, nos que
melhor conheciam o meio europeu, o temor de incorrer nas
iras da Santa Aliana com uma ofensa direta e grave ao
princpio de legitimidade que ela fizera seu. Por isso
Barbacena escreveria de Londres, quando ainda era Felisberto
Caldeira Brant, a Jos Bonifcio, que o papel do prncipe
regente estava traado: convocar Cortes no Rio de Janeiro,
retirando de Lisboa os deputados brasileiros; declarar seu
pai em estado de coao e usurpadoras as Cortes de Lisboa,
cujos atos deviam ser declarados nulos antes de eleita uma
nova assemblia; finalmente entrar em relaes diretas com
os soberanos europeus.
O primeiro objeto dos trabalhos desse
parlamento ultramarino seria a constituio do Brasil. "Nada
h mais fcil, escrevia o futuro marqus de Barbacena numa
afirmao instintiva de pan-americanismo; a Constituio
Americana com palavras, e frmulas monrquicas de quanto nos
convm. Quando o rei estiver em Portugal o futuro sucessor
estar no Brasil, e vice-versa" (11)
O que convinha a Portugal na situao
criada era evitar os atritos e no provoc-los, proceder com
magnanimidade e no com intolerncia. Ora as Cortes foram
levadas pela corrente de opinio apaixonada que as
governava, e depois de uma curta fase de expanso que se
pode crer sincera porque era uma exploso do liberalismo,
primaram em demonstrar nas suas relaes com o Brasil falta
absoluta de tino e de previso. Sua poltica consistiu em
jogar com os ideais de liberdade com vista em recolonizar o
Brasil, apesar do antagonismo dessas atitudes e como se a
liberdade no devesse ser a mesma em qualquer latitude e sob
qualquer cu na rbita da civilizao.
Imaginar que o reino americano, pelo fato
de ficar dispondo de representao parlamentar em Lisboa,
abandonaria seus interesses mais vitais e renunciaria a
privilgios que o soberano lhe facultara durante sua estada
e que o punham no mesmo nvel do reino europeu, era um plano
por fim de contas infantil e digno to somente da
ingenuidade democrtica que acima dos interesses colocava os
princpios. De que serviriam os direitos do homem e o que
significariam as garantias do cidado, uns e outras exaradas
num texto constitucional destinado a cercear os atributos da
soberania real, se as novas prerrogativas avocadas pela
nao ficavam quase todas aqum do oceano e apenas se
concedia alm-mar um simulacro de autonomia?
A constituio de Cadiz, de 1812, que a
junta governativa de Lisboa fora compelida a aceitar
provisoriamente por um novo pronunciamento militar e civil,
poderia ser um fetiche para os espritos abertos doutrina
da soberania popular, mas no assegurava afinal no Estado
ultramarino aquilo que j passara a ser, expressa ou
latente, sua aspirao comum e formava a base do seu
desenvolvimento no porvir - a independncia. E sem esta
seriam falazes quaisquer seguranas constitucionais, vindas
da antiga metrpole.
O papel das Cortes foi lgico quando de
comeo fomentou indiretamente a desunio do Brasil, privando
este do seu centro natural de atrao, que era a capital
consagrada por Dom Joo VI, mediante o estabelecimento de
ligaes diretas com cada uma das capitanias, agora
provncias, como ocorria nos tempos coloniais. Seu fito
devia entretanto ser todo robustecer e consolidar o triunfo
da sua obra poltica, e esta no s perigaria como
soobraria, caso o Brasil afrouxasse. Seu erro foi no
compreender que seria impossvel restaurar e combinar com a
nova ordem de coisas a antiga frmula de subordinao, e que
o Brasil continuaria monarquia ou passaria a repblica
dependendo da permanncia ou no do prncipe regente, sendo
porm inevitvel a separao. O baro Wenzel de Mareschal,
que ficou como encarregado de negcios da ustria com a
partida do baro de Sturmer - acompanhando os ministros
estrangeiros o rei para Lisboa -, escrevia para Viena
(12) que se Dom Pedro partisse, todos os brasileiros
se apegariam soluo republicana.
O tratamento a seguir era portanto o
brando, no o drstico. A ignorncia mal desculpava o
segundo, porque pas algum que uma vez gozou dos foros da
soberania se resigna de bom grado a abdic-la. Este era o
caso do Brasil, que a mudana da corte convertera em nao e
no se resignaria a voltar a ser uma dependncia, menos
ainda um mosaico de colnias. As Cortes entenderam porm
legislar para um pas autnomo e praticamente independente
como se se tratasse, na frase da escritora inglesa Mrs.
Graham, cujo marido comandava a fragata de guerra Doris
estacionada na baia do Rio de Janeiro, de um presdio
nas costas da frica selvagem.
O regime das juntas locais foi o
instrumento de aplicao dessa poltica que to mal avisada
resultou, mas que constitura no princpio a nica a seguir,
contanto que se tivesse prolongado no mesmo esprito de
concordncia. O ministro Toms Antnio tinha razo quando
dizia, num dos seus pareceres ao monarca, que "bem se via
que a maior nsia dos revolucionrios era incendiar o
Brasil; porque, se ele se separa e rompe a comunicao,
Portugal tem de cair".
O Brasil pronto aderiu ao movimento
constitucional portugus como o meio mais fcil e mais
natural, conscientemente para uns, instintivamente para o
maior nmero, de chegar ao fito supremo. O rastilho de
plvora estendia-se de norte a sul e bastou que no Par se
acendesse a mecha, para que as exploses se fossem
sucedendo. O impulso era para perfilhar tudo quanto fosse
liberdade. As provncias brasileiras emancipando-se porm da
sua velha sujeio, transferiam ipso facto para
Lisboa, de onde raiara o sol da liberdade, o seu vnculo de
lealdade. No jogo revolucionrio que se travara numa partida
angustiosa, o Brasil, numa feliz expresso ( (13),
serviu de trunfo para vencer a resistncia real.
Vencendo esta resistncia, servia-se na
verdade a causa da unio dentro da esfera constitucional,
mas no menos verdade que o Brasil no voltaria a ser, sob
outro aspecto muito embora e como se fazia f em Portugal,
cuja revoluo parecia vingar em todos os seus intuitos com
a adeso brasileira, a salvao econmica prestada a troco
de uma fantasmagoria poltica.
Nem constituiria o Brasil o mais srio
dos amparos para a eventualidade, sempre possvel, de uma
interveno da Santa Aliana, da qual Portugal at ento se
livrara, tanto pela reserva que punham as potncias maiores
em interferir com um pas protegido pela Gr-Bretanha, sua
virtual dependncia poltica (14), quanto pela
prudncia e tino do rei, infenso "a chamar foras externas
para sossegar as desordens internas", passo sempre arriscado
e conducente a "desvarios a que a desesperao pode
arrastar". A Vilafrancada, que foi a reao nacional
personificada no infante Dom Miguel, manejado pela rainha
Dona Carlota, viria no momento psicolgico varrer as Cortes
e derrubar a sua obra, mais tarde reconstruda.
* * *
A seqncia dos acontecimentos polticos
entre a partida do rei e a proclamao do imprio torna-se
em certo sentido mais compreensvel observada luz dos
sucessos hispano-americanos, sobretudo platinos, e ainda o
seria melhor, examinada na penumbra das sociedades secretas.
As lojas manicas desde 1812 pelo menos que funcionavam na
Amrica do Sul e a denominada Lautaro, de Buenos Aires, a
qual, adotando o nome de um heri araucano, s por isso dava
a entender suas ligaes com a costa do Pacfico,
desenvolveu notria e fecunda atividade na perseguio do
seu ideal, que era a independncia com a repblica. O fito
comum tornava irmos todos os revoltosos da Amrica sujeita
Europa e o lao que os prendia era o juramento de no
reconhecerem outro governo legtimo seno o "eleito pela
livre e espontnea vontade dos povos".
inquestionvel, posto que desconheamos
os pormenores, que lojas do Brasil e do Rio da Prata estavam
ento em comunicao e Rivadavia, numa das suas cartas
editadas pelo Sr. Jlio Pea, erudito de Buenos Aires, diz
ter tratado com Domingos Jos Martins pouco antes da
revoluo de 1817, na passagem do argentino para a Europa.
A junta de 20 de maio de 1810,
conseqncia de alguns anos de agitao poltica que um
historiador argentino chama orgnica, j fora segundo este
mesmo historiador (15) o resultado de um acordo
tcito entre as diversas faces que na capital do
vice-reinado encarnavam as tendncias de diversa finalidade.
A imposio da junta pelo povo ou antes por alguns
indivduos em nome do povo, fez-se de viva voz: a
representao escrita foi apresentada muito mais tarde, no
mesmo dia. Tambm a representao do senado fluminense de
que resultou o clebre Fico, traduziu um acordo entre
faces que pautavam seus esforos por orientaes
distintas.
Em Buenos Aires ampliou-se a breve trecho
a frmula constitucional para dar nela entrada s foras
polticas do interior, que sem isso logo se dispersariam.
Entre ns foi mister empregar habilidade e nervo para atrair
a um movimento harmnico as juntas provinciais que,
entregues a si, seguiriam rotas separadas. A coroa atuava
porm como um m muito mais forte do que qualquer outro
prestgio, e a Unio tinha de brotar da implantao da
monarquia ou antes da transformao liberal dessa
instituio tradicional, como brotaria a desunio dos
constantes atropelos constitucionais das Provncias Unidas,
agrupadas pelo pacto do estatuto de 1816.
Mariano Moreno representara a tendncia
centrpeta que Rivadavia prolongaria; Artigas a tendncia
centrfuga que o federalismo manteria, em todo caso
englobando aquele uruguaio no seu sistema os
territrios ou provncias do litoral e contguas Entre Rios,
Corrientes, Santa F e at Crdova. No Brasil, em 1821, um
observador estrangeiro como Mareschal notava que no havia
entre as provncias unanimidade, nem sequer tendncias
comuns. Assim a junta organizada em Minas Gerais comeou por
ser oposta regncia e de fato independente, tratando com a
de So Paulo de potncia a potncia, fazendo lembrar o
Paraguai com relao sede do vice-reinado. O diplomata
austraco opinava mesmo na sua correspondncia pela
transferncia do governo central do Brasil para Minas, por
causa do cime que a capitania interior nutria do Rio de
Janeiro. Quanto a Pernambuco, escrevia ele que mostrara
sempre um esprito de independncia republicana.
A felicidade do Brasil foi no haver
naufragado o princpio da autoridade e ir a nau do Estado,
revelando maior capacidade de resistncia medida que ia
deixando atrs de si os escolhos que a ameaavam. Logo
depois se daria entre ns o mesmo antagonismo entre a
convocao de uma assemblia constituinte que engendrasse
uma lei orgnica, corrente que em Buenos Aires personificava
San Martin, e a instalao de uma ditadura, que l
personificava Alvear. Apenas o conflito no Brasil era muito
menos cru e a divergncia se disfarava muito melhor.
A razo da segunda corrente argentina
estava, no s em que as juntas de governo no expressavam
com bastante plenitude a soberania nacional, como em que as
Vistas de muitos andavam voltadas para a reconstituio da
unidade hispano-americana sobre bases liberais, com uma
monarquia limitada pela autonomia das suas partes
integrantes, segundo a que fora concedida de jure ao
Brasil em 1816. O carlotismo, como chamam escritores
platinos aos esforos de Dona Carlota Joaquina para assumir
a direo dos domnios americanos de seu irmo Fernando VII,
era uma modalidade desta ltima tendncia, que a restaurao
do soberano deposto por Napoleo e cativo desde ento em
Valena, no podia bafejar.
No obstante ser militar de carreira, foi
sempre San Martin muito mais adepto da doutrina
constitucional do que muitos civis, da mesma forma que no
Brasil ningum amou mais romanticamente as liberdades
polticas do que Dom Pedro, ainda que temperamento e
educao freqentemente o levassem a desprez-las. A
vantagem manifesta do Brasil foi que adotando a soluo
monrquica, no procurou nem governante nem regime poltico
alheio s suas tradies: apenas adaptou a monarquia aos
novos princpios, tornando-a no s constitucional, como
democrtica.
Merc da trasladao da corte e dos
benefcios resultantes da sua fixao no Rio de Janeiro, o
sentimento pblico, pelo menos o fluminense, no criara
incompatibilidades com a realeza. Pugnando pelos direitos
polticos do cidado, a opinio admitia contudo tal
instituio acima dos partidos e das classes.
Foi tambm uma fortuna para o novo
Brasil, independente e unido, que se houvesse fragmentado o
vice-reinado do Prata, porque diante do seu territrio
dividido politicamente e do seu meio fsico dispersivo, ele
teria sido levado a agir como um instrumento de destruio.
O Uruguai, prolongamento do Rio Grande do Sul e onde, na
opinio de alguns, devia ter sido a capital, achava-se nessa
ocasio nas mos dos portugueses; mas no o estava o
Paraguai, prolongamento meridional do Mato Grosso, como o
denominou Eliseu Reclus, que daria grande trabalho ao Brasil
quando uma vez se organizasse em estado guerreiro, ncleo de
resistncia a absores e agente de desagregao do Imprio.
O Brasil colonial fora expansivo, como o
provam os tratados; de 1750 e de 1777 legitimando suas
incorporaes: o obstculo agora deparado podia converter-se
numa fora que atrasse Mato Grosso e Rio Grande do Sul para
a bacia platina. A posse do Uruguai trazia consigo porm a
clausura poltica do esturio e com ela uma dupla volta de
chave porta mercantil das provncias litorais, desde
Colnia at Corrientes (16). Convm no esquecer
que Montevidu fora o baluarte destinado a contrapor-se s
tentativas de consolidao e de irradiao dos portugueses
instalados na Colnia do Sacramento.
Ocupada a Banda Oriental pelas armas do
pacfico Dom Joo VI, ao Brasil-reino abria-se uma carreira
de conquista, mesmo involuntria, sem todavia possuir, nem
as foras, nem os recursos, nem mesmo o esprito do
conquistador militar. Faltava outrossim, Amrica
Portuguesa como Espanhola, a autoridade de uma classe
dirigente educada e preparada para as altas funes
polticas, da qual no entanto emergiram capacidades que se
distinguiram, e at personalidades excepcionais, que
modelaram as novas naes com a intuio fulgurante de
Bolvar e com o entusiasmo entre estouvado e perspicaz de
Dom Pedro, completado pelo patriotismo entre ardente e
refletido de Jos Bonifcio, cujo principal mrito foi
enxergar mais longe e sentir mais fundo do que a sua pequena
ptria paulista.
CAPTULO II
A SOCIEDADE BRASILEIRA. NOBREZA E POVO
A classe dirigente existia em embrio na
Amrica Portuguesa e na Espanhola desde que em ambas havia
uma aristocracia colonial, espcie de gentry, de
carter territorial - agrcola, ou pastoril, ou mineira -,
que foi natural e fundamentalmente simptica causa da
emancipao poltica, a qual ela pde tanto melhor servir
quanto, no Brasil, formava essa classe os quadros de
oficiais dos regimentos de milcias e os senados das cmaras
municipais, encontrando-se tambm representantes dela nos
cargos da magistratura e dos governos das capitanias menores
(17). Andr Vidal de Negreiros foi mesmo governador de
capitanias importantes, mas isso constitua uma exceo,
justificada pelos seus relevantes servios de guerra.
O fato de s se terem descoberto
diamantes e ouro no Brasil nos fins do sculo XVII, deu
contudo evoluo portuguesa na Amrica uma base mais
estvel do que evoluo espanhola. Esta base foi dupla,
agrcola e pastoril - a lavoura da cana e a criao de gado.
Pernambuco e sua expanso civilizadora para o norte foram o
produto da primeira; a ocupao dos campos do Piau foi a
conseqncia da segunda. No sul o trao ambulatrio foi mais
acentuado e os bandeirantes mais constantes nas suas
pesquisas. A Bahia participa de ambas as feies. O
povoamento do interior constituiu um efeito mais moderno da
indstria mineira, que teve que ser criada, embora
empiricamente.
A Espanha encontrara logo no incio
civilizaes relativamente adiantadas e riquezas acumuladas.
Seu papel foi assim mais de conquistar do que de colonizar:
a Argentina, que no tinha minas como o Mxico, o Peru ou
Nova Granada, estacionou por longo tempo numa explorao
primitiva. Portugal colonizou porm na Amrica tanto quanto
conquistou: no Oriente que obedeceu ao critrio das
feitorias comerciais. A tradio colonial era em ambos os
casos a romana - de anexao territorial sem representao,
isto , sem direitos para os habitantes (18).
Na Amrica Inglesa, pelo contrrio, a
gente no s era toda arraigada ao solo para onde se havia
transplantado no intuito de ali permanecer, como oferecia no
seu aspecto um prolongamento da raa da qual procedia. As
colnias eram dos que as tinham fundado e no dos
adventcios da metrpole que, desempenhando cargos de
justia, de administrao, de servio militar ou
eclesistico e de comrcio, desprezavam o elemento mestio
ou mesmo crioulo puro, que reputavam inferior. O
conflito que na Amrica Saxnica foi, em matria de
separao, puramente poltico, aparecia pois na Amrica
Latina tambm como social, numa modalidade que no a de cor.
A idia de nobreza no podia ser idntica
nas colnias ibero-americanas das suas respectivas
metrpoles. No foram os grandes nobres, os poderosos
representantes das casas de alta linhagem, como, em
Portugal, as de Bragana ou de Aveiro, que passaram ao
ultramar: foram os representantes da petite noblesse,
da que em Frana se chamava d'epe ou de robe,
fidalgos j se sabe ou filhos de algo, constituindo a casta
guerreira. Eram eles os samurais da Pennsula, que
nas possesses se equiparavam socialmente desde o sculo XVI
aos plebeus, salientando-se como exploradores de sertes,
ocupadores de terras, fundadores de povoaes.
Cortez, Pizarro, Almagro, Quesada, se no
eram "hombres del estado llano", eram hidalgos pobres
como D. Quixote, "de lana em riste, velha adaga, magro
rossim e galgo corredor", afeitos a uma mesa mais que
frugal, de ndole aventurosa, esprito brioso, vontade tenaz
e pronta iniciativa, cheios de uma dignidade que ia at a
prosapia (19). Pela freqente ironia das coisas
histricas, a colnia democraticamente organizada de Buenos
Aires foi a fundada pelo adelantado Mendoza (os
adelantados eqivaliam aos nossos donatrios e esse
enricara no saque de Roma), ao passo que o Peru veio a ser a
corte aristocrtica de vice-reis faustosos.
Escreve o historiador venezuelano Becerra
(20) que a aristocracia colonial espanhola tinha mais
propriedades do que brazes: talvez fosse mais justo ainda
dizer que preferia as propriedades aos brazes. Alis as
Leis de ndias tinham enobrecido todos os conquistadores
que fundassem povoados e no se estabeleceu na prtica
distino entre os caudilhos da conquista e os seus
companheiros. Todos foram considerados primeiros povoadores
e foram portanto fidalgos. O que entrou a diferenci-los foi
o grau da abastana e da influncia adquiridas no pas.
Entre eles no havia exatamente sentimento de casta: o
que havia era o gosto de um bem-estar mais generalizado do
que nas terras de onde tinham procedido. Eis o que foi o
mantuanismo (21) colonial.
A essa nobreza melhor assentaria, no
conceituoso dizer do socilogo Arcaya, cujas observaes
neste ponto se aplicam igualmente ao Brasil, a denominao
de "burguesia". Se no era casta seno talvez num sentido
bastante plido, diferente da autoridade quase feudal
desfrutada nos seus domnios, tampouco era uma aristocracia
poltica ou mesmo uma oligarquia de governo, uma vez que
este se constituiu autnomo e responsvel. Ernesto Quesada
pondera que nos pases latino-americanos foram as ditaduras
que desempenharam a funo sociolgica de amalgamar as
diversas tendncias sociais. Tal papel coube no Brasil
realeza.
Dava-se entretanto a circunstncia, e
nisto que pode ter-se manifestado uma certa tendncia
oligrquica, difcil de medrar onde a monocracia era o
regime mais popular, de haver uns tantos com audcia,
energia e luzes para se colocarem acima da grande massa
ignorante e inerte. Foram esses poucos que sobressaram na
eventualidade e pretenderam organizar os novos estados
segundo suas preferncias tericas.
Os Suassunas, conspirando em Pernambuco
em 1801 para o estabelecimento de uma repblica protegida
por Bonaparte, correspondem aos Andradas em So Paulo, ainda
que sua concepo estreita carecesse da viso nacional de
Jos Bonifcio. Eles eram "os nobres", os que tinham oposto
seu orgulho vaidade dos "mascates". A colonizao
brasileira levada a cabo por degredados uma lenda j
desfeita. Nem ser degredado eqivalia ento forosamente a
ser criminoso, no sentido das idias modernas. Punia-se com
a deportao delitos no infamantes e at simples ofensas
cometidas por gente boa. Os dois maiores poetas portugueses,
Cames e Bocage, sofreram a pena de degredo na ndia, como
Ovdio sofreu a do banimento no Ponto Euxino.
O Brasil tinha sua gente de nascimento.
Jos Bonifcio, percorrendo a Europa como naturalista, nunca
deixou de ser considerado nobre. Seu passaporte austraco,
que o Instituto Histrico conserva, reza ser ele um
"portugeesischer Edelmann". O que no havia, quer nas
colnias, quer na metrpole, era o rigor de preconceitos de
raa como nas colnias inglesas da Amrica. Da devassa de
1817 resulta que a melhor gente de Pernambuco - parte dela
pelo menos - freqentava a casa do Cruz Cabug, que era
filho de mercador e mulato: morreu alis como ministro do
Brasil na Bolvia. E como poderia exercer-se tal rigor se em
maior ou menor grau foram mulatos Joo Fernandes Vieira, o
heri da reconquista pernambucana, o padre Antnio Vieira, o
grande esprito portugus do sculo XVII, e o marqus de
Pombal, o ministro desptico e reformador? Na Argentina era
mulato Rivadavia, o seu homem de Estado mais inovador. Este
verdadeiro sentimento democrtico, que o da igualdade, foi
o produto da organizao social hispnica. O sentimento de
liberdade poltica que pode haver sido favorecido pelas
idias do filosofismo francs postas em prtica pela
revoluo de 1789. O efeito dessas idias na Amrica Latina
foi antes nocivo do que benfico: elas no s se exageraram
como se adulteraram, criando em muitos casos uma situao
convencional e falsa. Ocupando-se da sociedade brasileira de
1821, escreveu Mrs. Graham, que tinha talento de observao,
uma nota curiosa, a saber, que a maior parte dos homens
versados em assuntos polticos era composta de discpulos de
Voltaire, "os quais iam alm das suas doutrinas em poltica
e rivalizavam com sua indecorosidade em religio, pelo que
suas falas eram por vezes repugnantes (disgusting) a
pessoas de bom senso que tinham presenciado e compreendiam
as revolues europias". Pela boca de Mrs. Graham falava a
Inglaterra hostil aos desmandos subversivos.
De resto, antes da guilhotina na Frana
definir os direitos do homem, o esprito das comunidades
ibero-americanas tinha, com limitadas excees, desmanchado
a vanglria da superioridade de raa fundada na nobreza do
bero ou na alvura da tez. O prprio Imprio brasileiro foi
democrtico mais do que no rtulo, tanto que, ao organizar a
sua nobreza, no a fez hereditria, condio de
perpetuidade. A constituio monrquica de 1824 no
reconhece privilgios de nascimento: a aristocracia que
ento se formou, era galardoada pelos seus mritos e
servios pessoais e parte dela era tambm representativa da
riqueza, que um dos esteios do Estado e um campo onde
cabem as atividades individuais.
Na Amrica Espanhola, onde as
circunstncias foram adversas fundao de monarquias, o
povo, em grande parte mestio de ndio e afeito ao
paternalismo de governo - pois que toda a legislao tinha
por objeto proteger a raa indgena se bem que no logrando
evitar os abusos - no compreendia porque se queria
substituir o rei, que era uma expresso palpvel, por
expresses abstratas. Na Venezuela, ptria de Bolvar, a
popularidade do movimento de emancipao poltica s se
tornou uma realidade quando Paez, filho da plebe, abraou a
bandeira independente e lhe trouxe o apoio da democracia
"indmita e agreste" da qual ele prprio se faria no governo
a encarnao.
No Brasil a aspirao nacional
corporificou-se no representante da dinastia que a terra
albergara numa hora de provao, e este carter fez com que
mais depressa se irmanassem os sentimentos da populao. A
resistncia local por assim dizer no ocorreu. No se
conheceu um partido de tradicionalistas europeus, alm dos
prprios portugueses, ou uma devoo violenta de proletrios
privados da proteo efetiva de um governo sempre solicito
em no permitir que a aristocracia lhe contrabalanasse a
autoridade. O elemento de oposio referida aspirao
nacional foi o das Cortes de Lisboa, embora professando a
doutrina do nivelamento das classes e da comunidade dos
anhelos.
Desde os tempos coloniais, todavia, que a
condio de nobreza no dava por si s direito sequer
constituio de uma aristocracia municipal. A partir dos
comeos do sculo XVII deixou-se mesmo de observar nas
colnias espanholas a Lei de ndias que concedia aos
descendentes dos conquistadores preferncia para certos
cargos municipais como, por exemplo, os de alcaides
ordinrios (22).
Algumas vezes os privilgios e ttulos
eram transmitidos pela linha feminina - caso ainda hoje
comum na Espanha -, consorciando-se as filhas dessa gente de
algo colonial com funcionrios vindos da Espanha. Como porm
semelhantes favores apenas podiam ser reclamados por
indivduos e no pelas corporaes, estranhas a tais
interesses pessoais, fcil era o irem caindo em desuso com a
afluncia dos espanhis da metrpole e o advento de outras
camadas sociais.
As barreiras entre as classes foram-se
gradualmente abaixando e seu desaparecimento constitua o
termo de um processo evolutivo, regular e prprio. A
igualdade foi-se tornando legal, de fato como de direito,
entre os nobres e os brancos "del estado llano", e as
fronteiras entre estes brancos e os pardos livres, abastados
ou remediados, por sua vez se fizeram imprecisas e fceis de
confundir ou de ultrapassar. Esse movimento geral de
democratizao social foi espontneo: no obedeceu a
sugestes de fora. As mximas e exemplos da Revoluo que se
diz mater do mundo contemporneo, somente
contriburam para apressar o rompimento, determinando
violentas exploses. O rompimento dar-se-ia de qualquer
modo, porquanto era o fito da progresso de uma sociedade em
formao sob os auspcios de uma metrpole mais atreita no
ultramar aos proventos do que s tradies e que estava ela
prpria passando por uma transformao.
Tampouco foram no Brasil as funes
municipais apangio exclusivo da nobreza da terra. A chamada
guerra dos mascates proveio de fato de se pretender criar,
cerceando a jurisdio da cmara fidalga e brasileira de
Olinda, a cmara burguesa e portuguesa do Recife. O conflito
foi porm resultado do esprito de antagonismo que inspirou
nesse caso a resoluo, pois que nos senados das cmaras se
sentavam indistintamente senhores de sangue azul e plebeus
de sangue vermelho, cujas prerrogativas eram iguais s dos
outros. O governo da metrpole at favorecia mais estes
ltimos por serem do reino e no das colnias, possuindo
assim mais vivo o sentimento de fidelidade.
Mrs. Graham escreve que os portugueses
ricos do comrcio preferiam dar suas filhas a caixeiros sem
vintm, vindos do reino, do que a brasileiros de posio,
invocando a questo de raa pelo fato dos da terra; mesmo
nobres, denunciarem freqentemente cruzamento. A repugnncia
ao negro, praticamente abolida no trato social, subsistia
bastante em matria de casamento, mas no raro oferecia
meramente um pretexto para menosprezo, tanto assim que
muitos dos portugueses transplantados casavam nas famlias
desde muito estabelecidas alm- mar. Nem podia aquela
repugnncia corresponder a um sentimento seno assaz
convencional, visto que em Portugal no havia escassez de
sangue africano, dada a grande quantidade de negros
importados, produzindo esta mescla de raas certa confuso
social que redundou por fim em equilbrio. O espirituoso
escritor equatoriano Montalvo definiu em nossos dias a
situao, lembrando que mal cabia o preconceito com relao
prognie, quando no tinha servido para refrear os amores
dos conquistadores.
Se a bastardia nunca foi um empecilho
nobreza, pois que desde o comeo das monarquias hispnicas
foram os bastardos dos reis reconhecidos e ricamente dotados
(no sculo XVIII ainda nascia bastarda em Portugal a casa de
Lafes), no de admirar que bastardos de valor fossem to
apreciados pelos seus servios quanto os brancos puros.
Francisco Barreto de Meneses, o general da campanha da
restaurao pernambucana contra os holandeses, era filho de
portugus nobre e de ndia peruana, tendo alis nascido em
Callao. verdade que, mesmo nos Estados Unidos, a
mestiagem com ndio nunca foi considerada humilhante, sendo
os produtos socialmente tratados noutro pe. Nas colnias
espanholas os mestios seguiam a condio materna e portanto
mergulhavam na raa aborgene, mas ainda assim, l como no
Brasil, os que tinham nas veias sangue negro muitas vezes
apregoavam ter sangue indgena.
Contudo no constitua o sangue negro
eventualmente obstculo insupervel nem sequer a mercs e
graas rgias. No foi s o ndio Camaro quem recebeu foros
de nobreza: o preto Henrique Dias teve o hbito de Cristo
com tena. Joo Fernandes Vieira, apesar de ser de cor,
governou Angola e Pernambuco. Os populares brancos formavam
o elo mdio da cadeia, prendendo-se por um lado aos nobres
territoriais e por outro ao elemento plebeiamente mestio.
Em tais condies no podia mesmo haver diferenas
fundamentais de classes. As divises eram artificiais e os
costumes modificavam at a legislao. Entretanto certas
diferenas extremam a organizao da vida social nas duas
sees em que se divide a Amrica Latina.
Da mesma forma que sucedia em Portugal,
comparado com a Espanha e mau grato a carncia nas colnias
espanholas de um rigoroso sentimento de hierarquia, a
aristocracia brasileira achava-se muito menos distanciada do
povo. Se este mais depressa fraternizou com ela, porque a
relao em que viviam representava uma longa tradio a que
no faltava o sofrimento, mas a que faltava o dio. Os
ndios eram uma raa livre por lei, de fato serva adstrita
gleba e escrava nas exploraes de minas. Os negros eram
escravos por lei e formigavam no Brasil, que foi o seu
grande mercado na Amrica do Sul, ao passo que na Amrica
Espanhola a instituio servil tinha razes menos fortes,
sendo logo abolida quando ocorreu a independncia ou pouco
depois e no oferecendo o aspecto de uma instituio
profunda e essencial.
conhecida de resto a preponderncia do
elemento indgena na maior parte das sociedades
neo-espanholas do Novo Mundo. Esses ndios tinham sido as
vtimas dos encomenderos pelos quais tinham sido
repartidos, para que deles tomassem conta em troca de certa
soma de trabalho, e no rei enxergavam vagamente um patrono e
arrimo contra as iniqidades. Aos negros no Brasil estava
porm trancada esperana anloga, porque a legislao
sancionava o seu cativeiro, com o nico recurso da alforria
pelo trabalho prprio ou pela filantropia alheia.
Nem poderia constituir-se uma nobreza
regular sem os morgadios, que eram praticamente
desconhecidos na Amrica e que na Pennsula Ibrica
permitiram as grandes casas sustentarem at o sculo passado
o seu fausto. Os morgadios do alm-mar no eram vedados,
antes autorizados isoladamente por lei, mas no entravam nos
hbitos. De um ou outro se d notcia no Brasil. O pouco
valor relativo das terras era outrossim uma condio
desfavorvel sua instituio: no se podia mesmo contar,
como na Europa, com rendimentos mais ou menos certos. Havia
muito de flutuante, de indeciso, nessa vida do Novo Mundo.
Grandes fortunas no existiam: o que
havia eram extensas propriedades, proporcionalmente de
escassa remunerao por no ocorrerem, com o sistema do
monoplio mercantil, oportunidades de especulao. Alis as
grandes fortunas so por via de regra antes industriais e
comerciais do que agrcolas: os lucros agrcolas costumam
ser moderados, sendo precisas circunstncias excepcionais,
como as da ltima guerra e, com relao ao algodo, como as
da Guerra de Secesso, para certos artigos darem elevados
proventos.
Os latifndios coloniais apresentavam-se
em larga proporo baldios e no podiam nestas condies
assegurar um rendimento sequer suficiente e estvel. O
nmero dos ricos andava limitado, graas diviso da
propriedade, a no ser pelo resultado do prprio trabalho e
felicidade: ora, com a obrigao do esforo individual,
maior ou menor, cessava a primeira condio de uma
aristocracia de lazer. Em toda a Amrica Hispnica assim
acontecia. Se um hidalgo pretendia estabelecer um
morgadio, no podia para isto dispor seno da quarta parte
da sua fortuna porque, pelo eqitativo direito espanhol, as
trs outras partes eram legtima dos filhos. De ordinrio a
partilha dos bens tinha lugar sobre a base da igualdade. As
encomiendas de ndios no substituam propriamente os
morgadios porque no eram hereditrias: eram apenas
vitalcias, algumas vezes outorgadas por duas ou trs vidas.
Na Venezuela os vnculos de terras
conservadas indivisas eram em proveito de todos os
descendentes do fundador, para serem desfrutadas em
comunidade perptua, alguma coisa no gnero do mir
russo; ou ento consistiam de capellanias fundadas
com determinado rendimento para sustento e ordenao (estado
e formatura como se dizia) dos clrigos da famlia, em troca
na obrigao de umas tantas missas. Os que apenas queriam
aproveitar o ensejo de estudarem, recebiam ordens menores e
antes de se tornarem presbteros, abandonavam o benefcio a
outros. Tambm havia um ou outro morgadio nos puros moldes
europeus: Bolvar, por exemplo, era morgado, o que o no
impedia de mofar da nobreza americana.
De lado a lado se estabelecia por essa
Amrica Latina um desafio escarninho. Os governadores vindos
das duas metrpoles timbravam em mostrar escassa
considerao pela fidalguia colonial, mesmo para indicarem a
superioridade da sua prpria nobreza e assim, pensavam,
melhor firmarem seu prestgio (23). Troava-se
dos nobres trotando para suas ruins plantaes, montados em
ruins bestas, envergando ruins vestes e empunhando ruins
chapus de chuva.
A raa branca depauperara-se nos trpicos
sob a dupla ao do clima e das doenas, apesar da
resistncia peninsular primar qualquer outra e de serem os
espanhis e portugueses os melhores colonizadores da zona
quente. A degenerescncia era porm visvel em muitos casos,
quando a no corrigia a infiltrao de sangue mais rico de
seiva, vindo de fora, fosse da Europa, fosse da frica, ou a
no sustava o cruzamento com os indgenas. A superioridade
da famlia humana transplantada no intuito de conquistar ou
de colonizar revelava-se ocasionalmente em tipos anormais
como o de Bolvar, no qual reviveram, sobre o mesmo fundo
psquico dos seus maiores, "a necessidade de sensaes
violentas, o prazer das batalhas, a satisfao de anhelos
ingnitos de glria e de poderio". No Brasil o tipo que se
lhe assemelha mais o de Dom Pedro, um peninsular que da
me herdara muitos traos do carter espanhol.
Sonhadores de liberdade, o Brasil os
teve, como os de Minas em 1789 e os de Pernambuco em 1817,
uns e outros manifestando pronunciada tendncia
Organizao. Mais tarde porventura, era tambm o portugus
mais legalista, posto que se denunciando freqentemente seu
esprito jurdico pelas formas do litgio e da chicana. O
pessoal poltico das Cortes de Lisboa e da Constituinte do
Rio recrutou-se entre essa gente que era a que, ainda depois
da independncia, promovia revolues como a de Pernambuco e
outras provncias do norte em 1824, instigada por motivos
constitucionais mais do que pelo simples prurido de mudana
de regime.
Os nobres da terra como o morgado do
Cabo, contra quem e sua investidura oficial se fez a citada
revoluo de 1824, constituam em suma os nicos
representantes da tradio, porque o clero era todo ele ou
quase todo revolucionrio. Esses nobres afluram das
capitanias prximas quando a realeza foragida estabeleceu
sua corte tropical, e nela defrontaram com os cortesos de
gema, que formavam o squito portugus do monarca, e com os
mercadores tambm vindos do reino europeu, agora mais ricos
do que os demais pelo desenvolvimento tomado pelo comrcio e
igualmente com ambies aguadas pelo desdm de que eram
vtimas da parte de ambas as aristocracias.
Esta expresso, no tocante brasileira,
no significa absolutamente, muito pelo contrrio, que fosse
ela adversria de reformas: em toda a Amrica Hispnica
contaram-se os nobres coloniais entre os partidrios mais
decididos das idias liberais. Estas idias imperavam entre
a inteligncia do sculo XVIII, nos pases reputados de
maior atraso, muito mais geralmente e muito mais fundamente
do que se pode primeira vista supor, dada a impresso que
anda de ordinrio consorciada com essas sociedades beatas e
supersticiosas. O voltairianismo foi um trao freqente em
Portugal e portanto no Brasil, no s na Frana (24).
A luta no era tanto de idias como de
interesses. A famlia real emigrara de Portugal com 15.000
pessoas de comitiva e esta gente tratava de viver, ocupando
no s os melhores lugares, mas mesmo aqueles a que por lei
tinham direito os da terra. A presena da corte tinha
indiretamente trazido muitos benefcios e dotado o Brasil da
categoria de nao. O espetculo era porm desolador para o
observador estrangeiro, juiz mais imparcial, uma vez que se
lhe oferecia ensejo de assistir a ele. O bvaro von Weech,
que em 1830 escreveu suas recordaes de viagem entre 1823 e
1827 ao Brasil e Provncias Unidas do Prata25,
fala da rotina dos negcios, da almoeda dos favores e
graas, da explorao da populao pelos estancos e pelos
absurdos entraves aduaneiros postos ao trfico
inter-provincial, que assinalaram o reinado de Dom Joo VI
no terreno econmico e moral.
A realeza acabara por viver da corrupo
e na corrupo e a corte portuguesa retirara-se aps dar um
verdadeiro assalto ao errio brasileiro. So de von Weech as
seguintes palavras: "Os portugueses de torna-viagem
despojaram a terra de avultadas somas e, fiis ao seu
sistema de esgotamento at o ltimo momento, esvaziaram
todos os cofres pblicos, at a caixa das vivas e rfos.
S Sua Majestade carregou em ouro em barra e amoedado mais
de 60 milhes de cruzados, sem falar nos diamantes,
empenhados no Banco do Rio de Janeiro a troco de fortes
somas e que foram transportados sem o Banco ser indenizado".
No Brasil, como em toda a Amrica
Hispnica, faltava povo. Num dos seus ofcios para a
chancelaria austraca o encarregado de negcios Mareschal
observa que mesmo que o pas viesse a sofrer dos horrores da
revoluo, "o povo se cansaria da anarquia mais cedo do que
na Europa, porque ele se compunha na sua totalidade de
fazendeiros e no havia a ral que se torna nas mos dos
agitadores cego instrumento". A ral existia, mas era um
elemento inteiramente fora da vida poltica: o grau de
ignorncia, a condio de falta de cultura, vedava ao povo
propriamente qualquer participao na vida consciente da
comunidade.
Eduardo Prado notou com sua habitual
finura a intuio genial do pintor Pedro Amrico, colocando
no seu quadro da proclamao da Independncia, em plano
inferior ao prncipe e sua comitiva militar vibrante de
entusiasmo, com as espadas nuas e aladas e nos lbios o
grito pico, o carreiro boal, guiando seus bois, atnito
diante daquela cena cujo sentido completamente lhe escapava.
Segundo Condy Raget, o encarregado de
negcios americano, que era porm um maldizente e um
petulante com quem a nossa chancelaria teria mais tarde
dificuldades e dissabores, o governo brasileiro "mais
desejava reduzir do que acrescer o conhecimento poltico do
povo", ajuntando que os americanos "eram vistos pelo governo
com olhares suspicazes e eram to postos de quarentena pelas
autoridades e seus incensadores, como se receassem ser
contaminados pelos princpios republicanos dos quais
sabido sermos advogados" (26).
A prpria liberdade de conversao,
portanto de palavra, era na opinio desse diplomata menor
sob o imperador constitucional do que o fora sob o rei
absoluto. Verdade que este possua qualidades excepcionais
para um soberano da poca de governos paternais. A
atmosfera, primeiro turva por eminentemente cortes da
Lisboa pr-napolenica, depois singularmente agitada pelo
fluxo e refluxo da mar liberal, no lhe permitira brilhar
nesse meio: fora mister personagem o sol dos trpicos para
inund-la de luz.
O rei era justamente o que o comerciante
ingls Luccock, vinte anos residente no Brasil, descrevia
rico de bom senso, de uma bonomia espontnea que ele
acentuava, servindo-a com sua extraordinria memria e seu
conhecimento dos pequenos fatos ou incidentes relativos s
pessoas com quem se encontrava e com quem se entretinha, da
mesma forma que ao servio do Estado punha a penetrao
notvel do seu entendimento, sua capacidade de estudo
refletido dos problemas da administrao e a astcia,
predicado peculiar sua famlia.
Estas ltimas qualidades tinham-no
predisposto a uma poltica larga de melhoramentos, com que o
Brasil amplamente aproveitou e que contrabalanou no
esprito da gente melhor da terra o efeito deplorvel do
intercurso com os fidalgos da corte, o qual sobretudo
originou enfado e provocou o retraimento de grande nmero de
nacionais. Luccock nutria alis a opinio que os brasileiros
eram no geral " independentes, violentos e politicamente
mal-educados". Estavam de certo mais perto da natureza do
que os europeus, e sua independncia era a manifestao de
um sentimento que se generalizara nos ltimos tempos.
Escreve Luccock que nas camadas menos
cultas esse sentimento degenerara num falso respeito humano,
verdadeira impostura que fazia at ser reputado degradante o
sobraar pacotes e carregar utenslios de trabalho (27):
entre as camadas mais cultas o sentimento se deparara e
acrisolara ao ponto de traduzir-se por uma nobre aspirao
poltica. Quando o marqus de Sapuca dizia no Instituto
Histrico, do qual foi presidente, que "ningum pode
arrogar-se a glria, no digo s de ter feito, mas de ter
apresentado a declarao da emancipao poltica do Brasil;
este ato operou-se to aceleradamente e por tal unanimidade
de votos de todos os brasileiros, que pode dizer-se com
verdade que os fatos encaminharam os homens e no os homens
os fatos" - no podia ter em mente abranger o povo no
sentido restrito da palavra. Este, antes de emancipar-se
politicamente, tinha que se emancipar civilmente; antes de
independncia, carecia de alforria.
Acreditavam no poucos, mas tudo gente de
fora, que os escravos dariam grande trabalho, contagiando-se
nesse meio revolucionrio que estava sendo o brasileiro e
tentando contra os senhores represlias como as do Haiti. A
recordao do quilombo de Palmares fortalecia essa
impresso. Entretanto, seja merc da influncia da servido,
seja pela vigilncia constante e pronta represso dos
brancos - oficiais e particulares - os casos de sublevao
negra foram espordicos, no se espalharam, antes foram
facilmente sufocados (28).
O africano no foi o elemento
perturbador, mesmo porque se ia diluindo no europeu, e o
mestio era antes politicamente amimado. Conta o encarregado
de negcios da ustria que no dia do batizado da princesa
Januria, em 1822, a guarda da cidade foi confiada aos
regimentos de mulatos, assim se respondendo queixa dos
regimentos de milcias, compostos na maior parte de
caixeiros portugueses, que tinham apresentado uma petio a
D. Pedro contra o excesso de servio que para eles
representava a retirada da diviso portuguesa, obrigando-os
a descurarem seus prprios negcios.
O Rio de Janeiro em 1821 era uma cidade
absolutamente sui generis. Colnia de Portugal at um
lustro antes, no parecia uma cidade portuguesa: tinha todo
o exotismo do Novo Mundo dentro da sua moldura tropical e
americana, encaixilhando um arremedo de cidade peninsular,
de ruas estreitas moda rabe e chcaras de recreio moda
inglesa. Botafogo apresentava sua pequena baa orlada dessas
chcaras, a que servia de sentinela do lado do mar o Po de
Acar e de pano de fundo montanhas cobertas de matas
escuras, entre as quais se destacava o Corcovado, aonde
costumavam de quando em vez subir a cavalo o prncipe real e
a princesa Dona Leopoldina, que von Weech nos descreve como
excelentes ginetes, ele resplendente de mocidade, queimada
do sol a tez trigueira, ela rechonchuda e com a pele de
loura afogueada pelo calor.
Centro de escravido, parecia por esse
lado o Rio de Janeiro uma cidade africana, com negros a
fervilharem em todos os cantos - negros de ganho, carregando
toda espcie de fardos, desde os mais leves at os mais
pesados; negros do servio domstico, as negras de carapinha
comprida e alta formando cilindro, denotando escravas de
estimao, ao lado das outras, de carapinha curta; negros
nas fileiras dos regimentos; negros remando nas catraias,
puxando carroas de mo, transportando cadeirinhas metidos
nos varais, de grilheta aos ps cumprindo sentenas e
executando os servios da edilidade; negros barbeiros
ambulantes, operando ao ar livre in anima vili,
porque os da gente melhor (29) tinham suas lojas
e eram ao mesmo tempo sangradores; negros dentistas, de
condio livre, ao passo que os barbeiros entregavam ou
repartiam os lucros com o senhor.
O caldeamento das raas que a princpio
emprestara capital brasileira seu aspecto peculiar e
prprio, em que j havia um qu de alacre, de bulioso e de
irrequieto fornecido pelo cu transparente, pelo ar, ora de
fornalha, ora de suave e fresca brisa, pela natureza de
galas perptuas, pela fuso de povos diversos na cor, na
origem, no temperamento. Em 1822, por ocasio da
independncia, o Rio de Janeiro tomara porm o aspecto de
uma cidade bastante cosmopolita na feio europia.
O comrcio em grosso achava-se em grande
parte nas mos dos ingleses, que proviam os retalhistas
nacionais e franceses. Estes tinham-se especializado como
retroseiros, vendedores de miudezas e de artigos de modas.
Havia contudo bom nmero de lojas inglesas, principalmente
de seleiro, e os chamados ship-handlers, fornecedores
de viveres e bebidas para as embarcaes fundeadas ou em
trnsito. Os alfaiates eram em parte franceses, em parte
ingleses, assim como os padeiros; as tavernas todas
inglesas, rivalizando com as dos portos britnicos; os
ourives, da terra, traficando em artefatos do Porto -
cruzes, cadeias, botes, coraes e figas.
O artigo ingls - London superfine
- primava no mercado. Eram as chitas e madapoles
estampados, as casimiras, as quinquilharias, alm das
ferragens de Birmingham e da cutelaria de Sheffield. Diz
Mrs. Graham que os retalhistas brasileiros, alis mais
descuidosos no atender aos fregueses, vendiam mais barato do
que os estrangeiros, e que se encontravam sedas, crepes e
outros produtos da mo-de-obra chinesa, o que se explica
pelas comunicaes diretas com Macau.
O trato com os estrangeiros alterara
assaz os antigos hbitos de retraimento; modificara at a
cozinha e introduzira certos hbitos de civilizao, de
antes desconhecidos e que o clima dificultava na maior parte
do ano, convidando s sestas durante o dia e aos
deshabills caseiros. Escreve Debret que as senhoras
vestiam com apuro (recherche), garridice e at
espavento, usando geralmente cores claras e vivas. Primeiro
houve no vesturio feminino uma infiltrao inglesa, antes
de vir a francesa, definitiva, que baniu de todo o capote -
o joszinho, cujo sestro fora importado de Lisboa com
a corte. O cosmopolitismo desse tempo ainda era porm um
cosmopolitismo especial, de terra quente, ultramarina e
apenas comeando a conviver diretamente com os grandes
centros de cultura.
A mudana da corte trouxera um acrscimo
repentino e avultado de populao das classes superiores,
mas era um elemento descontente, que no encontrara nem boas
acomodaes, nem distraes do seu gosto no novo meio, pior
no seu conceito do que qualquer meio de provncia
portuguesa, porque era um meio dependente, um meio colonial,
brbaro no seu entender. Os fidalgos lisboetas
enfastiavam-se a morrer no Rio, sem as peras e bailados de
So Carlos, que o So Joo nunca desbancaria: nem as
tertlias e seres dos seus palcios, esparsos por todos os
bairros da cidade montanhosa e pitoresca debruada sobre o
Tejo; nem as vivas e alegres touradas ao sol quente, mas no
inclemente do vero portugus.
S Dom Joo VI gostava. A famlia real
vivera todo o tempo dispersa. A rainha Dona Maria I, louca
sem remdio, com suas enfermeiras, numa ala de convento
improvisado no palcio, onde recebia a visita diria do
filho extremoso; o prncipe regente em So Cristvo, numa
quinta particular transformada em pao, sem grandeza nem
conforto sequer, onde os dois filhos se criavam rdea
solta, domando potros no picadeiro, pregando sustos s
visitas com disparos de canhesinhos e touros desembolados,
entremeando de palavradas as conversas; a princesa Dona
Carlota e as filhas, umas louras e delicadas, outras morenas
e azougadas, pessimamente alojadas no casaro dos vice-reis,
adorno principal do largo do desembarque, o qual era o prazo
dado dos martimos, das meretrizes e da gente do comrcio.
Esta formava o grosso da melhor populao
fluminense at que se lhe agregasse o elemento aristocrtico
emigrado do reino. O Largo do Pao continuara porm a ser a
distrao favorita do pequeno burgus que vivia do aluguel
de um ou dois escravos, ia pela manh missa, passava
fresca na casa de telha-v as horas de calor e ali aparecia
das quatro horas s Ave Marias a tomar ar, comer doces de
taboleiro e beber gua do chafariz refrescada nos moringues
de feitio egpcio e mourisco, aurindo a virao martima. Ao
mesmo ponto afluam e mesma hora os negociantes espera
de navios que lhes vinham consignados e os capites das
embarcaes mercantes surtas no porto. Sentados sobre o
parapeito do cais, davam trela m lngua antes de
continuarem a sesso nas boticas do seu conhecimento. Os
oficiais das marinhas estrangeiras com unidades estacionadas
no Rio costumavam desembarcar noite, mas para passar
algumas horas nos cafs dos comeos da rua Direita, onde
depois se chamou o Carceller, do nome da pastelaria que a
se abriu.
Pelas ruas do Rio de Janeiro deparava-se
um carnaval perptuo comparado com o qual o movimento de
hoje figura de montono. Era tal diversidade a imagem de uma
sociedade de transio, na qual se misturavam os
preconceitos do velho tempo e as aspiraes da idade
moderna, o ceticismo das crenas tradicionais e o ardor dos
novos ideais, as recordaes da poca colonial e as
promessas do perodo independente que se aproximava a vapor.
Pouco faltava de resto para que, exceo feita dos
estrangeiros, no se encontrasse pelas ruas um homem,
sobretudo branco, sem o lao verde e amarelo e o mote
Independncia ou morte (30). Tempo esse de
intenso nativismo, em que o sentimento pblico mirava at
com escassa simpatia os ingleses pelas estreitas relaes
que a Gr-Bretanha mantinha com Portugal31.
Uma nota interessante que ento se
acentuou, mas que j soa na correspondncia do enviado dos
revoltosos pernambucanos de 1817, Cruz Cabug e que deve ter
florescido entre as lojas manicas do Novo Mundo, a do
esprito americano, em contraposio ao esprito europeu. Um
dos captulos de acusao ulteriormente formulados contra
Dom Pedro I seria o de ser o imperador, embora
constitucional, sectrio do sistema europeu, a saber, do
sistema monrquico, de opresso e tirania poltica, que a
Santa Aliana no s simbolizava como aplicava. Por esse
lado a doutrina de Monroe representava um produto das
circunstncias permanentes da Amrica.
No admira que mais tarde, Natividade
Saldanha, o poeta e secretrio da junta rebelde que
proclamou a Confederao do Equador com Manuel de Carvalho
Paes de Andrade sua frente, referindo-se poltica
imperial, a tratasse no s de vacilante como de
europia, e anti-americana, porque visava reunir nas
mos do mesmo soberano os cetros do Brasil e de Portugal. J
antes da independncia, no discurso que, reunidos,
proferiram ao prncipe regente os procuradores gerais das
provncias do Brasil em 3 de junho de 1822, dele requerendo
a convocao de uma Assemblia Constituinte do reino
americano, declaravam esses primeiros representantes da
nao: "O sistema europeu no pode pela eterna razo das
coisas ser o sistema americano; e sempre que o tentarem ser
um estado de coao e violncia, que necessariamente
produzir uma reao terrvel". Entre os ministros de Estado
que se conformaram com essa representao, j se
achava Jos Bonifcio.
Na representao em que o comrcio do Rio
de Janeiro se dirigiu ao senado da cmara para sustar o
efeito do decreto de 7 de maro de 1821, determinando a
partida real, eram recordadas como as grandes vantagens
produzidas pela transferncia da corte e que convinha
consolidar: assegurar dinastia um imprio "vasto e
precioso que pela fora das coisas e pelo andar dos tempos
se separaria de Portugal como a Amrica do Norte se separou
da Inglaterra", conservar a Portugal na Europa um grau de
considerao poltica que ele no poderia ter sem o Brasil e
"poder dominar o Atlntico e o comrcio do mundo, dando as
mos aos Estados Unidos da Amrica" (32).
CAPTULO III
A AGITAO CONSTITUCIONAL
A primeira das provncias do reino
americano a pronunciar-se pela nova ordem de coisas em
Portugal foi o Par, sendo o movimento insuflado por um
estudante brasileiro de Coimbra, de nome Patroni, que para
tal fim embarcou em Lisboa e aproveitou a ausncia do
capito-general, conde de Villaflor, para pr em ao as
vontades dos seus patrcios. Da junta provisria fez parte
como presidente o vigrio capitular Romualdo Antnio de
Seixas, mais tarde arcebispo da Bahia, marqus de Santa Cruz
e defensor da disciplina eclesistica contra o liberalismo
do clero nacional, ardente na poltica e frouxo na moral, do
tipo do padre Feij.
O vigrio Seixas aderiu ao regime
constitucional contanto que fosse mantido o catolicismo
romano como religio do Estado e Patroni voltou para Lisboa,
no como deputado, conforme ambicionava, mas como procurador
junto s Cortes, que ele surpreendeu mais do que eletrizou
com sua maneira oratria moda da Revoluo, invocando
enfaticamente, num jorro estonteador de palavras, os modelos
clssicos da histria romana e os princpios do Contrato
Social.
Seguiu-se a Bahia com um movimento (10 de
fevereiro de 1821) urdido por Cipriano Barata e alguns
militares. Foi o regimento de artilharia que fez o
pronunciamento, ao qual o capito-general, conde de Palma,
pretendeu resistir com o regimento de infantaria e a legio
de caadores, sob o comando do marechal Felisberto Caldeira
Brant (Barbacena), que j a deu prova da impercia militar,
mais tarde revelada em Ituzaing, no sabendo aproveitar o
seu encontro indeciso com Alvear. Avanou temerariamente com
200 homens at a posio ocupada pelos contrrios na
fortaleza de So Pedro, onde o capito Veloso, sem querer
ouvir-lhe, nem as ameaas nem as rogativas, mandou fazer
fogo ao dar Caldeira Brant ordem sua coluna para avanar.
Foi esta posta em debandada pela repulsa, ficando entre os
mortos o major Hermgenes Francisco de Aguiar e entre os
feridos de gravidade o major Antnio Bernardes de Castro.
Diante da defeco dos seus soldados, Caldeira Brant
retirou-se a todo galope, morrendo-lhe na fuga, de metralha
recebida, o cavalo que montava.
Cedendo o conde da Palma sorte adversa,
foi jurada na casa da cmara a futura Constituio
portuguesa: o capito-general invocou a razo, que confiava
seria grata ao rei, de evitar maior derramamento de sangue
dos seus fiis vassalos. A junta organizada foi
representativa das vrias classes sociais segundo o esprito
corrente e, nomeada das janelas para a praa, povo e tropa a
aprovaram "com vozes e levantando as mos para o ar". O
marechal Felisberto Caldeira Brant assinou o termo, da mesma
forma que o conde da Palma e todos os oficiais, inclusive os
superiores. Apenas o conde da Palma recusou a presidncia da
junta provisria, apesar desta "ter protestado sua adeso ao
governo supremo do reino de Portugal ante Deus todo-poderoso
e todos os santos da corte celestial". O santo da terra e do
dia era o tenente-coronel Manuel Pedro de Freitas Guimares,
o corijeu militar do pronunciamento, imposto pelo povo como
membro da junta, por esse elevado a brigadeiro e desde logo
encarregado do governo das armas. Palma e Felisberto acharam
de melhor alvitre embarcar para o Rio de Janeiro (33).
As notcias do pronunciamento da Bahia
alcanaram Lisboa a 15 de abril de 1821 (34) e
pelo fato de tratar-se da mais importante e rica das
capitanias brasileiras do tempo, apenas excedida em
populao por Minas Gerais, decidiam virtualmente da adeso
do Brasil ao regime constitucional, como depressa se
verificaria pelo ocorrido no Rio de Janeiro a 26 de
fevereiro. A Bahia achara afinal o ensejo de despicar-se e
tomar a dianteira em liberalismo corte fluminense, onde as
correntes polticas em redor do trono eram todas mais ou
menos tintas do direito divino.
A Bahia no estava todavia muito segura
do que viria a acontecer e as Cortes acudiram sem demora ao
seu apelo, despachando para l tropas com que a provncia
lograsse resistir capital, caso esta reagisse. Alis no
era desamparada a situao baiana. Segundo Mrs. Graham,
havia em So Salvador, fora a companhia que servia de guarda
de honra ao governador e o esquadro de artilharia de
campanha, que eram os dois corpos de linha que tomaram
partes opostas no pronunciamento, dois regimentos de
milicianos brancos, quase todos do comrcio, um de mulatos e
um de negros livres, de todos o mais til no servio como
infantaria ligeira e o melhor exercitado. Eram ao todo 4.000
homens bem armados e equipados, e o total subia a 15.000
agregando-se-lhes as milcias de fora, Cachoeira, Piaj,
etc. Os oficiais eram das melhores famlias e faziam essas
foras parada aos domingos, s vezes com as tropas regulares
portuguesas.
O Rio de Janeiro porm formaria tambm na
vanguarda e, no obstante parecerem fazer o jogo de Lisboa,
todas as provncias brasileiras acabariam por unir-se para
levarem a cabo a obra nacional, que seria reconstituir na
independncia a unidade comprometida pela adeso desagregada
ao liberalismo proclamado no Velho Mundo pelo reino europeu,
implicando o repdio da autoridade de um governo central no
reino americano. Inconscientemente, instintivamente, o
governo de Dom Joo VI visara um objetivo de coeso e ainda
o seu decreto de 18 de fevereiro de 1821 foi bem o que dele
diz Viveiros de Castro - o primeiro projeto governamental de
uma Constituinte nacional.
No movimento constitucional qual ele se
veio a desenhar na capital brasileira, houve uma progresso
manifesta. Quando todos, como escrevia Silvestre Pinheiro
Ferreira, pareciam ter fixado exclusivamente sua ateno
sobre os interesses portugueses, o soberano enxergou que se
no podia atender menos aos interesses do Brasil, cumprindo
no abstrair de nenhum dos dois pases "sempre que se
tratasse de regular negcios em que se acham cumulativamente
comprometidos os interesses de toda a monarquia" Silvestre
Pinheiro Ferreira chamava neste particular a considerao do
amigo a quem escrevia para a "fineza de tato que el-rei
possui na justa determinao do ponto cardeal sobre que
versa qualquer questo" (35)
A formao do constitucionalismo
brasileiro evoluiu rapidamente: a assemblia de procuradores
das cmaras e vilas com juizes letrados, a qual se projetara
consultiva da natureza das reformas a empreender para
melhorar a situao geral, deu na assemblia dos eleitores
fluminenses violentamente dissolvida na praa do comrcio,
uma espcie de Jeu de Paume com menos nfase, apesar
de tropical; o prprio futuro conselho de Estado, feio
peculiar do sistema imperial, corpo que organizou a
Constituio e tinha por misso amoldar a legislao,
esclarecendo-a quando no preparando-a, encontrou o seu
esforo na junta consultiva que precedeu a assemblia e
funcionou perto do trono, nesse perodo inicial de agitao,
to efemeramente que s contou uma reunio.
Seu fito era entender-se com os
procuradores que fossem chegando, em obedincia
convocao, acerca das medidas a serem adotadas, ocupando-se
de todos os objetos do decreto (36), a fim de
el-rei os poder decidir com pleno conhecimento de causa.
Esta junta, composta quase exclusivamente de brasileiros,
entre os quais Carvalho e Melo (depois visconde da
Cachoeira), Joo Severiano Maciel da Costa (depois marqus
de Queluz) e Mariano Pereira da Fonseca (depois marqus de
Maric) - todos conhecidos pelo seu liberalismo, o ltimo
at vtima da inconfidncia mineira - mostrou que a certa
distncia do trono j circulavam outras correntes polticas
de maior volume e velocidade.
Da sesso nica, que foi presidida por
Palmela e teve lugar na sua prpria casa em Catumbi, no
ficou ata, apenas a tradio corroborada pelos fatos, de que
a maioria era favorvel ida do monarca de preferncia do
prncipe, o que tendia a simplificar a soluo da
independncia, a qual com a presena de Dom Joo VI seria
infalivelmente retardada. Palmela por sua vez encontrou
nessa gente da colnia apoio para a sua compreenso mais
lcida e mais ampla dos acontecimentos, na qual cabiam, no
primeiro plano, providncias imediatas como a reforma das
finanas e a dos poderes dos capites generais, e mais
longe, porm a vista descoberta, as liberdades essenciais
que o esprito de igualdade ditava em toda a parte e que iam
da aplicao da justia repartio do imposto, o mesmo
para os ricos que para os pobres, para os poderosos que para
os humildes.
A junta contribuiria pois, ainda que no
passasse por assim dizer de projeto, para dar uma orientao
nacional agitao constitucional que estava sendo
principalmente provocada pelo elemento portugus das vrias
capitanias, dando a mo aos agitadores de profisso e outros
quaisquer elementos arruaceiros, segundo aconteceu na Bahia
e especialmente no Rio.
Propondo a Dom Joo VI a ida do prncipe
real para Lisboa e a outorga de uma Carta liberal em
antecipao a que as Cortes estavam elaborando, Palmela
traava o futuro monarquia portuguesa para que se salvasse
modernizando-se; assim como, sugerindo a elaborao de uma
constituio brasileira, salvava porventura o
dualismo e portanto a unio, amparando uma autonomia que as
Cortes pretendiam desfazer ao avocarem sua regulao, sob
pretexto de garantirem os princpios constitucionais.
Palmela oferecia pelo contrrio aquela autonomia, que era de
fato uma supremacia, como penhor iniludvel permanncia no
Novo Mundo da corte lusitana. O decreto de 18 de fevereiro
como que confirmava tal supremacia, colocando na rbita dos
destinos brasileiros as ilhas adjacentes ao reino e o
arquiplago africano de Cabo Verde, o que teria tido como
resultado fazer do Brasil a primeira nao sul-americana ou
mesmo americana com interesses extra-continentais.
* * *
Por um momento, sups Palmela bastante a
consulta aos brasileiros conspcuos sobre as necessidades
pblicas e a maneira de as atender, comeando pela restrio
da autoridade desptica dos capites-generais, mas como sua
habilidade era mais que tudo diplomtica e tecida portanto
de oportunismo, ele sabia ir-se gradualmente e
inteligentemente adaptando s novas condies que se iam
criando e s novas exigncias da situao como esta se ia
desdobrando.
A defeco da Bahia foi o seu caminho de
Damasco: provou-lhe que era mister agir mais eficazmente.
Deparava-se-lhe porm um constante e apaixonado antagonista
na pessoa do seu colega de gabinete Toms Antnio, velho
confidente do rei, cujo natural conservador embalava com
argumentos jurdicos e sentimentais. Aprovar o soberano a
revoluo, seria no seu conceito desanimar o partido
realista: "no lhe decente seguir os malvados e desamparar
os honrados".
A Carta Rgia de 28 de outubro de 1820,
autorizando umas Cortes consultivas, terminadas as quais,
iria uma pessoa real governar os portugueses, afigurava-se
ao ministro o cmulo das concesses compatveis com a
preservao da autoridade do soberano, autoridade cuja
eficincia estava na razo direta da sua integridade. Uma
capitis diminutio convidava a novos ataques. Palmela
citara a Carta outorgada por Lus XVIII, mas ela o fora como
graa, estando a Frana subjugada pelos inimigos de fora. No
caso de Dom Joo VI seria a causa mero temor dos
revolucionrios e eqivaleria a uma quebra dos intuitos que
animavam a poltica europia, alm de constituir na
inabilidade, porquanto dificultaria a obra da reao
nacional.
Quando passasse a vertigem revolucionria
- escrevia o proveto magistrado - era mister que se achasse
um rei e no um presidente: naquele tempo os presidentes
podiam menos do que os reis. Chamar a nobreza para com ela
repartir o poder, como o fazia crer a instituio, ideada
por Palmela, de uma Cmara dos Pares hereditria moldada
pela dos Lords, qual veio a ser criada em 1826, era
um perigo, um incitamento ambio popular, que se
desenfrearia, primeiro contra a nobreza, depois contra a
coroa. A Inglaterra contempornea j comeou a mostrar o
acerto das previses do dedicado conselheiro do monarca.
Passava-se isto em janeiro de 1821. A 30
estava assente a partida de Dom Pedro na sua misso que
Toms Antnio persistia em considerar sobretudo consultiva:
ouvir, indagar, remediar o possvel dentro das leis vigentes
e propor os melhoramentos de administrao e de justia. A
misso era de confiana e de alcance. O fiel ministro achava
o trono garantido com a permanncia no Rio de Janeiro do rei
e do neto que fosse um dia seu sucessor: ou a princesa Maria
da Glria ou a criana que a princesa Leopoldina esperava.
Aceitou o prncipe a incumbncia e Toms
Antnio rejubilava com suas intenes de fazer as coisas
portuguesa e no estrangeira. As Cortes seriam as
consagradas pelo antigo uso constitucional do reino e no o
ameaado arremedo de convenes nefastas, deliberando por
si, sem aprovao ou beneplcito real. Nisto explode a
primeira bomba dentro de casa. A notcia da adeso da Bahia
ao regime constitucional portugus precedeu na chegada ao
Rio a da adeso do Par, apesar desta se haver verificado 40
dias antes, a 1. de janeiro. A 17 de fevereiro entrava pela
barra do Rio a dentro o despacho do cnsul britnico em So
Salvador, relatando o ocorrido e anunciando que prestes
embarcariam o capito-general e comandante das armas a bordo
da fragata inglesa Icarus.
Imagine-se o rebolio na corte. Palmela
reclamava com a dobrada energia de quem vaticinara esse
desenlace, que para o trono era um aviso, para os liberais
um estmulo e para o povo um exemplo, a pblica adoo de um
programa constitucional. Urgia dirigir um manifesto nao
portuguesa e formular as bases de uma lei orgnica a serem
imediatamente concedidas, estabelecendo a diviso dos
poderes, a igualdade dos direitos, a liberdade de imprensa,
a segurana individual e de propriedade, a responsabilidade
dos ministros.
Recebeu Dom Joo VI essas propostas a 21,
consultou a respeito o filho, que no dia seguinte se
manifestou contrrio a quanto fosse cercear a iniciativa
real em matria de legislao, devendo caber coroa a
apresentao das leis e s Cortes a sua discusso e
aprovao antes de voltarem para a sano suprema, e ouviu
Toms Antnio, igualmente hostil, como sempre, a tudo que
significasse abdicar o monarca das suas atribuies e
privilgios. Por isso discordava de toda e qualquer proposta
do seu colega no sentido, em que ele as taxava, de ceder a
exigncias populares.
El-rei porm andava abalado com a
argumentao persuasiva de Palmela e com o que se lia nas
gazetas l do reino, e entrara a concordar com essa
linguagem nova. Uma frase sobretudo do seu ministro propenso
a cartas constitucionais ficara gravada no seu esprito:
"melhor dar espontaneamente do que por contrato". Da o
sugerir a Toms Antnio que se entendesse com Palmela antes
de dar sada ao decreto. Toms Antnio entendeu todavia que
no era caso para novos ajustes, devendo julgar-se encerrada
a discusso do assunto e parecendo-lhe excelente a teoria
dos fatos consumados. O antigo desembargador e chanceler-mor
do Brasil elevado a ministro assistente ao despacho, o que
lhe dava foros de chefe do gabinete, cerrara os ouvidos
mesmo s ponderaes do intendente da polcia que, melhor
inteirado do que se passava pelos conluios polticos,
recomendara que no se deixasse de falar no decreto em
Constituio: esta palavra mgica, aquela autoridade a
reputava indispensvel manuteno da ordem pblica que lhe
cumpria zelar.
Muito pelo contrrio o decreto brasileiro
de 18 de fevereiro assim datado, quando de fato era
simultneo na redao e na publicao com a proviso de 23 -
mutilava o projeto de Palmela, tendente conservao de um
dualismo que se esboara pouco antes to favorvel ao Brasil
que at lhe dava uma projeo extra-continental. A proviso
nomeava os membros da junta consultiva pela qual se
afervoravam os adversrios de uma Constituinte. A essa junta
se confiava o encargo de "preparar os trabalhos do
Congresso".
O princpio dual subsistia em todo caso,
mas a situao ficava indefinida pela falta de franqueza de
lado a lado. O decreto anunciava a partida do prncipe real
para Lisboa, sem poderes para aprovar em nome do soberano a
Constituio que ali fosse elaborada e, convocando para o
Rio em cortes privativas os procuradores das cmaras das
cidades e vilas de juizes letrados, destitua ipso facto
de representao boa parte do pas, mesmo para o exame
das disposies orgnicas que deviam ser aplicveis aos
domnios ultramarinos.
Sofriam assim restrio na sua amplitude
as promessas ou antes garantias constitucionais feitas ao
Brasil: de onde, combinando-se esta com a outra falha da
falta de poderes, da qual se doeu o elemento portugus e com
razo, desde que a Constituio ia ser obra da nao e no
ddiva do soberano, a agitao pelo juramento das bases e
por fim pelo juramento prvio de todo o instrumento, exigido
pelo pronunciamento militar e civil de 26 de fevereiro.
Espritos havia mesmo para os quais a
questo da preservao da unidade luso-brasileira era
secundria ao lado da questo puramente constitucional. O
visconde de Porto Seguro cita (37) o jornal
lisboeta - O Cidado liberato (um precursor do
Homme libre do Sr. Clemenceau), no qual colaborava o
mais tarde visconde de Seabra, emrito mestre de direito
civil, e que no seu primeiro nmero, de 1 de janeiro de
1821, se externava em favor da independncia mtua dos
governos de Portugal e Brasil, ficando Dom Joo VI no Rio de
Janeiro, ali outorgando uma constituio livre ao reino
ultramarino e mandando Dom Pedro na qualidade de rei
constitucional de Portugal. "Compostas assim ambas as
partes, um tratado que assente em bases de comum interesse e
recproca utilidade ligar estes dois reinos independentes
com um vnculo mais apertado e consistente que esse que at
aqui tem existido".
Na verdade a idia da independncia
brasileira precedera o estabelecimento em Portugal do regime
constitucional. Sem falar na conjurao mineira e outras
sedies coloniais, falhas de solidariedade e sem as
condies precisas para vingar, a trasladao da Corte
Portuguesa do Velho para o Novo Mundo provocara um movimento
geral de tendncia libertao poltica de que fora
manifestao ardente a revoluo de 1817, ao mesmo tempo que
proporcionara ao prncipe regente verificar em pessoa a
grandeza do pas que Portugal conservava na sua dependncia.
Refere Melo Moraes que j em 1812 se
fundara na freguesia de So Gonalo da Praia Grande uma loja
manica denominada Distintiva, cujo emblema no selo
grande era um ndio vendado e manietado com grilhes - o
Brasil - e um gnio - o da Liberdade - em ao de o
desvendar e desagrilhoar (38).
* * *
A junta consultiva foi um achado para
ambos os homens de Estado, conselheiros do rei, pensando um
e outro muito embora de modo oposto. Toms Antnio no a
dispensava, se e que a no suscitou, porque temia que a
publicao do decreto, sem as bases, pudesse parecer que era
para enganar. Assim aventava que se deixasse junta
discutir as referidas bases e entretanto esforou-se com Dom
Joo VI para organiz-la com pessoal capaz (39) -
"para no parecer paixo, mas s desejo de acertar",
comentava ele no parecer a el-rei.
A ambos estes, conquanto pretendessem ser
surdos s vozes correntes, chegara por fim a convico de
que a opinio pblica se estava declarando de modo
inequvoco por uma mudana sria. O comandante da polcia
avisara o soberano logo que se fez conhecido o decreto sobre
a ida de Dom Pedro, que este "fora mal recebido e que j se
falava descaradamente que o que queriam era a Constituio
de Portugal", pelo que, no mesmo dia 23, avisava o rei o seu
ministro de confiana que "como hoje se deve publicar o
decreto da junta, seria melhor ver se nele se dava a
esperana de que se devia aceitar a dita Constituio, com
as mudanas adaptveis ao pas, ou dar as bases" (40).
Sobre a junta se queria descarregar a responsabilidade de
ajeitar a nova Constituio portuguesa ao organismo poltico
brasileiro.
Palmela achara o momento oportuno para
pronunciar-se com a maior clareza e pusera, como hoje se
diria, a questo de confiana, solicitando demisso no dia
24, desgostoso com no adotar a coroa "um sistema claro e
segui-lo com lisura". Confessava-se cansado de lutar contra
a teimosia de Toms Antnio e persuadido de que "as meias
medidas eram ainda mais nocivas do que uma total inao",
irritando os nimos e indicando a falta de meios de
resistncia conjugada com a falta de vontade de conceder,
com a agravante de que as concesses que na vspera teriam
porventura sido suficientes para evitar a comoo receada,
j o no seriam depois daquela prova de tergiversao e de
fraqueza.
franqueza reuniu Palmela neste lance a
habilidade que lhe era costumeira. Em tais condies no
podia deixar de ser bem sucedida a cartada jogada, tendo
alis o diplomata tido o bom cuidado de conservar uma porta
aberta para volver ao palco sem precisar fazer espalhafato.
Com efeito declarou ao monarca que guardava silncio sobre a
splica de exonerao que lhe dirigia, para no argumentar
os embaraos da realeza e no parecer que procedia dominado
pela nsia de popularidade, a qual estava sempre disposto a
sacrificar ao cumprimento do seu dever de sdito leal.
Aflito, como escreve Porto Seguro,
despachou Dom Joo VI o seu inseparvel Toms Antnio para
junto do colega de conselho e conversaram os dois - "com
toda a boa f", segundo no mesmo dia 24 informava o
emissrio rgio, dando conta de que tinha concordado com
Palmela na convocao da junta para casa deste, o qual se
dizia agitado e incomodado, desaparecendo porm toda idia
de demisso diante dessa satisfao dada por el-rei
(41).
O empenho agora estava todo em se
assentarem as bases. "O conde entende, e eu tambm, escrevia
Toms Antnio a seu amo, que reconhecer j a Constituio de
Lisboa, que vem a ser a da Espanha, o ltimo caso, e por
isso se no deve j fazer, pois que dele se no pode passar
adiante". O leme passara porm j para as mos dos que Silva
Lisboa chama os cabalistas das sociedades secretas e dos
oficiais da tropa lusitana, um dos quais, general, apontando
para a espada, dissera - esta faz e desfaz
Constituies (42).
No seio da junta mesmo eram extremos os
pontos de vista e houve quem tratasse de discolos os
constitucionais portugueses, pelo que o visconde de Porto
Seguro, que de verdadeiro historiador tinha o instinto do
documento mas no tinha a imparcialidade proveniente da
ausncia de paixo, d junta a culpa do pronunciamento do
dia 26, agindo o despeito sobre a tropa e no permitindo o
ressentimento ainda vivo de Palmela que este se esforasse
para conter-lhe a insubordinao.
Silva Lisboa, o futuro visconde de Cairu,
testemunha presencial destes fatos e neles ator, refere que
Palmela props deliberao da junta as bases da projetada
constituio brasileira pelo modelo da constituio inglesa,
mas que a maioria votou "pela recepo, pura e simples, da
constituio que se fizesse nas Cortes de Lisboa". E Silva
Lisboa explica que essa idia de uma constituio para o
Brasil, distinta da de Portugal, no se conciliava com a
criao do Reino Unido e que aos brasileiros afigurava-se
"decair do predicamento a que antes havia sido elevada a sua
Ptria nativa" tal ameaa de ter "uma constituio
menos liberal da prometida intitulada Ptria Comum"
(43).
Num ponto conseguiu Palmela chamar a
junta ao seu modo de ver e ela pronunciou-se explicitamente
pela permanncia do prncipe e partida do rei. Dom Pedro
mesmo, na frase de Silva Lisboa, intercedeu com franqueza e
energia para que se adotasse como de inelutvel necessidade
o parecer da junta no tocante constituio, convindo
relembrar que nessa junta figurava parte do escol nacional
que ia figurar na poltica e na alta administrao do Brasil
independente. Seu papel foi portanto de conseqncia, seno
tanto pela sua ao, pelo menos pela sua organizao,
intuitos e pessoal.
Ajudavam desse modo a idia de completa
adeso s Cortes de Lisboa, repudiando a assemblia
legislativa local como a melhor preliminar do seu regime
constitucional, o elemento europeu e o elemento brasileiro.
Este porventura no agia, nas suas inteligncias mais
representativas, sem uma segunda inteno, que era a de
reservar-se para a soluo inevitvel do rompimento,
imediato ou no, deixando ao outro elemento a prvia
liquidao do saldo do regime colonial mediante a
disseminao tumulturia das idias democrticas. Os fatores
diretos foram porm a guarnio portuguesa, que no podia
deixar de entrar com entusiasmo no movimento, e os demagogos
da terra.
A dar-se crdito ao que se relata e
parece no s verdico como plausvel, Dona Carlota
Joaquina, que no era pessoa para passar sem se envolver em
intrigas polticas, influa no conluio dos agitadores,
sfrega como andava pelo regresso da corte para Portugal e
calculando que o melhor meio para isso era turvar as guas
brasileiras. O prncipe real estaria tambm feito com os
demagogos que trabalhavam na sombra, mas que uma vez
entabulada a inteligncia com Dom Pedro e por este recebidos
no pao, na sala do seu guarda-roupa, onde lhes teria
prometido seu eventual apoio para o movimento
constitucional, considerando descabida qualquer postergao
depois do pronunciamento da Bahia, chamaram a si para uma
ao fulminante uns tantos oficiais professando as mesmas
idias. Estes militares dividiram entre si a tarefa da
propaganda e do aliciamento dos soldados, no que estavam no
seu papel, servindo os interesses da me-ptria ou o seu
ideal revolucionrio (44).
O dia pertenceu mais que todos ao padre
Macamba. Ele foi quem, esquivando-se custdia que lhe
preparava a polcia de Paulo Fernandes Viana, suspeitosa da
conjurao, se fez o porta-voz da tropa portuguesa e
brasileira congregada do largo do Rocio, sob o comando do
brigadeiro portugus Francisco Joaquim Carreti, na madrugada
de 26 de fevereiro, tendo o batalho de caadores 3 dado o
exemplo, com o fim de impor a homologao antecipada e sem
modificaes da constituio desconhecida e em gestao em
Lisboa, bem como um novo pessoal governativo.
Dom Pedro fez nessa ocasio em ponto
pequeno o que em ponto grande faria com relao
independncia: ps-se cabea do movimento, no interesse
imediato e egosta da sua dinastia e tambm com a
preocupao mais larga de que ele se no tornasse anrquico.
Silva Lisboa pensa que "o herdeiro da coroa sendo de alto
entendimento, tinha o bom senso de reconhecer que era vo e
perigoso no seguir o esprito do sculo". No admira assim
que observasse quanto em redor de si se passava, chegando a
estar informado de que ao mesmo tempo que os chefes
militares tinham resolvido fazer aclamar com a fora armada
a constituio de Portugal "em clandestinos congressos de
ambiciosos pretensores de estabelecimento de democracias,
semelhantes as proclamadas no continente da Amrica, j se
havia organizado um Governo de seu molde, e repartido entre
si os primeiros empregos, e at nomeando a um por
Ministro dos Cultos, e a outro por Juiz do Povo,
o que ameaava as calamidades da Revoluo da Frana"
(45)
Veio o prncipe real de So Cristvo
acompanhado apenas de um criado, porque sua presena era
parte obrigada; uma vez l, no meio das tropas, ponderou
pr forma que a constituio portuguesa no vira ainda a
luz e que a Constituio para o Brasil ia ser
convenientemente estudada por pessoal habilitado e de
escolha popular, pois que as cmaras municipais
representavam tradicional e fielmente o terceiro estado.
Macamba desempenhou divinamente o seu
papel. No quis saber de razes: as tropas e o povo em
fraternal demonstrao reclamavam o reconhecimento e
juramento da constituio, tal qual viesse a ser expedida
pelas Cortes de Lisboa, e exigiam o saneamento da
administrao pela preferncia dada no provimento dos cargos
pblicos a patriotas avisados que no mais iludiriam o rei e
a nao. Marcelino Jos Alves Macamba era lisboeta, de 40
anos, cheio de corpo e corado (46).
Tinha por aclitos o padre Francisco
Romo de Goes e Duprat, igualmente mestres arruaceiros ou
antes oradores de frum, cujo aprendizado se fizera nas
lojas manicas numa poca em que a tribuna parlamentar e a
da imprensa no se achavam ainda franqueadas.
O movimento por eles impelido no teria
pois ido mais longe, como supe Porto Seguro, do que estava
pactuado, ou, mais precisamente, delineado com o prncipe
real, a saber, que seria revogado o decreto do dia 18. Silva
Lisboa, que foi um dos contemplados do dia, escreve
textualmente que Dom Pedro obtivera do pai no dia 24 um
decreto aprovando qualquer constituio portuguesa; "porm,
estando a corte no paroxismo da crise, e no se promulgando
logo tal decreto, como era indispensvel para tranqilizar o
pblico, o prncipe ardente, com inspirao celeste, e feliz
estrela, se resolveu a prescindir dos Conselhos vacilantes
do Gabinete; e, como procurador em causa prpria, tomou
sobre si a responsabilidade do Dia, vendo que no havia
momento a perder, e que a urgncia do caso no admitia
hesitao na deciso. Precaver irregular movimento da Tropa
foi o seu herico propsito. Ignora-se que prudenciais
expedientes empregou no dia 25 para conseguir este fim"
(47)
Porventura pretendiam os manifestantes ir
at o extremo de substiturem a autoridade real pela de uma
junta constitucional de governo, a qual Dom Joo VI aceitou,
a conselho - um conselho hbil e salvador do Toms Antnio
-, distribuindo contudo entre os seus membros os ministrios
e os principais cargos do Estado. Viram-se assim nomeados o
vice-almirante Incio da Costa Quintela para a pasta do
reino; o vice-almirante Monteiro Torres para a da marinha;
Silvestre Pinheiro Ferreira para a dos estrangeiros e
guerra; o conde da Louz, D. Diogo de Meneses, para
presidente do Errio. O bispo capelo-mor foi feito
presidente da Mesa da Conscincia; Antnio Lus Pereira da
Cunha (depois marqus de Inhambuque) intendente geral da
polcia; Jos Caetano Gomes tesoureiro-mor; o desembargador
Sebastio Lus Tinoco fiscal do Errio; Jos da Silva Lisboa
inspetor geral dos estabelecimentos literrios (48);
Joo Rodrigues Pereira de Almeida diretor do Banco pela
Fazenda Real; Jos de Oliveira Barbosa comandante da
polcia; o visconde de Assca presidente da Junta do
Comrcio; o general Carlos Frederico de Caula comandante das
armas.
Subsistia desta forma a autoridade
central brasileira, em vez de ceder o lugar a mais uma junta
local, a qual seria simplesmente a junta fluminense, como j
havia a baiana e a paraense. Apenas de Lisboa se podia
naquele momento esperar do consenso dos constitucionais dos
dois pases o desvendar de mais rasgados horizontes e
convinha irmanar os destinos dos dois reinos, conjugados
para os mesmos ideais de liberdade, para realizar os quais
pareciam porm insuficientes umas Cortes consultivas como as
que se tinha querido organizar para o Brasil, sob a
presuno de serem bastantes para o preparo poltico da
terra e adequadas sua condio social.
Entretanto a relutncia ou antes a
oposio com que na Bahia era acolhida a notcia dos
decretos de 18 e 23 de fevereiro, recebida oficialmente pela
junta respectiva antes da dos sucessos de 26, mostra que o
sentimento brasileiro era idntico nos seus principais
centros de atividade e que nenhum se contentava mais com
instituies imperfeitas. Graas porm ao caminho que tinham
tomado os acontecimentos no Rio, pela interveno do
prncipe e sobreposio de uma autoridade central embora em
vspera de regencial e para alguns nominal, justo dizer
com Porto Seguro que o Brasil se livrara de obter
instituies mais adiantadas custa do seu fracionamento.
Se as no obteve logo, acabou todavia por
obt-las muito breve e mais completas. Entrementes esta
constituio portuguesa ou espanhola que a tropa e povo
tinham aclamado, significava para os do reino europeu a
continuao da unio e para os do reino americano a cessao
de uma enfiada de abusos e de iniqidades, mormente
cometidas por uma polcia desptica e irresponsvel. Pelo
menos no mais permitiam tais atentados os direitos exarados
naquela carta de redeno - direitos de propriedade, de
opinio, de locomoo, as liberdades essenciais, numa
palavra, que at ento faltavam.
Por isso era sincero e geral o regozijo.
As Cortes de Lisboa exultaram com o sucedido, mas no menos
exultou o jovem prncipe que figurava de verdadeiro dador ao
Brasil da constituio por ele proclamada do terrao do
teatro de So Joo, entre os membros surpreendidos do senado
da cmara e na presena do bispo capelo-mor, pouco
contrafeito porque fora chamado para lanar a beno e no a
absolvio. As escolhas tinham sido de um raro acerto. Por
certo a elas presidira algum critrio mais alto do que o
mero instinto popular, ainda que este possa ser geralmente
feliz. Havia nomes verdadeiramente prestigiosos como o de
Silvestre Pinheiro Ferreira, jurista e filsofo de elevada
inspirao, nomes respeitveis como o do economista Silva
Lisboa, e uma poro de gente sria, ilustrada e capaz,
tanto do ponto de vista administrativo como do ponto de
vista moral.
* * *
El-rei tinha afinal que partir... mas no
seu ntimo ainda hesitava, tergiversava e apelava para o
imprevisto que at a sempre lhe obedecera e at
pressurosamente, mesmo porque o imprevisto no passava
muitas vezes do resultado dos seus clculos. Destarte o
decreto de 7 de maro foi o que os franceses chamam un
ballon d'essai.
Este decreto, apologtico de uma
constituio poltica "conforme aos princpios liberais que
pelo incremento das luzes se acham geralmente recebidos por
todas as naes", declarava ser a primeira e sobre todas
essencial condio do pacto social, nesta maneira aceito e
jurado por toda a nao, dever o soberano assentar a sua
residncia no lugar onde se ajuntarem as Cortes, para lhe
serem prontamente apresentadas as leis que se forem
discutindo, e dele receberem sem delongas a sua
indispensvel sano". Silva Lisboa achava mais capciosas
que especiosas as razes de Estado dadas para tal residncia
voltar a ser em Portugal, no havendo motivo insupervel
para no ficar el-rei imvel na Corte do Brasil" e a
convocar os deputados do Reino Unido. O Brasil estava
reconhecido pelas potncias estrangeiras como sede da
monarquia e a Santa Aliana devia mesmo preferir que a
realeza a permanecesse "para contrastar, ou contrabalanar,
os impetuosos arrojos de irregulares Repblicas".
Seguia-se no decreto um apelo
sentimental, declarando el-rei exigir "a escrupulosa
religiosidade com que me cumpre preencher ainda os mais
rduos deveres que me impe o prestado juramento, que eu
faa ao bem geral de todos os meus povos um dos mais
custosos sacrifcios de que capaz o meu paternal e rgio
corao, separando-me pela segunda vez de vassalos, cuja
memria me ser sempre saudosa, e cuja prosperidade jamais
cessar de ser em qualquer parte um dos mais assduos
cuidados do meu paternal governo".
O que significava semelhante justificao
da partida do soberano, que fora alis reclamada de Lisboa,
pelas Cortes Gerais, em ofcio de 15 de janeiro, juntamente
com a vinda dos representantes brasileiros, que no mesmo dia
7 de maro eram mandados eleger em todo o Brasil de acordo
com o processo da lei orgnica espanhola, j para o mesmo
fim adaptado em Portugal? Significava que a situao
poltica no ficara regulada no espetculo dado no Rocio. Os
atores tinham tomado gosto pelos seus papis e pelas
representaes provocadas pela persistncia de um estado de
coisas que o juramento da constituio deveria ter
modificado. O novo governo depressa se inteirou de que se
urdia novo pronunciamento entre a tropa de linha portuguesa
e as milcias compostas de empregados de comrcio.
Para melhor garantir a fidelidade da
tropa nacional, outro decreto de 7 de maro estabelecia
certas equiparaes de soldos entre os oficiais dos
exrcitos do Brasil e de Portugal. Qualquer movimento que se
projetasse deitava porm razes num solo frtil em
agitaes. Nem devia ser estranho ao que se preparava o
herdeiro da Coroa, pois que Silvestre Pinheiro Ferreira
aconselhou ao rei sua deteno na fortaleza de Santa Cruz,
como o melhor meio de acabar com o desassossego pblico. Os
doutrinrios so por via de regra, quando se zangam,
decididos e at violentos, mais facilmente talvez do que os
profissionais da ao.
Dom Joo VI, sempre o mesmo, achou a
soluo em demasia audaz. Silvestre Pinheiro Ferreira no
obteve mais do que a exigncia, que as circunstncias
tornavam muito platnica, feita pelo prncipe real aos
oficiais, de agirem somente de conformidade com as
instrues governamentais, um paliativo para adormecer por
alguns dias a indisciplina ou melhor a anarquia. Como porm
governar um pas que de fato se achava numa interinidade
constitucional? Segundo frmulas carunchosas, como o queria
a corte? O povo ou antes a opinio dos que lhe assumiam o
nome e avocavam os direitos antes das responsabilidades,
entendia que, at entrar em funo a constituio, j se
poderia ir ensaiando uma co-participao entre a nao e o
soberano por meio de um conselho ou junta mais do que
consultiva, deliberativa, conquanto seu voto fosse apenas
suspensivo, cujo assentimento seria declarado necessrio
para os casos de monta.
O caso da partida de el-rei era um
destes, mas el-rei no o considerava definitivamente
resolvido, apesar de publicamente anunciado que ao soberano
deviam acompanhar os deputados procuradores s Cortes Gerais
do Reino Unido cujo ponto de embarque fosse o Rio do Janeiro
e que j se achassem eleitos na data da partida real.
Continuava o que Porto Seguro chama "as
hesitaes e maquinaes" relacionadas com o regresso de
el-rei, dando porventura causa priso na ilha das Cobras,
at hoje muito pouco explicada, dos desembargadores do pao
Maciel da Costa e Carvalho e Melo e do antigo tesoureiro-mor
Targini (visconde de So Loureno), no tendo a mesma sorte
o almirante Rodrigo Pinto Guedes (futuro baro do Rio da
Prata) por se haver escondido.
Esta priso precedeu na verdade o decreto
de 7 de maro, pois que ocorreu a 3, sendo dada como razo o
livr-los de agresses populares contra eles preparadas,
qui pelas suas idias notoriamente liberais. A recluso
durou de resto mui pouco, sendo o futuro marqus de Queluz
em breves dias despachado para a Europa, com uma misso
ostensiva em Roma e a misso confidencial de prevenir o rei,
em caminho para Lisboa, se lhe no parecesse prudente, pelo
que ali observasse, que fosse a monarquia acolher-se
sombra das Cortes (49). Dom Joo VI mudaria ento
de rumo; na altura da Bahia alis mostraria ele vivo desejo
de aproar de novo na primeira terra brasileira que o
recebera. Melo Moraes refere que a inteno de el-rei,
diante das novas manifestaes de fidelidade do seu povo
ultramarino, provocadas pela deciso do seu regresso, fora
dissolver as Cortes portuguesas e para tanto, isto ,
estudar e preparar o terreno, enviara Maciel da Costa,
malogrando-se o plano pela forada arribada do emissrio a
uma das ilhas adjacentes ao reino.
Priso e misso acham-se portanto
igualmente envoltas em mistrio. Das cartas de Silvestre
Pinheiro Ferreira o que se colhe que os por ele chamados
anarquistas, a saber, os revolucionrios, persuadiram o rei
sob "cavilosos pretextos" a mandar efetuar aquelas prises
sem anuncia nem sequer conhecimento do ministro,
"satisfazendo vistas particulares de torpe ambio, ou de
sanguinria vingana" com o intuito apregoado de proteger as
aludidas personagens contra as iras da multido. O rei
protestou ao seu ministro, que solicitara exonerao pela
ignorncia em que fora tido do ato, haver agido to somente
no interesse da tranqilidade pblica, e de fato a custdia
em que os detidos foram colocados, incomunicveis, logo se
levantou, tornando-se pblica sua inocncia.
A misso de alta confiana dada a Maciel
da Costa exclui a hiptese de republicanismo de idias, que
foi aventada, podendo no entanto perdurar a de nacionalismo.
Para Silvestre Pinheiro Ferreira os maquinadores desses
movimentos sediciosos a que ele se refere eram os militares
portugueses da diviso auxiliadora e "os paisanos da rua da
Quitanda", isto , gente de balco -"mercadores, na sua
frase, rudes e ignorantes nas matrias da administrao". O
publicista, a quem eram familiares os sucessos da Revoluo
francesa, comparava a fermentao da nossa rua da Quitanda
com a do Faubourg St. Antoine de Paris, mulos ambos os
bairros no "esprito vertiginoso".
Contra o visconde de So Loureno, o
clebre Targini, tesoureiro culpado pela voz pblica de
malversaes e que de fato podia por isso sofrer desacatos,
que foi mantido o ato de priso durante a prestao das
suas contas, dando-se assim satisfao opinio, e a ele
dando-se a cidade por menagem para no prejulgar o caso e
estorvar a necessria defesa do alto funcionrio,
incriminado de alcance na sua gesto dos dinheiros pblicos.
Targini tinha numerosos inimigos e
comeou a t-los pela sua severidade burocrtica quando
esteve no Cear como escrivo da provedoria da capitania,
assim encetando em 1783 sua carreira de funcionrio da
fazenda, e depois em 1799 como escrivo-deputado da junta de
fazenda autnoma. Malquistou-se ento com os governadores
por questes do fisco e com os ouvidores por denunciar seus
furtos na arrecadao dos bens de defuntos e ausentes
(50). Como que o Crbero se transformou depois em
dilapidador? No haveria grande dose de calnia nessa
difamao? Hiplito dele escreveu que nem portugus sabia e
entretanto Targini traduziu corretamente em verso o
Paraso Perdido de Milton e traduziu tambm o Ensaio
sobre o homem de Pope em versos soltos.
Culpam-no de fazer descontos em
pagamentos, mesmo de honorrios e penses, aproveitando-se
desses abatimentos: ele porm alegava falta de dinheiro no
errio. O certo que, como judiciosamente faz notar o Sr.
Gomes de Carvalho no seu interessante trabalho histrico5l,
todos os ministros sob cujas ordens serviu Targini - Aguiar,
Barca, Bezerra, Toms Antnio, Arcos - alguns at seus
desafetos e homens de notria probidade, nunca encontraram o
que exprobrar-lhe e aprovaram suas contas. O inqurito feito
j sob a regncia de Dom Pedro estabeleceu a integridade do
funcionrio, a quem foi concedida uma penso, o que foi um
motivo mais de acusao e malevolncia contra Arcos, que
nessa ocasio se supunha dominar o prncipe.
O visconde de So Loureno, segundo o
testemunho oficial, continuara de fato no Rio a mostrar o
zelo com que no Cear percebera os impostos e forara os
contratadores ao cumprimento dos seus encargos (52).
Nada disto porm resolvia definitivamente
o problema da nova trasladao da corte. O conselho de
governo votou pela ida de Dom Joo VI, com o parecer
discordante de Silvestre Pinheiro Ferreira. Fomos
vencidos, dizia-lhe o monarca, que remdio, e
punha-se a chorar pelos cantos, j ralado de saudades,
segundo relatava a marquesa de Jacarepagu, que foi educada
no pao (53). Alguma alegria devia voltar-lhe com
a notcia da oposio que estava levantando a resoluo. O
comrcio representava ao senado da cmara para que sustasse
o embarque, recordando as vantagens acarretadas pela mudana
da corte para o Brasil.
A Dom Joo VI deviam soar em extremo
fagueiras as palavras dos que havia anos, e agora
especialmente, o aconselhavam a abandonar Portugal - "aquele
to desgraado, segundo eles se exprimiam, como
insignificante pedao de terra, aplicando todos os seus
reais cuidados a organizar neste vastssimo continente um
imprio que pela sua extenso, pela variedade de seus climas
e pela incomensurvel riqueza das suas produes no pode
deixar de vir a ser dentro em poucos anos o mais florente de
quantos se conhecem na histria" (54)
Por isso os que j pensavam na
independncia, os que formavam o que Silvestre Pinheiro
Ferreira chamava: "o partido brasileiro", desde comeo se
empenharam pela ida do rei e permanncia do prncipe. Os que
queriam conservar o rei no Brasil, tivessem ou no uma
inteno secreta, fossem conservadores sob uma face e
revolucionrios sob outra, desejavam a prolongao do
dualismo, o qual se podia prestar interpretao que lhe
quisessem dar, embora redundasse numa falsificao do seu
princpio bsico. Esses constituam a maioria da populao
apta a discernir os sucessos polticos. As solues radicais
pertencem sempre s minorias e a minoria "brasileira" via
que o rei ainda era o maior obstculo separao.
Os ltimos anos do reinado americano de
Dom Joo VI foram infelizmente manchados de sangue. J em
1817 a represso da mais generosa das revolues envolvera o
sacrifcio de patriotas abnegados, que eram a fina flor da
inteligncia e do carter da terra. Agora registra-se como
eplogo o incidente da praa do comrcio, cuja repercusso
foi enorme.
O constitucionalismo vitorioso no
admitia que o regente ficasse com poderes discricionrios:
para que ento haver feito vingar a limitao da autoridade
absoluta do rei? Silvestre Pinheiro Ferreira deu razo aos
que assim pensavam e convocou os eleitores das parquias que
deviam no Rio de Janeiro designar os da comarca, eleitores
finais dos deputados, para funcionarem como um embrio de
parlamento, aprovando os nomes dos auxiliares do prncipe e
o regimento do governo a vigorar at a normalidade
constitucional. A oficialidade entretanto tinha jurado
neutralidade para no embaraar o andamento das coisas
pblicas.
A assemblia dos eleitores, presidida
pelo desembargador-ouvidor, teve por secretrios Jos
Clemente Pereira e Joaquim Gonalves Ledo, o primeiro j
nomeado juiz de fora da capital e ambos slidas colunas da
independncia como vieram a salientar-se no ano imediato.
Fosse influncia dos que se improvisaram seus leaders,
fosse reflexo do estado geral dos espritos, essa
assemblia revelou-se inesperadamente possuda de nsia
reformista, sendo tanto mais singular este fato quanto a
compunha especialmente gente da roa, a pequena burguesia
rural entre a qual so geralmente mais enraizados os
instintos conservadores. As formas porm no foram
respeitadas. Macamba e Duprat (55), que se
achavam na galeria, sentaram-se sem cerimnia entre os
eleitores, intervieram nos debates e dirigiram-nos, tornando
a reunio irregular e tumulturia.
A manifestao em favor da adoo
provisria da constituio espanhola, para que o Brasil no
ficasse sem uma lei fundamental de garantias, foi porm, sob
instigao daqueles tribunos, feita coletivamente pela
maioria, assim ganhando em imponncia. Brasileiros e
portugueses, fascinados pela liberdade, uma vez mais fundiam
suas aspiraes, sem arcas encouradas, para no imolarem
aquilo que j tinham teoricamente conquistado em matria de
franquias constitucionais.
No deixavam contudo esses de ter
oposio, formada pelos partidrios da regncia, melhor
dito, os adeptos do regente e do ministro que ia ser seu
mentor - Arcos -, os quais viam os destinos do pas em
excelentes mos e no descobriam necessidade de garantias, e
pelos que no Brasil s queriam enxergar um escravo submisso.
Ressurgiu a idia de uma junta fiscal do
governo, que servisse de contrapeso autoridade dos
ministros escolhidos pela coroa os votos da assemblia foram
levados Quinta da Boa Vista por uma delegao composta de
dois desembargadores, um sacerdote e um lente. El-rei cedeu
no tocante Constituio de Cadiz, que impediria o
desgoverno, mas reservou seu parecer sobre a junta ou
conselho para depois da sua organizao. Tudo isto levou
naturalmente tempo, acrescendo que chovia a cntaros e a
delegao comeou por ir ao Pao da Cidade, como se houvesse
a probabilidade de encontrar Dom Joo VI junto da sua
esposa.
Entretanto a assemblia, entregue a si,
prestava ouvidos a boatos justificados pela exibio dos
preparativos da retirada iminente da famlia real,
completados pelo das tropas de prontido nos quartis, e
agitava-se histericamente ao sabor de proposies
tendenciosas. Espalhou-se que a famlia real embarcava,
ficando os delegados retidos como refns, e vista disto
pensou-se era impedir a sada da frota antes de ser dada
satisfao s reclamaes do povo. Erguendo-se num mpeto
altura da soberania nacional e como que a encarnando, sem
poderes para tanto, a assemblia mandou intimar as
fortalezas da barra de no deixarem sair embarcao alguma
sem o seu consentimento.
Neste ponto regressou a delegao
portadora da anuncia rgia, o que deu origem a exploses
inauditas de entusiasmo. Apesar da noite ir muito adiantada
e do cansao resultante dos debates e deliberaes,
tratou-se sem demora de eleger a junta. Parecia que a
assemblia no queria dissolver-se sem haver resolvido todos
os problemas da vida pblica da futura nacionalidade. Sua
dissoluo, conseqncia desta atitude, teve lugar fora,
num ataque intil e traioeiro de que no coube a culpa a
Silvestre Pinheiro Ferreira, a quem o rei dera faculdades
para proceder ao despejo.
O resto do conselho real era pelo emprego
da maior violncia: s o ministro do reino fora pelo da
persuaso. Do choque entre tropa e eleitores s podia
resultar o desastre que ocorreu quando se frustou o plano de
Silvestre Pinheiro Ferreira, que foi o que el-rei adotou.
Consistia esse plano em intimar a principal autoridade
militar o encerramento da assemblia com as foras porm
postas distncia, nas embocaduras das ruas, apenas para
inspirar respeito e colher na passagem os agitadores
profissionais.
O ouvidor presidente solicitou um
curtssimo prazo - meia hora - para se concluir a eleio da
junta, ao que o general Caula aquiesceu, partindo para o
largo do Rocio, onde se estavam congregando as foras que,
apesar da injuno do comandante das armas em nome do
ministro da guerra, avanaram sobre a praa em obedincia a
novas ordens que, dadas embora pelo monarca, lhe foram na
opinio geral arrancadas pelo seu herdeiro, aulado segundo
muitos pelo conde dos Arcos, de quem se diz vagamente, mas
no se pode dizer precisamente, que em toda esta crise se
colocara do lado dos constitucionais.
O conde dos Arcos costumava colocar-se,
como de si prprio espirituosamente dizia-o duque de Morny,
du ct du manche. No gostava de ser enxotado:
preferia varrer os outros do palco onde se movia.
Administrador diligente, homem de resolues prontas e
rpidas como se revelou por ocasio da revoluo de 1817,
que ameaava propagar-se Bahia, terra do seu governo,
mostrou tambm quanto podia ser desumano. Por esse lado no
injusto atribuir-lhe a responsabilidade que tanto
prejudicou a reputao do prncipe nas provncias, fazendo
descrer dos sentimentos liberais de que parecera animado a
26 de fevereiro. Mais prejudicado seria ainda o mesmo Arcos,
cuja influncia pouco mais durou de um ms.
O que h de positivo com relao ao
incidente que, ao romper da alva, quando a praa do
comrcio j se achava em parte evacuada da concorrncia que
a ela aflura, foi a reunio alvo de uma investida militar.
Os que ainda ali se encontravam, bem como os que recuaram da
rua e se refugiaram de novo no salo, presos de pnico,
saltaram pelas janelas do lado da baa, fugindo fuzilaria
cerrada e depois carga baioneta do corpo de caadores,
de que resultaram trs mortos e uma poro de feridos de
gravidade, entre eles Jos Clemente Pereira.
Como sempre acontece, as verses diferem
e oficial no falta a parte obrigada da provocao.
Segundo esta verso (56), ao marchar a companhia
de caadores para tomar a embocadura da rua do Sabo, um dos
soldados, postado na entrada da praa, foi apunhalado por um
indivduo de dentro, dando motivo a que seus camaradas, sem
esperarem ordens, matassem o agressor. Outro eleitor ou
popular do lado dos eleitores disparou a pistola sem ferir
ningum, no podendo porm os oficiais ter mo aos soldados
que iam dispersar a reunio e capturar os amotinadores.
Passava-se isto entre 20 de abril, sbado
de aleluia, e o domingo, 21, aniversrio da execuo de
Tiradentes. 22 o rei, cuja natural pusilanimidade
encontrara a reao em interesses cortesos que vieram em
seu socorro, revogou por um decreto a Constituio de Cadiz
que outorgara e que fora nas suas palavras impetrada por
"anarquistas mal-intencionados", quando na verdade o fora
por gente de sisudez e posio. No mesmo dia Dom Joo VI,
que desse modo se divorciava dos seus sditos ultramarinos
patenteando a mais triste fraqueza, concedia a regncia ao
filho, cuja vontade se afirmara por um ato destemperado que
sacudia sobre as cs de seu pai uma responsabilidade que
veio afinal a recair sobre a sua fronte juvenil.
Embarcando a 24, no meio do silncio
gerado pelo trgico episdio, Dom Joo VI deixava atrs de
si o primognito como seu lugar-tenente, dispondo por assim
dizer de todas as faculdades reais, podendo prover todos os
empregos civis, militares e eclesisticos, exceo dos
bispados, para os quais lhe era entretanto lcito propor
pessoas que achasse dignas; comutar ou perdoar penas de
morte; resolver quanto dissesse respeito administrao da
Justia e Fazenda; fazer guerra ofensiva ou defensiva em
caso de urgente necessidade e fazer trguas ou tratados
provisrios; conferir condecoraes. O Brasil, para
constituir um Estado independente, carecia apenas de possuir
uma representao exterior privativa e o regente, para ser
um soberano, precisava de no ter que mandar a Lisboa,
assinatura real, os diplomas dos funcionrios por ele
nomeados e que entravam logo no exerccio e fruio dos seus
lugares, constituindo a assinatura uma mera formalidade.
Tambm precisaria de poder celebrar tratados de paz
definitivos.
Formavam o conselho do prncipe regente
dois ministros de Estado - o conde dos Arcos, do reino e
negcios estrangeiros, e o conde da Louz, da Fazenda - e
dois secretrios de Estado interinos - o marechal de campo
Carlos Frederico de Caula, na Guerra, e o major-general da
armada Manoel Antonio Farinha, na Marinha.
CAPTULO IV
A POLTICA ULTRAMARINA E A
POLTICA DAS CORTES
O 5 DE JUNHO
A poltica das Cortes anunciou-se
verdadeiramente no decreto de 18 de abril, que reconhecia as
juntas criadas nas provncias brasileiras para estabelecer o
novo regime constitucional, considerando benemritos os que
tivessem promovido a mudana, e mandava proceder no reino
ultramarino eleio de deputados ao Soberano Congresso
Constituinte, de acordo com o decreto de 22 de novembro de
1820.
Toms Antnio achava absurdo que
deputados brasileiros fossem "mandados para as opinies
perigosas de Portugal" em vez de se reunirem em redor do
rei, que estava no Brasil. Um dos mais ponderados e
esclarecidos espritos brasileiros dos nossos dias (57)
entende do mesmo modo que a poltica do reino
ultramarino devia ter sido outra diversa da que foi nessa
crise de emancipao nacional. A verdadeira poltica
consistiria em "quebrar toda a solidariedade com as Cortes e
reter o rei no Brasil, para tirar deste fato todo o partido
possvel".
Dom Joo VI no pedia outra coisa e s os
acontecimentos, ou melhor, o jogo de interesses a que o
soberano no teve o vigor bastante para sobrestar, o levaram
a regressar para Lisboa. Sua permanncia no podendo
implicar, mesmo com o divrcio das Cortes, a renncia
soberania lusitana e a converso da Casa de Bragana numa
dinastia somente brasileira, porque afinal Portugal que
era o bero da monarquia tantas vezes secular, teria porm
significado a continuao da dualidade luso-brasileira. Ora
contra esta dualidade, tal como a fundara Dom Joo VI, tanto
eram os espritos ultramarinos vidos de independncia como
as prprias Cortes portuguesas.
As Cortes queriam um s reino com duas
sees - europia e americana - e no dois reinos reunidos
na pessoa do monarca, como a ustria-Hungria e a
Sucia-Noruega de ontem. A recompensa por elas dada pela
prioridade do movimento constitucional no Par foi fazer
esta capitania "provncia de Portugal", assim se
despedaando a unidade administrativa que o Brasil carecia
ter a peito para formar um composto forte como era
homogneo. Nestas condies no podia o intuito do
constitucionalismo portugus ser outro seno promover a
recolonizao, disfarada ou mesmo franca, capciosa ou mesmo
violenta, e tanto se arreceava o Brasil desse perigo que,
logo na sua adeso, a Bahia frisou o ponto da "igualdade
absoluta de direitos entre os povos dos dois hemisfrios".
No havia entretanto junta nem capitania mais devotada aos
interesses portugueses, nem que maior repugnncia mostrasse
a obedecer regncia brasileira.
O Sr. Gomes de Carvalho no julga alis o
reconhecimento das juntas uma provocao, nem mesmo uma
ameaa, porque a publicao no Brasil do decreto das Cortes
de 18 de abril foi posterior ao pronunciamento de vrias
provncias - Par, Bahia, Pernambuco - e da prpria corte.
Se no gerou a desagregao, definiu-a porm e
aproveitou-lhe o impulso iniciado para assentar a situao
que devia fatalmente estender-se ao sul do pas e abras-lo
por inteiro num delrio de constitucionalismo, repassado de
lealdade para com a antiga metrpole.
No competia certamente ao Brasil
rejeitar as franquias polticas que lhe eram trazidas pela
revoluo portuguesa, contanto que se no prestasse ao plano
ltimo que continha essa transformao liberal e que era
servirem-se os homens de 1820 das instituies
representativas para chamariz do povo brasileiro e como
fator do restabelecimento de uma unio tal como j no tinha
razo de ser. A ciso estava operada com a organizao da
colnia em reino: faltava to somente legaliz-la criando o
Imprio.
* * *
Para Portugal o aspecto mais importante
da questo constitucional residia na atitude do Brasil com
relao ao movimento iniciado no Porto e confirmado em
Lisboa: dessa atitude dependeria o melhor do seu xito. Se o
Brasil, sede da monarquia como de fato o era, resistisse, a
revoluo estava mal parada, sem ser preciso entrarem os
dois reinos em luta, porque ali se encontravam os seus
principais recursos, tanto materiais como morais. E no
corria logo como certo que o Brasil aderisse.
Mister era portanto prover outros apoios:
deste modo sobretudo se explica a agitao de carter
ibrico, tendente a um enlace com a Espanha constitucional,
a qual habilmente fomentada pelos agentes diplomticos
despachados de Madri chegou a tomar propores srias. Ambos
os pases calculavam ter que lutar contra a hostilidade da
Santa Aliana, mas a anuncia de Fernando VII restaurao
da constituio democrtica de Cadiz assegurava que se no
daria l uma interveno pelo menos imediata - como
realmente no se deu at 1822, quando o rei da Espanha se
lanou nos braos da Frana, que ainda disputava
Inglaterra a ingerncia e a influncia nos assuntos
continentais, prosseguindo uma rivalidade tradicional que
apenas se interrompeu nos nossos dias.
No caso de Dom Joo VI, firmando-se na
fidelidade brasileira, protestar contra a anulao da sua
autoridade absoluta, a independncia portuguesa ficava pois
merc das potncias chamadas reacionrias, uma vez que
estas quisessem ou pudessem sobrepor-se Inglaterra,
defensora interessada da autonomia do reino lusitano. A
Inglaterra prestigiava na Pennsula Ibrica o regime
constitucional, justamente porque era a poltica oposta da
Santa Aliana e aquela que melhor correspondia aos
interesses britnicos.
Compreende-se por conseqncia o jbilo
dos constitucionais portugueses perante a adeso do Brasil
ordem de coisas por eles implantada. A revoluo
pernambucana de 1817, espraiando-se por outras capitanias,
provara de sobejo que na antiga colnia floresciam idias
liberais e que por amor delas se ia at o ponto de imolar a
vida, mas ao mesmo tempo a crueldade da reao, qual se
havia manifestado, deixava prever que no podia mais ser bem
acolhida qualquer poltica comum. O Brasil estava aliado de
Portugal pelo sangue dos patriotas.
Para atra-lo, prometeram-lhe pelo
manifesto de 31 de outubro de 1820 a cessao do regime
colonial, o qual na verdade perdurava sob algumas das suas
piores feies, pois que o reino americano continuava
entregue aos caprichos e desmandos de capites-generais
irresponsveis com relao nao, agora gravitando em
redor do despotismo real e empenhados em fornecer-lhe
brilho.
Confiado nesta organizao, para ele a
mais sbia, e porventura na afeio dos povos, Dom Joo VI,
no seu oportunismo de temperamento, que a forma
inteligente da timidez, sobretudo quando esta ardilosa,
quis como sempre pesar os prs e os contras e dar tempo s
suas reflexes e hesitaes antes de tomar qualquer
deliberao, que por fim lhe era imposta pelas
circunstncias ou por outros de mais vontade. Ele no
concedia pessoalmente revoluo portuguesa uma importncia
exagerada, nem mesmo a sua gravidade real, e o modo como o
novo regime foi varrido em Vila Franca de Xira por alguns
regimentos marchando entre nuvens de p, e os anos de guerra
e de perseguies que mais tarde custou a implantao do
liberalismo, no deixavam de dar-lhe razo.
Vimos como Palmela, cujo ceticismo era de
ndole diferente e se educara noutros meios, julgava mais
avisado e mais hbil tomar o rei a dianteira e dirigir o
movimento para no ser devorado pela hidra revolucionaria.
Era a teoria de Turgot que o seu esprito cosmopolita
assimilara, a poltica de Necker que lhe fora revelada
atravs de Madame de Stal e do seu crculo. Cumpria
"assegurar Coroa a proeminncia na reconstituio poltica
da Monarquia" - tal foi o programa formulado pela sua
diplomacia, o que ele quis do Rio para Portugal aplicar em
benefcio da realeza. A opinio expressa pelo ministro ao
monarca quando este lhe pediu seu parecer, sua chegada da
Europa, sobre os acontecimentos que presenciara, tem todo o
valor de um documento sociolgico e prova a sua
superioridade intelectual.
"A revoluo de Portugal, escrevia
Palmela, no o resultado de causas peculiares nao
portuguesa. As queixas dos povos sobre a administrao da
justia e fazenda, a tristeza ocasionada pela prolongada
ausncia de V. M. contribuem sem dvida para excitar algum
descontentamento, mas este nunca teria chegado a
desenvolver-se, nem a produzir os efeitos que
desgraadamente presenciamos, se os portugueses no tivessem
sido excitados pelo exemplo dos espanhis, pela tendncia
geral de todas as naes da Europa para o governo
representativo, e enfim pela conspirao universal que
existe contra os antigos governos, e pela espcie de
exaltao que se apoderou de quase toda a gerao atual. No
, portanto, de esperar que o mal possa curar-se com
remdios parciais, nem que ganhem os nimos, contemporizando
e deixando de se adotar medidas decisivas. Os espritos no
se ho de sossegar em Portugal enquanto estiverem exaltados
em todo o resto da Europa, nem os Portugueses se ho de
contentar jamais achando-se num estado de inferioridade
poltica relativamente a seus vizinhos. Devo tambm assentar
como base, pois tal a minha inteira convico, que V. M.
necessita de ser rei de Portugal para conservar o reino do
Brasil, e que pelo contrrio as foras todas que tem no
Brasil, ainda quando fosse possvel conserv-las, de nada
lhe serviriam para readquirir Portugal, se uma vez o tivesse
perdido".
Era intil porm querer obrigar Dom Joo
VI a atitudes definidas. No estava isto nem na sua
natureza, nem nos seus gostos, nem na sua poltica. No
reagir e tampouco ceder, adiar, era o seu lema e s vezes
dava resultado, mas nem sempre. Nos momentos srios, nas
crises agudas, qualquer resoluo necessria, e se o
principal interessado a no toma, outros a tomam por ele.
Entre o soberano e o seu ministro havia
em todo caso maiores afinidades do que entre este e os
democratas das Cortes para quem a constituio era uma arca
santa - "maravilhoso monumento, que vai ser levantado pelo
sublime esforo da constncia e da virtude sobre as runas
do despotismo e da arbitrariedade" (58). O
aristocrata que era Palmela podia querer at certo ponto
liberalizar as instituies - outro tanto se pode em menor
escala dizer talvez de Arcos -, mas a irredutibilidade das
opinies nascia logo do princpio, de que aquele partia, de
que a nao no era soberana, competindo
exclusivamente ao rei o direito de convocar os
representantes da nao.
Quando Dom Joo VI chegou a Lisboa a 3 de
julho, com 48 dias de viagem, e no dia imediato desembarcou
para ser conduzido ao seio das Cortes a prestar juramento,
encarregou Silvestre Pinheiro Ferreira da fala em resposta
do presidente da deputao que fora a bordo. O
constitucionalista aproveitou o ensejo para assinalar, como
princpio fundamental do sistema, "que o exerccio da
soberania, consistindo no exerccio do poder legislativo,
no pode residir separadamente em nenhuma das partes
integrantes do governo, mas sim na reunio do monarca e
deputados escolhidos pelos povos, tanto aquele como estes,
para formarem o supremo conselho da nao, a que os nossos
maiores tm designado pela denominao de cortes, e s quais
coletivamente compete o exerccio ordinrio do poder
legislativo, por maneira que, se jamais o monarca assumisse
a si o exerc-lo sem a cmara dos deputados, se reputaria o
governo degenerado em despotismo, bem como passaria ao
estado no menos monstruoso da oclocracia, se a cmara dos
deputados intentasse exercitar ela s o poder legislativo".
As Cortes no deixaram passar sem reparo
a doutrina, ponderando ao monarca, por intermdio do
ministro Quintella, que nas bases da constituio, em que se
estabelecera a linha de demarcao entre os poderes
legislativo e executivo, "se atribui somente s Cortes a
representao nacional e o poder legislativo, com a excluso
da iniciativa direta do rei e s com a dependncia
subseqente da sua sano e de um veto que no ser
absoluto". Escusado dizer que Dom Joo VI mandou responder
que estava pela opinio das Cortes, "no podendo ser da sua
inteno que houvesse no seu discurso expresses ou idias
que no fossem de acordo e conformes com as bases da
constituio e com o seu juramento".
Triunfava a burguesia, radical em
poltica e racionalista em filosofia, que enchera as Cortes
de metafsicos revolucionrios, deistas em religio se bem
que afetando carinho pelo catolicismo, e quase republicanos
no tocante a sistemas de governo, no o sendo de todo por
causa da Santa Aliana. No era gente essa que se prestasse
inteligncia que el-rei quisera dar ao seu movimento,
anuindo to somente em que o herdeiro da coroa fosse "ouvir
as queixas" e insuflar vida nova na antiga constituio da
monarquia.
Palmela, que tinha visto mundo,
compreendia que era foroso ir alm dessa interpretao
tradicional e acanhada, que era indispensvel consignar
desde logo na legislao certas conquistas do pensamento
filosfico e da ao revolucionria em matria de liberdades
civis e polticas, por outras palavras, ceder o mnimo para
obviar ao mximo. Melhor seria dirigir do que obedecer,
impor do que receber imposies. O dilema - se soumettre
ou se demettre - j naquele meio e naquele tempo se
formulava.
O decreto de 18 de fevereiro reconhecia
alis o perigo, pois que rezava que "as circunstncias em
que se acha a Monarquia exigem justas e adequadas
providncias para consolidar o Trono", e tanto contava com a
soluo que em Portugal fora dada ao problema se tornar
definitiva, que se referia constituio que devia ser
transmitida de Lisboa pelo prncipe real, "a fim de receber,
sendo por Mim aprovada, a Minha Real Sano". Estas
expresses supunham logicamente uma lei orgnica da nao,
ultrapassando "as reformas e melhoramentos e as Leis que
possam consolidar a Constituio Portuguesa", isto , a
velha ordem de coisas fundada nas Cortes de Lamego.
No seio da representao nacional ecoou
mal o termo aprovao. Protestaram alguns deputados,
observando que ao rei s cabia jurar e nao aprovar.
Fernandes Toms assim ps tambm a questo, ajuntando que se
o rei "quiser sujeitar-se que se sujeite; seno, que se no
sujeite: no h meio termo". O corolrio do no se sujeitar
era ir passear. Por essas e outras queria Toms Antnio que
j houvesse no Rio de Janeiro opinio formada pela
troca de vistas entre os procuradores convocados e
sucessivamente chegados e as pessoas gradas constituindo a
junta consultiva, de modo a ser a assemblia apenas reunida
para aprovar o que j estivesse acordado entre todos, sem
afirmar veleidades de assemblia deliberativa tresandando a
Cortes Soberanas.
Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava
nesse expediente, que tinha de sedutor o adiantar-se a
reunio dos procuradores obra das Cortes Gerais, o plano
diablico de frustrar o movimento genuinamente
constitucional que abraava os dois pases. A linguagem do
decreto de 18 de fevereiro prestava-se alis neste ponto a
qualquer das duas interpretaes, pois que se faltava nas
Cortes Braslio-insulanas "examinarem e consultarem" os que
dos artigos da futura Constituio Portuguesa fossem
adaptveis ao reino do Brasil e tambm em proporem ao rei
novas medidas, novas leis, novas bases polticas e sociais.
Tanto se podia dessa linguagem inferir Carta como
Ordenaes. As constituies porm estavam na ordem do dia e
Toms Antnio era quem estava atrasado.
Tinha ele ento 66 anos e bastantes havia
que gozava da confiana de Dom Joo VI, que por ele se
afeioara quando o conhecera de corregedor em Vila Viosa e
se acostumara a ouvi-lo sobre os negcios pblicos, achando
sensatas e excelentes suas opinies porque no geral
concordavam com as prprias. Elevando-o Casa da Suplicao
e ao desembargo do pao, o soberano exaltava a noblesse
de robe - Thomaz Antnio era filho de um probo e pobre
advogado de provncia - que lhe era to til, seno mais,
que a grande noblesse.
Com Silvestre Pinheiro Ferreira era a
pura burguesia que se via chamada aos conselhos da coroa.
Professor de humanidades em Coimbra, oficial da secretaria
de estrangeiros em Lisboa, encarregado de negcios em
Berlim, onde casou, vegetava no Rio de Janeiro como deputado
junta de comrcio, tendo recusado uma misso secreta no
Rio da Prata, quando sobreveio a revoluo portuguesa. Suas
prelees de filosofia mal tinham dado para as despesas da
impresso e ele pusera-se a escrever em francs como, no seu
dizer, o melhor meio para ser lido em portugus (59).
* * *
O momento poltico desse homem de bem
veio com o pronunciamento de 26 de fevereiro. Seu esprito
doutrinrio inclinava-se permanncia de Dom Joo VI no
Brasil, para que el-rei pudesse com sua presena conter a
anarquia iminente e ao mesmo tempo meditar sobre a Carta a
ser aprovada, parecendo-lhe a Constituio de Cadiz um
modelo infeliz. Seus colegas de governo no lhe achavam
contudo razo, parecendo-lhes, numa viso de menos alcance,
que o essencial era antes acabar com a anarquia l na Europa
e sancionar depressa a organizao constitucional, pondo
remate interinidade revolucionria.
Era evidente que Portugal se no
satisfazia sem ficar reintegrado na sua condio de sede da
Monarquia. Com a convergncia poltica das provncias
brasileiras para as Cortes Soberanas, a sede voltava
automaticamente a ser Lisboa. A permanncia do rei alm-mar
oferecia por sua vez ao reino americano vantagens positivas,
que eram no o privar, quando uma vez revolto, do seu melhor
fiador de autoridade e no expor o monarca, e portanto a
nao, aprovao precipitada e a contragosto de uma lei
fundamental que um esprito equilibrado como o de Silvestre
Pinheiro Ferreira reputava quase demaggica e pecando
gravemente pela confuso dos poderes, como era a
Constituio espanhola.
O mais interessante que comungavam na
mesma idia espritos reacionrios e espritos avanados. A
ida do rei tinha em seu favor tanto os que queriam v-lo
prontamente na dependncia das Cortes, porquanto sabiam
perfeitamente que nas promessas e juras de Dom Joo VI no
havia fiar, como os fidalgos que s em Portugal pensavam
sentir-se vontade e, ou aderiam s idias novas ou nutriam
a esperana de que o velho regime no tardaria a ressurgir
vitorioso.
A sociedade brasileira do tempo, que
melhor se chamaria luso-brasileira, estava to dividida
neste assunto quanto o conselho real. Entre os elementos
partidrios da permanncia do soberano contavam-se o
comrcio ultramarino, que no queria sacrificar seus lucros
ao restabelecimento do monoplio mercantil portugus, e o
funcionalismo local, cioso do maior prestgio que lhe
advinha da presena da corte. Dos elementos contrrios
faziam parte, alm dos cortesos, saudosos da sua mocidade
de franas e scias, os soldados da Diviso
Auxiliadora, que na guitarra cantavam a nostalgia dos seus
casais; os oficiais portugueses a quem o licenciamento da
oficialidade inglesa abria vagas suspiradas para as
promoes; os caixeiros-reinos, mal dispostos contra os
patres, desforrando-se nos maus tratos aos maranos e
dizendo-se "fascinados pela liberdade", embora esta se
traduzisse ainda em frmulas mais do que em realidades.
Aquelas levariam a estas.
Pode dizer-se que, tomados em grosso, os
portugueses, tanto os tradicionalistas como os liberais e
at os maes, eram pelo regresso e os brasileiros pela
permanncia, incluindo-se no nmero o Correio
Brasiliense, o qual alis observava com o costumado bom
senso do seu redator que, se fizesse o que se quisesse,
ficariam sempre um queixoso e um satisfeito frente a frente.
"A mudana de El-Rei para a Europa trar consigo a mudana
do lugar dos queixosos, mas no remdio dos males..."
Os mais acomodados de um lado e de outro
admitiam a partilha; os mais exaltados "queriam, cada qual
para seu pas, a famlia real toda" (60). Toms
Antnio no se fartava de escrever que el-rei no media bem
a extraordinria vantagem da sua posio com relao a
Portugal, onde a Santa Aliana no permitiria, nem mesmo
contra o voto da Inglaterra, o estabelecimento de uma
democracia republicana. Ficar no Brasil era sobrepor-se
tormenta.
No conselho real Arcos fora de comeo
pela ida do prncipe que, seduzido pelas suas maneiras
insinuantes e pela sua inteligncia prtica muito mais do
que terica, dele fazia o confidente da sua imaginao
exuberante. Toms Antnio insistira sempre pelo statu
quo, certo de que a revoluo, entregue a si, se
gastaria e concluiria por uma contra-revoluo conservadora.
Pouco depois Arcos, que no custava muito a mudar de opinio
consoante suas convenincias polticas, entrou a preferir a
ida do rei, ficando ele como conselheiro-vlido ou mentor de
Dom Pedro, que tinha ento 23 anos incompletos. Por isto
instou Arcos para deixar seguir para Portugal o correio
anunciando o alvitre adotado da ida do prncipe como
condestvel, certo de que tal resoluo levantaria ali
protestos e exigncias da presena de Dom Joo VI em pessoa.
No de admirar tanta divergncia de
vistas quando o desacordo alcanava os protagonistas da
pea. Se Dom Joo VI escutava radiante as representaes que
fossem contrrias ao seu embarque, Dom Pedro era mais que
todos favorvel partida do pai pela ambio de ficar
governando a seo maior da Monarquia. Os interesses
primavam, como quase sempre, os sentimentos, mesmo os mais
naturais e ntimos.
A opinio liberal crescia entretanto, ao
passo que diminua a fora do governo, atingindo a desordem
o mais alto nvel, pelo que se fazia mister salvar no s o
principio de liberdade como o princpio de autoridade. Para
atender ao primeiro, cuja consolidao se anunciava aos seus
olhos mais premente, foi que Silvestre Pinheiro Ferreira
pretendeu obter o assentimento pblico ao regimento
provisional da regncia, escudando-a com o apoio do
eleitorado na forma do primary meeting da organizao
americana, de que as repblicas espanholas tinham encontrado
o equivalente nos seus cabildos abiertos. A
assemblia de eleitores da praa do Comrcio foi, no um
arremedo, mas um ncleo de representao nacional,
correspondente a um anelo geral e ao ideal sempre presente
de uma assemblia popular e soberana.
Soberana mesmo pela razo que estava
servindo de fundamento moral guerra de libertao das
colnias espanholas: que o vnculo da unio entre metrpole
e colnias era o monarca, no havendo sujeio das colnias
nao que foi sua me-ptria, mormente depois de atingirem
sua maioridade. A obedincia era de natureza toda pessoal e
no nacional. Coagido o rei pelas Cortes, o reino
ultramarino assumia sua liberdade de ao e tomava
iniciativas, em virtude dessa doutrina.
Martinez de Rozas, no Chile, chegara a
opinar que s no caso de Fernando VII, em nome de quem fora
declarada a separao da Amrica Espanhola, assim subtrada
ao cetro do rei intruso, vir residir no Novo Mundo, deveria
ser reconhecido como soberano. Por essa teoria Dom Joo VI
perdia o trono retirando-se para Portugal. Assim devia
pensar o "partido brasileiro", como Martinez de Rozas, que
distinguia entre a ptria europia, representada pelo rei, e
a ptria americana, representada pelo Congresso.
Era mais numeroso esse partido do que
primeira vista, se poderia calcular, uma vez abstraindo da
grande massa inculta que constitua o nmero e cujo
esprito, se o tinha, s poderia ser instintivamente
tradicionalista, acatando a autoridade e quem a
representasse. O elemento principal de cultura era o clero e
este era nacional, como o era o elemento militar nos
soldados e nos oficiais que no os superiores.
O rei, transferindo sua corte para o Rio
de Janeiro, tinha de algum modo dado uma primeira, posto que
involuntria, satisfao s aspiraes nacionalistas ainda
vagas, mas que em Minas Gerais j tinham assumido aspecto de
conjurao. Dom Joo VI organizara pelo menos, e pouco
importa que o fizesse mais por instinto que conscientemente,
um Portugal americano, um pas corri personalidade prpria
diferente da do Portugal europeu. Seu papel foi assim
sociologicamente anlogo ao das juntas que, desde 1810, se
foram formando na Amrica Espanhola para governar as
colnias no impedimento do soberano e com desconhecimento da
suserania estrangeira.
As medidas adotadas parecem-se. A
abertura dos portos brasileiros ao comrcio aliado e neutro
por exemplo, decretada pelo prncipe regente em 1808, na sua
passagem pela Bahia, foi imitada em Buenos Aires pelo
vice-rei Cisneros, representante da junta suprema de
Sevilha, em 1809, e em 1811 pela junta chilena, franqueando
os portos de Valdivia, Talcahuano, Valparaizo e Coquimbo. O
prestgio da autoridade tradicional de um monarca impediu
apenas que a anarquia expulsasse a ordem e se instalasse no
seu lugar no poder, regulada de quando em vez pelos
pronunciamentos militares dizendo-se intrpretes da
soberania popular.
Silvestre Pinheiro Ferreira percebeu
claramente a situao que se lhe defrontava. O partido
europeu apressara o motim de medo que o Brasil tomasse uma
atitude constitucional diversa da procedente das Cortes, e o
partido brasileiro por seu lado assistiu ao ato com prazer e
at o atiou, certos os seus adeptos de que "em ltimo
resultado ho de ser os indgenas, e no os advenas que ho
de ficar senhores do campo de batalha" (61).
Era-lhe portanto indiferente que, na forma por que se achava
redigido o decreto sustado de 24 de fevereiro, se mandasse
adotar para o reino do Brasil a constituio que as Cortes
portuguesas fizessem, "salvas as modificaes que as
circunstncias locais tornassem necessrias", ou que, como o
exigiram povo e tropa congregados no Rocio, nada se tentasse
modificar e se aprovasse a Constituio de Lisboa, aderindo
o Brasil mesma tal qual.
Os agitadores de rua trabalhavam, segundo
Silvestre Pinheiro Ferreira, por conta de terceiros, os
quais por trs da cortina puxavam os cordis que faziam
moverem-se esses tteres. Naturalmente a uns e outros foi
crescendo a ousadia que logo se manifestou pela imposio
coroa de um verdadeiro conselho de vigilncia, sem cuja
anuncia ficaria a suprema autoridade inibida de tomar
qualquer resoluo importante de carter pblico. E esta
desconfiana reapareceria em cada crise, ainda que
imperfeitamente definida ou sem plano formulado, at que os
atos do regente o mostrassem identificado com o sentimento
nacional. Desvanecer-se-ia ento a desconfiana para
ressurgir depois, com violncia.
O publicista do constitucionalismo em
Portugal e no Brasil considerava uma tal limitao da
autoridade rgia a dissoluo do vnculo que presidia s
relaes sociais do povo portugus e que obstava ao
aparecimento "do esprito de reao e vingana". Ele
enxergava igualmente a dissoluo da monarquia na ida de Dom
Joo VI para Lisboa, por mais que os seus colegas de
conselho a reputassem necessria para fazer progredir a
tarefa constitucional pelo concurso ntimo do soberano e das
Cortes.
No intuito de ganhar Portugal, o qual de
uma forma ou de outra, com ou sem demora, estava ganho,
ia-se, no seu entender, sacrificar o Brasil, que ficaria sem
uma autoridade respeitvel para servir-lhe de centro de
unio, com autoridades desprezadas e desprezveis, tropas
impopulares e povos j acostumados a deporem seus
governantes. Entretanto em Portugal ver-se-ia o rei intimado
a aceitar uma constituio extica, cujo liberalismo
consistia numa absurda confuso de princpios polticos,
quando no Brasil, longe da influncia dos partidos nacionais
e das potncias estrangeiras, se poderia organizar em
assemblia representativa um sistema constitucional adequado
"s precises de todas as diferentes e to diferentes partes
desta vasta monarquia".
O Brasil tornar-se-ia porm ingovernvel
para a dinastia que presidia ao dualismo, se o seu chefe o
abandonasse e no era esse um caso para vir de fora um
impulso de salvao. O sentimento constitucional ou
democrtico brasileiro no ultrapassava aparentemente um
limitado crculo intelectual, seguro nas suas convices e
sequioso de inovaes progressistas, mas pulsava farta na
sombra de sociedades secretas, onde manobrava o elemento
civil que depois se enfileirou na marcha dos militares. Eram
estes os nicos a poderem tomar a iniciativa prtica de um
movimento que s revestiria sua significao histrica e s
ganharia para tanto consistncia, quando o seu
constitucionalismo tomasse o aspecto patritico, exprimindo
os anelos de uma nacionalidade (62).
Hiplito da Costa preparara no Correio
Brasiliense durante anos seguidos esse movimento de
organizao nacional, delineando sua teoria e mostrando sua
prtica, para isto apontando para os exemplos estrangeiros
na Amrica e indicando como deveriam ser indicados e
tratados os vrios problemas polticos e sociais. No
dissimulou o mais grave destes ltimos, que era o da
escravido, cuja abolio muito recomendou, bem como a
introduo de imigrantes. No seu dizer, pas algum
apresentava "mais elementos de prosperidade nacional" do que
o Brasil.
A ao do grande jornalista exercia-se
porm distncia e para a realizao dos desiderata
liberais convinha ter agentes mais prximos e diretos. Foi
este o papel da maonaria combinado com o da imprensa local,
por meio da qual aquela atuava sobre a opinio pblica. Nas
lojas e nas redaes se formaram os estadistas da
independncia, do primeiro reinado e da regncia, que
prepararam o fecundo reinado de Dom Pedro II. Parecem talvez
maiores do que os da poca posterior ao Imprio porque a
estes falta ainda o recuo do tempo e aqueles eram na sua
grande maioria, autodidatas, merc do baixo nvel da
instruo colonial, vendo-se portanto compelidos a maiores
esforos intelectuais, ou ento precisavam dispor, para se
elevarem no conceito do pas e de um soberano superior aos
partidos, de talentos mais brilhantes e de mais aguda nsia
de saber do que aqueles que, para ilustrarem seus espritos,
dispunham de outras facilidades e obedeciam a mais altas
ambies com menor dispndio de energia. Na luta das
capacidades desajudadas de fortuna e mais confiadas nos seus
mritos, acontecia serem os medocres mais facilmente
sobrepujados e da vinha aos vencedores uma certa fatuidade,
da qual no s os Andradas foram culpados.
A maonaria foi incontestavelmente uma
escola de disciplina e de civismo e foi um lao de unio
entre esforos dispersos e dispersivos. A sua funo foi
essencialmente oportuna. Sem ela no teria o trono podido
desempenhar nessa ocasio o seu papel histrico, fundido uma
vez mais aspiraes nacionais sob a sua ao mais
desinteressada. Aos dirigentes locais faltaria o meio de se
conhecerem, de se entenderem, de concertarem seus ideais e
suas atividades numa combinao tanto mais urgente, quanto
as provncias brasileiras tinham diante de si o espetculo
da desunio prevalecente nas provncias espanholas e
acarretando males sem conta.
Na Venezuela as discusses do Congresso
Nacional e a contenda dos dois partidos empenhados, um em
fazer vingar a federao, outro o centralismo, tinham tomado
o tempo precioso da defesa e feito perigar desesperadamente
a independncia, permitindo a reao de Monteverde e a
reconquista espanhola. Nova Granada e Venezuela viram-se
respectivamente abandonadas sua sorte apesar do tratado de
aliana e federao ofensiva e defensiva que as unia,
pelejando cada Estado separadamente e ainda se desavindo o
congresso federal de Nova Granada com o presidente de
Cundinamarca. Um dos rasgos mais meritrios e de maior
alcance poltico de Simo Bolvar foi levar Nova Granada a
pelejar pela libertao da Venezuela e Venezuela pela
libertao de Nova Granada, assim estabelecendo a ligao
entre as duas repblicas que por sua queda se desmanchou,
quando predominaram as ambies pessoais valendo-se do
particularismo.
O regime de sigilo das lojas permitira
ampliar extraordinariamente o nmero dos adeptos da
maonaria, dos quais lcito dizer que sonhavam todos com a
independncia. Numa carta escrita da Bahia a Toms Antnio,
referia Lus do Rego Barreto, a caminho de Pernambuco na
qualidade de capito-general, que o comandante do
Carrasco lhe contara que, no ato de serem algemados os
rus para desembarcarem, dissera o guardio dos franciscanos
"que eles no eram os nicos culpados e que se houvesse de
tratar desse modo todos os cmplices que existiam nas
diferentes capitanias da Amrica, no eram bastantes nem
todos os vasos, que El-Rei tem, para os conduzir, nem todos
os ferros para os prender" (63).
Quando Jos Bonifcio, escolhido pelo
prncipe regente para seu ministro - o primeiro brasileiro
elevado a essa dignidade apesar de Toms Antnio aconselhar,
desde a aclamao de Dom Joo VI, que assim procedesse o
monarca, bem como com relao organizao de uma
aristocracia no reino americano - foi eleito gro-mestre
pelo Grande Oriente, tendo por lugar-tenente o marechal
Joaquim de Oliveira lvares, seu colega de gabinete,
significou isto que o mundo manico nacional nele enxergava
o melhor executor do grande projeto comum. Por seu lado,
querendo iniciar-se, para o que foi proposto pelo prprio
Jos Bonifcio a 2 de agosto de 1822, tomando o nome de
Guatimozim, prestaria Dom Pedro maonaria o preito mais
expressivo, ainda que pudesse ter sido levado a pretender
essa admisso pelos adversrios dos Andradas, os quais
visavam subtra-lo influncia de Jos Bonifcio e para
isto, querendo semear cime e discrdia entre ambos, o
elegeram gro-mestre no lugar do seu ministro.
* * *
Politicamente e financeiramente no foi
fcil o incio do governo de Dom Pedro: sem dinheiro, por
no virem mais as contribuies das provncias, tinha contra
si virtualmente todas as faces. Tinha para comear os
liberais, especialmente os maes, desconfiados do
constitucionalismo de Arcos que, no conceito deles, aspirava
aos louros de um Pombal, reformador onipotente, portanto
prepotente, e ressentidos da frase contida na primeira
proclamao da regncia em que se dizia que todas as suas
intenes seriam baldadas "se uns poucos mal-intencionados
conseguirem sua funesta vitria, persuadindo-vos de
princpios anti-sociais, destrutivos de toda a ordem ..."
A proclamao no dizia isto a esmo,
sendo positivo que essa faco democrtica existiu desde o
tempo do rei, j no faltando na sublevao ocorrida no
norte, e contra ela obrava a reacionria. Uma relao dos
sucessos de 26 de fevereiro publicada por Melo Moraes acusa
a ltima de, na sesso da primeira junta consultiva,
realizada em casa de Palmela, ter feito "bastante injria
aos nobres e generosos habitantes de Portugal, tratando-os
de rebeldes por quererem recuperar os seus direitos e a sua
representao: um dos membros daquela comisso at ousou
proferir que se devia bloquear Portugal e obrig-lo fora
de armas a submeter-se aos antigos estabelecimentos
polticos".
Tambm o protesto de fidelidade da tropa
a el-rei a 13 de maro de 1821 prova claramente que j
existiam tendncias notrias separao. A diviso
portuguesa auxiliadora e as tropas da guarnio de 1. e 2.
linha declaram nesse documento que agiram a 26 de fevereiro
"pelo desejo de fazer causa comum com os seus companheiros
de Armas de Portugal, procurando por este modo chamar o
Brasil a mesma causa, e salv-lo da anarquia, ou de outros
projetos, que sobre ele se pudesse ter, e que tendessem a
apart-lo daquele centro de unidade poltica, que s capaz
de manter, e consolidar os interesses do reino unido"
(64).
Por sua vez se queixava a faco lusitana
de que o "despotismo" de Dom Pedro e do conde dos Arcos
visava a desunir os portugueses dos dois hemisfrios e
reputava outros tantos atentados unio como ela a
entendia, sui generis, os ofcios dirigidos do Rio de
Janeiro para as provncias do Brasil a fim destas prestarem
obedincia ao prncipe regente e secundarem a autoridade
central executiva criada por el-rei ao retirar-se. Os atos
mais simples da regncia eram interpretados como
"maquinaes sinistras" e a junta da Bahia, que era
ferozmente portuguesa, increpava o governo de Dom Pedro de
inteligncias com Lus do Rego em Pernambuco e desgnios de
atacarem a Bahia para destrurem esse baluarte do
constitucionalismo portugus, que se erguia contra os
projetos de independncia do reino americano, por aqueles
outros favorecidos.
Para os portugueses Arcos era partidrio
decidido do Brasil; para os brasileiros no passava o
ministro de um reinol com todos os seus preconceitos. Este
tratamento pejorativo no punha porm os brasileiros de
acordo sobre a poltica a seguir: havia partidrios da
monarquia absoluta, partidrios da monarquia constitucional,
partidrios da repblica unitria, partidrios da repblica
federativa, partidrios do dualismo e partidrios da
independncia. Esta era a soluo que cada dia mais se ia
afirmando, podendo prever-se que chegaria breve o dia em
que, sob qualquer aspecto que se apresentasse o caso, de
qualquer modo que se formulasse o problema, a soluo no
poderia deixar de ser a radical - a separao.
As solues intermdias propostas num
esprito de conciliao tinham que ser gradualmente
eliminadas: a alternativa da residncia do soberano dos dois
reinos, que os punha num p de igualdade, provaria nas
Cortes ser um ponto de discrdia conduzindo ao rompimento. O
ano de 1821 pode contudo denominar-se no Brasil o do
constitucionalismo portugus: o de 1822 que seria o do
constitucionalismo brasileiro. A regncia na fase em que foi
seu inspirador o conde dos Arcos, como na fase imediata que
se prolongou at o Fico, foi um governo bem
intencionado, mas mal apreciado, quase impopular.
Bastariam para assinalar a ao benfica
dos seus primrdios a cessao das prises arbitrrias, isto
, a proibio de qualquer priso sem culpa formada e sem o
competente mandado do juiz, a abolio do processo de
torturas e a reduo do exorbitante imposto do sal, de 750
para 80 ris por alqueire, um alvio para a populao
nacional que vivia das indstrias do charque e do peixe
salgado ou se alimentava com estes artigos. Bastaria porm o
recrutamento forado - apesar do aumento dos soldos - para
acirrar contra a regncia certo sentimento, compartido pelos
brasileiros, que sempre primaram em detestar o servio de
quartel e sabiam que os pobres e desamparados seriam as
vtimas, ao passo que os abastados protegidos formariam o
exrcito dos embusqus, que enxergavam na medida o
meio de irem-se substituindo por foras nacionais as tropas
portuguesas, cujos pronunciamentos se sucediam e estavam
tornando impossvel a normalidade da vida poltica.
O 5 de junho foi o mais desnecessrio dos
pronunciamentos. Chegadas de Lisboa em fins de maio as bases
da Constituio, ali promulgadas a 10 de maro, discutiu-se
se deviam ou no ser juradas. Por um lado o amplo juramento
de 26 de fevereiro parecia dispensar qualquer novo
compromisso, tendo sido prestado sem reservas de princpios,
nem sequer conhecimento do que se jurava observar, o que
alis o tornava nulo em direito; e por outro lado havia a
questo de direito constitucional e tambm de moral
poltica, se seria vlida a sano pelo executivo local de
uma lei orgnica ou mesmo da sua doutrina aplicada a um pas
cujos representantes a no tinham votado, pois que no
tinham ainda tomado assento nas Cortes constituintes.
Achava-se de resto expressamente
declarado que, sem o consentimento dos representantes do
Brasil, a constituio adotada no se tornaria obrigatria
para essa seo da monarquia. Considerando finalmente que a
forma solicitada de aprovao na praa pblica era
perfeitamente revolucionria, e que no era possvel
coexistirem processos legais e processos violentos no
andamento constitucional, o escrpulo do governo aparece de
todo ponto legtimo e razovel.
O conde dos Arcos foi desta vez a vtima
expiatria: atriburam-lhe hostilidade, que talvez nutrisse,
contra a assemblia portuguesa e at o propsito, que ele de
certo no tinha, de urdir a independncia do reino
brasileiro. Gomes de Carvalho pensa que o antigo vice-rei do
Brasil e capito-general da Bahia e do Par, era muito mais
administrador do que poltico, no se lhe conhecendo planos
de governo alm dos de intensos melhoramentos materiais e
morais, que o ilustraram e popularizaram na Bahia. Se teve
um plano para salvar a situao quando sobreveio a crise do
constitucionalismo, como Trochu tinha um para salvar Paris e
a Frana da ocupao alem, ficou desconhecido como este
outro: a menos que a sua participao na cruel represso do
movimento republicano de 1817 em vrias capitanias do norte
o houvesse incompatibilizado para coadjuvar sinceramente uma
agitao de carter liberal.
Parece certo que Louz, o qual andava
desavindo com Arcos, opinava pelo juramento das bases e que
influiu para o desenlace como se deu. Porto Seguro culpa
Caula do antagonismo e da intriga. O prncipe regente
afrontou a situao com denodo. Ouvindo falar em conspirao
militar, interrogou os chefes da tropa, que negaram aos ps
juntos qualquer inteno de insubordinao; mas querendo
verificar por si prprio o que havia, deixou a fazenda da
Santa Cruz s 11 horas da noite de 4 de junho e apareceu s
cinco horas da manh no quartel de caadores de So
Cristvo, dirigindo ao capito S algumas palavras que Melo
Moraes qualifica de descabidas e que irritaram o oficial, o
qual se sentia culpado. Mal Dom Pedro sabia, o batalho
armava-se e encaminhava-se para o centro da cidade, que
ficou presa de pnico, aderindo ao pronunciamento o
regimento de infantaria do largo do Moura, o de artilharia
da praia de D. Manuel e mais outro batalho.
O ponto obrigado de reunio era sempre o
Rocio, onde o prncipe compareceu a cavalo, ouvindo dos
oficiais comandantes e de um padre frei Narciso, antigo
capelo do conde de Vila Flor, arvorado em procurador do
povo, que tropa e povo queriam o juramento das bases, a
demisso de Arcos e a organizao de um "governo
provisrio". Com muito sangue-frio mandou o regente subirem
essas pessoas para o salo do Teatro de So Joo e a lhes
declarou que mais legtimos procuradores do povo eram os
eleitores, que acabavam de cumprir seu mandato, do que o
padre e que a tropa brasileira tambm devia ter voz no
captulo - pelo que ia mandar convocar aqueles e esta a fim
de se liquidar de uma feita o assunto, sem probabilidade de
terceiro chamado, ao qual no compareceria, arranjando-se
cada um como pudesse e indo ele no sabia ainda para onde
(65).
A tropa nacional era pouca e bisonha, e
os eleitores tambm poucos e acanhados: o padre levou de
vencida o seu programa, apoiado em espingardas carregadas e
peas prontas a disparar. Arcos teve por substituto o
desembargador da Casa da Suplicao Pedro lvares Diniz, de
escolha do prncipe, e a junta foi designada, mas no
tumultuariamente, antes em votao regular na qual tomaram
parte os eleitores de comarca, o presidente da cmara e
oficiais do exrcito, razo de dois por cada companhia da
1. e 2. linha de guarnio.
Compunha-se a junta de 9 membros e dela
eram ornamentos o futuro marqus de Maric e o bispo
capelo-mor, completando-a os nomes de Jos de Oliveira
Barbosa, comandante da polcia, Jos Caetano Ferreira de
Aguiar, marechal Joaquim de Oliveira lvares, Joaquim Jos
Pereira de Faro, desembargador Sebastio Lus Tinoco,
Francisco Jos Fernandes Barbosa e Manuel Pedro Gomes - o
mais votado com 38 votos, o menos votado com 15.
O artigo 31. das bases constitucionais
portuguesas impunha a responsabilidade aos ministros e
secretrios de Estado e ficava incumbida aquela junta de
apurar semelhante responsabilidade, sendo ela prpria
responsvel perante as Cortes Constituintes de Lisboa, bem
como de examinar todos os projetos de lei elaborados pelo
executivo antes de respectivamente sancionados. O decreto
definia tais atribuies, mas nunca foi regulamentado o seu
modus faciendi, pelo que a junta civil ficou sabendo
ao que viera ao mundo, sem contudo aprender como proceder
nele e morrendo sem haver dado sinal da sua utilidade ou da
sua inconvenincia.
Junto ao governo das armas, de que era
titular o general Jorge de Avilez, de quem a tropa
portuguesa dizia ter queixas mas de quem no quis ento
aceitar a demisso, com a qual lhe acenava o prncipe
regente, foi criado, igualmente por imposio da praa
pblica, um conselho de dois assistentes de alta patente
militar. A inteno era em qualquer dos casos limitar a
autoridade, funcionando a junta civil como uma espcie de
cmara de censores da constituio imaginada por Bolvar
para a Repblica batizada com seu nome.
Na falta de um parlamento que tomasse
conta ao executivo dos seus atos e vigiasse a aplicao dos
dinheiros pblicos, e de um tribunal com poderes
constitucionais que protegesse os cidados nos seus
direitos, nas suas liberdades e nos seus bens, aquela junta
representava no seu princpio fundamental uma instituio
popular servindo eventualmente de barreira aos desmandos das
autoridades e de garantia execuo das leis. A idia da
mesma no morreria enquanto no se enraizassem as
instituies representativas.
A priso e deportao do conde dos Arcos
pela tropa foram para Dom Pedro uma verdadeira e penosa
humilhao. Arrancado do seu palcio - o senado federal de
hoje, que lhe fora oferecido pelo comrcio da Bahia
agradecido, juntamente com uma dotao de 100 contos - sem
lhe darem tempo de mudar os trajes caseiros,
transportaram-no com a filha para bordo do brigue Treze
de Maio, que singrou para Lisboa a 10 de junho. A
Gazeta do Rio, usando para com o regente de linguagem
mais cortes, publicou que o povo e a tropa tinham provas
evidentes de que fora devida influncia do ministro conde
dos Arcos a demora no juramento das bases, essencial para o
cumprimento da promessa feita pelo prncipe de que
anteciparia aos habitantes do reino americano todos os
benefcios essenciais da constituio em gestao.
No pararam porm a os dissabores do
conde. Da Bahia onde o brigue arribou, a junta local,
esquecida de todos os benefcios da administrao de Arcos,
remeteu para Lisboa ofcios incriminando-o como "o chefe da
mais execranda conspirao contra os interesses da nao e
do rei" e compeliu o comandante, 1. tenente Manuel Pedro de
Carvalho, a assinar um termo de segurana que de fato
reduzia condio de preso quem embarcara munido de
passaporte, apenas constrangido a deixar o reino americano.
Outrossim obrigava-se o comandante a no tocar em
Pernambuco, onde Lus do Rego, ao que se dizia, estava
agindo no mesmo esprito anti-constitucional.
O caso de Arcos foi muito debatido nas
Cortes e no lhe faltaram defensores, entre eles os
deputados fluminenses e o antigo desembargador da relao da
Bahia Joo Rodrigues de Brito, autor de uma conhecida
Memria econmica dessa provncia, os quais prestaram
justia aos servios e s intenes do ex-ministro que
qualificaram de "principal atleta da causa de Portugal" e
paladino do sistema constitucional. Manuel Fernandes Toms
devia porm nutrir preveno contra ele, pois que considerou
"corpo de delito" a vaga denncia da Bahia a que o
magistrado e deputado Brito deu a justa definio de
"denncia de tempos revolucionrios para dar cabo dos homens
eminentes".
Fernandes Toms apenas consentiu em que
se mandasse proceder a um sumrio de testemunhas por parte
do corregedor do crime, de que resultou a completa
justificao do acusado, o qual apresentara uma memria e
documentos comprobativos demonstrado a falta de fundamento
da imputao formulada pela junta da Bahia referindo-se "a
cartas que no manda e as pessoas que no nomeia". O conde
dos Arcos, que entretanto estivera detido na Torre de Belm
e depois noutra priso menos mida, foi mandado pr em
liberdade a 28 de novembro (66).
Se a primeira medida adotada pelas Cortes
com relao ao Brasil, implicando a ligao permanente das
suas provncias com a antiga metrpole, no foi diretamente
inspirada pelo desejo de despedaar uma unidade alarmante,
obedecia em todo caso poltica tradicional de Portugal que
fora sempre ditada pelo cime de que na colnia se viesse a
organizar alguma coisa de grande, que no futuro pudesse
contrapor-se sua dominao: da a dificuldade oposta
formao espontnea de vnculos, para os quais se requeria
permisso real, e a parca remunerao dos dignitrios da
Igreja, cujo culto a Coroa provia em troca dos dzimos que o
soberano cobrava da qualidade de gro-mestre da Ordem de
Cristo. Armitage (67), a quem acodem estas
judiciosas consideraes, ajunta que "a condio dos
brasileiros era na verdade miservel comparada com a de que
gozam os europeus pela sua civilizao; contudo, a tirania
sobre eles exercida apresentava mais um carter negativo do
que positivo. Suas necessidades eram poucas, e em razo da
quase no existncia de nobreza, de grandes proprietrios, e
de poderosas dignidades eclesisticas, havia uma certa
igualdade entre todos, que no fazia sensveis as privaes
a que estavam adstritos".
A medida em questo correspondia at aos
votos dos brasileiros que, a tudo antepondo um regime
liberal, preferiam unir-se a Lisboa, uma vez que l imperava
um constitucionalismo que era verdadeiramente uma
democracia, a continuar numa dependncia poltica local que
julgavam humilhante. No se pode entretanto dizer das
medidas ulteriores que fossem inxias. Aos poucos se fora
cristalizando entre os constituintes portugueses a convico
de que a poltica da persuaso falhando, restava a da fora.
Eles queriam realmente ver os deputados brasileiros no seio
da representao nacional, mas para lhes prescrever a sua
norma de ao de acordo com o plano poltico concebido.
Os constituintes portugueses tinham posto
de lado suas apreenses diante do espetculo das capitanias
brasileiras, uma aps outra organizando suas juntas, e da
impotncia do trono perante os pronunciamentos da capital
brasileira. Quando a atitude das Cortes se desenhou com
maior preciso, tinha desaparecido o ltimo receio de uma
reao por parte do Rio de Janeiro e Dom Joo VI via-se em
Lisboa prisioneiro da nao.
A substituio das tropas da Diviso
Auxiliadora por outras tropas portuguesas, em que desde logo
se falou, podia parecer uma simples medida de servio, as
primeiras j contando uma longa estao nos trpicos: de
fato era uma medida de precauo, eventualmente de opresso,
j aconselhada pelos primeiros temores de separao, apenas
tornada impraticvel pela pobreza do Errio e extrema
modstia do exrcito. Desde ento que as Cortes se deviam
ter capacitado da sua falta de recursos para sufocar a
independncia, uma vez que o Brasil por esta se
pronunciasse, mas quiseram obter pela ao legislativa o que
lhes escaparia pela ao militar, se fosse preciso
exerc-la, simulando no entanto confiana na lealdade
brasileira e to somente desconfiana no esprito desptico
do prncipe regente.
junta fluminense competia
pronunciar-se neste ponto, na opinio de Manuel Fernandes
Toms. A assemblia desta vez foi porm refratria vontade
do seu maior lder e votou-se o despacho para o Rio de
Janeiro de 1.200 praas (25 de agosto de 1821). Quatro dias
depois tomaram assento os deputados pernambucanos, os
primeiros a chegar, os quais j acharam firmada a teoria de
que, sendo todos os deputados representantes da nao,
tanto podiam os portugueses tratar de assuntos
brasileiros como, vice-versa, os brasileiros de assuntos
portugueses.
A reforma administrativa discutida e
aprovada a ttulo provisrio era concebida num esprito
manifestamente anti-brasileiro. Separando as atribuies
civis das militares e deixando as primeiras s juntas de
sete vogais, escolhidas pelos eleitores das parquias, ao
mesmo tempo que confiando as segundas aos comandantes de
armas nomeados em Lisboa, as Cortes criavam uma espcie de
procnsules representantes da soberania parlamentar, pois
que eram independentes das juntas. A autoridade destas
estendia-se sobre o funcionalismo paisano, sendo todavia os
magistrados e oficiais de fazenda responsveis para com o
governo do reino europeu, cabendo em todo caso ao governo
local a faculdade de suspend-los por motivo de abuso,
formar-lhes culpa e faz-los julgar pela Relao do
distrito.
A uniformidade administrativa trazia
entretanto uma vantagem, que era permitir pr cobro
situao anrquica de algumas provncias, umas ainda sob o
basto dos rgulos do antigo regime que eram alguns dos
capites-generais que as juntas no tinham podido desalojar,
outras perturbadas pelas lutas dos constitucionais entre si,
acusando-se mutuamente de terem galgado fraudulentamente o
poder e bradando todos pela mesma legalidade.
Os deputados presentes s Cortes nessa
ocasio, que eram alm dos pernambucanos os fluminenses,
acharam por isso razovel a discusso imediata de tal
reforma, mas as atribuies militares dos comandantes ou
governadores das armas preocuparam alguns como Arajo Lima
(futuro marqus de Olinda) e Martins Basto (comerciante
brasileiro estabelecido em Portugal e eleito representante
do Rio de Janeiro) e propuseram que semelhante autoridade
fosse somente criada nas provncias expostas a agresses
externas, como as do litoral e a de Mato Grosso, onde
existissem corpos de linha, isentando-se as provncias
interiores e as pequenas circunscries desse presente
grego.
No havia porm razo bastante para a
diferena, conforme ps em relevo a argumentao portuguesa,
que figurou a hiptese de desavenas armadas entre as
provncias brasileiras, convindo que estivessem todas em
condio de defesa. A esta razo ostensiva agregou-se outra
reservada e era que, desde o momento em que se ia dar
provimento posto que relutante, arrancado aos poucos pela
pertincia, ao projeto do deputado pernambucano Manuel
Zefirino dos Santos, de repor nos seus postos os oficiais
comprometidos na revoluo de 1817, abonando-se-lhes os
soldos vencidos durante o perodo da sua excluso, deteno
ou homizio, convinha no os deixar reintegrar nas fileiras
com seus sentimentos no s exaltados como nativistas, sem
os tornar dependentes de uma autoridade portuguesa,
representante da unio segundo o figurino constitucional.
Juntamente com esta providncia, adotou o
Soberano Congresso a de restringir a militarizao que Lus
do Rego estava praticando em Pernambuco, no s dispondo de
vrios regimentos portugueses como criando corpos de
milcias pelo interior, com repetidos e vexatrios
exerccios que deslocavam os nacionais das suas residncias
e profisses e que foram abolidos. Igualmente se ocupou de
um caso que inesperadamente se lhe apresentou - a chegada de
42 presos, muitos de distino, entre eles o morgado do Cabo
(futuro marqus do Recife), um dos Suassunas, Francisco do
Rego Barros (mais tarde conde da Boa Vista) e Sebastio do
Rego Barros, depois ministro da Guerra e ento contando 18
anos, remetidos de Pernambuco no poro de um navio, sob
acusao de conspirarem em favor da separao do Brasil.
No seria de todo falsa a acusao,
porquanto as tendncias separatistas de Pernambuco eram
notrias e nenhuma provncia preocupou mais por esse lado a
regncia de Dom Pedro. As Cortes usaram porm para com os
deportados da maior indulgncia. Elas timbravam mesmo em ser
condescendentes nas questes pessoais, que eram as menores,
reservando sua intransigncia para as questes de princpios
ou de interesse nacional, indubitavelmente as maiores.
Muniz Tavares apresentou os presos como
vtimas do esprito de 1817, que atormentava com remorsos os
perseguidores implacveis de homens cuja nobreza da alma era
to superior aos instintos rasteiros e malfazejos dos seus
algozes. A voz cavernosa do futuro monsenhor soava plangente
como um dobre de finados pelos justiados ordem de Lus do
Rego e os encarcerados ordem da alada. A denncia de
agora, originando o despropsito do capito-general, no era
porm a continuao da mesma ferocidade. A esta
sobrepusera-se a covardia, revelando-se pelo pavor da
vingana que tomariam os presos da Bahia, restitudos
liberdade e ao dio. A estava o segredo da deportao, no
em serem eles republicanos e independentes.
Vilela Barbosa (futuro marqus de
Paranagu) secundou admiravelmente o seu colega pernambucano
com a sua palavra abalizada, de uma argumentao cerrada,
to diferente do "estrondo do pororoca" - como
espirituosamente lhe chamou Cairu - pelo qual se anunciaria
a eloqncia ultramarina nos lbios de Patroni. Protestou o
representante fluminense contra as suspeitas de fidelidade
do reino americano e contra o prolongamento na provncia
dessa autoridade tirnica, que era a causa de todo o
mal-estar. "A liberdade comprimida, dizia ele, reage com
todos os sentidos e estoura, e todos os caminhos que trilha
para se restituir ao seu devido estado, so justos e quando
menos desculpveis. Removam-se do Brasil os dspotas e
opressores, e ento a voz da independncia, a menor voz,
ser crime, e crime atrocssimo, como ingratido para
Portugal, a quem devem aqueles povos o ser e ora o maior de
todos os bens, a liberdade" (outubro de 1821).
As Cortes no eram mesmo insensveis a
apelos desta natureza. Nem queriam para o ultramar um
tratamento diferencial quanto aos direitos civis ou s
liberdades constitucionais dos brasileiros: o que queriam
era assegurar a supremacia poltica e econmica da que ainda
consideravam metrpole. O deputado portugus, padre Castelo
Branco, desenhou com nitidez a situao quando disse num
discurso que a expresso de reino do Brasil devia ser
equiparada de reino dos Algarves. Reino era um s.
A trplice designao redundava para o sacerdote numa
trindade como a do dogma, em que a fuso fosse perfeita.
Admitida esta preliminar, no havia da parte dos
constituintes portugueses a menor idia de escravizar
os seus irmos ultramarinos, criando para eles um status
especial, inferior ao europeu. Borges Carneiro entre
outros, que era a figura mais simptica dos constitucionais
portugueses e era jurista, esteve mais de uma vez ao lado
dos deputados brasileiros e neste caso, dos deportados por
Lus do Rego, votou pela sua imediata soltura, fundando-se
na ausncia de culpa formada. Lus do Rego no era muito
familiar com as frmulas jurdicas e o processo que
acompanhou os presos era uma verdadeira monstruosidade. Os
presos no tiveram muito que esperar pela sua liberdade e
anistia por acrdo da Casa de Suplicao.
Sanada esta injustia, o Soberano
Congresso entendeu no deixar correr revelia a situao da
provncia, onde os elementos separatistas tinham por si a
tradio e podiam num momento dado explodir com todo o vigor
do seu ressentimento. A despeito da oposio movida pela
respectiva bancada, ainda ajudada por Vilela Barbosa,
resolveu-se a expedio para o Recife de uns centos de
soldados, a deduzir dos 1.200 destinados ao Rio de Janeiro,
afim de ocuparem o lugar do batalho dos Algarves, cuja
retirada havia sido solicitada pelos representantes de
Pernambuco (outubro de 1821).
A autoridade local havia que ser provida
dos meios de fazer manter a ordem pblica, com tanto mais
razo quanto os deputados ultramarinos porfia declaravam
ser intento do Brasil conservar a unio com Portugal sob a
gide de uma constituio comum.
A desunio ia porm insensivelmente
ressaltando dos debates, medida que estes se animavam e
davam a conhecer a oposio dos sentimentos e dos
interesses, que no era transitria, e sim fundamental. Na
questo que acabava de debater-se, Vilela Barbosa mostrava a
inanidade do recurso desse punhado de homens impotentes
contra o levantamento eventual de uma provncia, mas os
deputados pernambucanos contestavam a prpria
constitucionalidade do ato das Cortes, acedendo s
reclamaes de um capito general que ainda exercia seu
cargo por nomeao real, sem o prvio beneplcito do poder
legislativo e soberano, quando a autoridade passara
legalmente para as juntas de eleio popular. Se a regncia
no era um poder regular e como tal constitudo, muito menos
o era aquele sobrevivente de um passado abolido e execrado,
que relembrava horas de angstia e de martrio e junto ao
qual a presena de novas tropas portuguesas s podia tomar
ares de uma provocao com resposta certa.
CAPTULO V
O REGIME DAS JUNTAS PROVINCIAIS. LUS DO
REGO EM PERNAMBUCO E JOS BONIFCIO EM SO PAULO
No foram somente o Rio e a Bahia, a nova
e a velha capital do vice-reinado e do reino unido, que se
pronunciaram pelo constitucionalismo. Sabemos que a
iniciativa partiu at do Par e de fato todo o Brasil novo
se entusiasmou pela revoluo portuguesa, nela enxergando a
implantao de um regime liberal pela vitria das idias
democrticas lanadas pela Frana na circulao poltica. A
comeo no se podia lobrigar o intuito de recolonizao
deprimente, que teria entretanto de vingar no seio da antiga
metrpole desde que sua penosa situao econmica fora um
dos motivos essenciais do movimento constitucional.
Em Pernambuco Lus do Rego Barreto
representava, pela sua forte individualidade e pelas
circunstncias em que lhe fora confiado e em que ele
exercera o governo - imediatamente aps a supresso do
ensaio de repblica - um dos centros certos de resistncia
separao que poderia resultar da agitao poltica criada
em Portugal e propagada no Brasil, logo que os interesses
respectivos entrassem em conflito. Podia-se mesmo
consider-lo o eixo da resistncia independncia, se esta
soluo viesse a formular-se.
Inteligente e culto (68), o
capito-general de Pernambuco compreendeu perfeitamente que
no se podia eficazmente opor transformao em
andamento, de um regime absoluto para um regime
constitucional. mesmo crvel que no mentisse aos seus
prprios sentimentos quando declarou que simpatizara com a
revoluo liberal, ao ter notcia dela. Sua noo da
disciplina militar no lhe permitia contudo manifestar-se em
caso algum antes do seu rei, e seu tino poltico, de certo
avivado pelas luzes do genro, Rodrigo da Fonseca Magalhes,
que veio a ser um homem de Estado dos mais notveis do
Portugal liberal, mandava-o encaminhar o movimento e adaptar
as novas instituies s velhas tradies, em vez de fazer
tabela rasa do passado. Eram em suma idias idnticas s de
Palmela e que se consubstanciam na seguinte frase: dirigir o
trono a revoluo para no ser por ela derrubado.
s vistas do diplomata e s do general
concordavam, ao que se v, plenamente: apenas Palmela
opinava por diferentes constituies para os dois reinos.
Lus do Rego, ao mesmo tempo que dirigia ao soberano uma
representao, acompanhada de algumas outras de cmaras
municipais, expondo as aspiraes da populao que
governava, relativas a uma representao nacional e a uma
constituio poltica firmando os direitos e prerrogativas
dos cidados, dava ordens para a convocao de uma
assemblia de enviados de toda a provncia a fim de se
resolver se se devia ou no jurar a constituio que fosse
elaborada pelas Cortes de Lisboa (69).
A deciso arrancada na capital brasileira
pusilanimidade real, tirou-o desse embarao, unificando a
lei orgnica para as duas sees da monarquia e de antemo
ratificando-a. Seu papel ficou mais simples, se bem que no
isento de dificuldades, tratando-se de defender o monarca
contra qualquer eventual tentativa de deposio por
manifestao republicana ou de despojamento de uma parte dos
seus domnios. Para livrar o Brasil do contgio jacobnico,
as tropas portuguesas aquarteladas no ultramar constituam o
que se chamou o "cordo sanitrio", e Lus do Rego gabava-se
de poder agregar ao seu famoso batalho dos Algarves, 12.000
pernambucanos fardados, armados e disciplinados, tropa de
linha por ele adestrada e comandada por oficiais
portugueses.
As foras lusitanas eram, mesmo por
esprito de classe, aditas ao constitucionalismo, mas o
constitucionalismo do Brasil tinha no entender delas que ser
subordinado ao constitucionalismo de Portugal. No assentava
nem convinha que o reino americano tivesse uma economia ou
uma psicologia podendo conduzir dissoluo da Monarquia. A
adeso ultramarina revoluo portuguesa s devia ter o
intuito de robustecer e no envolver o perigo de enfraquecer
a unio. O liberalismo da me-ptria encerrava um pensamento
de desforra para com a colnia que a privara da supremacia
poltica e econmica. A clmide grega que esse liberalismo
revestia, era apenas para figurar de clssico: de fato, como
observava mordazmente Armitage, quando tratavam dos negcios
do Brasil, as disposies das Cortes tornavam-se to
aristocrticas, quanto sobre outros tpicos eram
democrticas. O resultado foi que a ex-colnia se persuadiu
deveras de que chegara o momento de viver sua vida prpria.
Como escrevia aos 82 anos o revolucionrio Mena Calado,
"hoje e ento ningum duvida que o Brasil queria dever
somente a si seus melhoramentos" (70).
Felipe Mena Calado da Fonseca, portugus
e antigo escrivo da correio no Cear, reivindica para si
e para o seu amigo, Manuel Clemente Cavalcanti de
Albuquerque, a honra e o mrito de terem preparado e
organizado a reao local contra Lus do Rego, encarnada na
junta de Goinia. Fizeram ambos parte da leva de presos
paraibanos por ocasio da revoluo, ainda que Manuel
Clemente tivesse cado prisioneiro no combate de Ipojuca, e
vieram de So Salvador apostados com elementos liberais
baianos a porem cobro ao perigo oferecido implantao da
liberdade pela presena no Recife de Lus do Rego e do seu
excelente corpo de oficiais.
Para ser vencedor o esprito nacional,
que era neste caso o esprito liberal, indispensvel e
inadivel se tornava arredar semelhante obstculo. Ora esse
esprito era o de 1817, que se propagara no norte, fora do
seu bero pernambucano, sobrevivera s execues, s
perseguies e aos sofrimentos, e mais aceso ia aparecer com
o regresso dos anistiados aos seus lares. Os presos de 1817
invocavam com muita razo a afinidade das suas idias
democrticas com as idias vencedoras em Portugal e
achavam-se mais no caso de as representar do que um
capito-general delegado de um poder discricionrio
(71).
Recorda Porto Seguro que Lus do Rego,
procurou conciliar os presos da Bahia, soltos pela junta
local de governo provisrio, pagando-lhes os ordenados e
restituindo-os aos seus lugares. Era ele o primeiro a
perceber que sua luta mais renhida seria a que tivesse de
sustentar com os elementos revolucionrios restitudos
vida ativa, elementos mais combativos do que os outros e nos
quais a devoo aos princpios republicanos se fora
convertendo pela saudade das vtimas e pelo espetculo da
dor numa f religiosa impregnada de proselitismo. O paiol
para explodir carecia apenas que um incidente, mesmo
fortuito, lhe pusesse fogo. A revoluo de 1820 era em suma
a justificao completa tanto da conspirao que ofereceu
pretexto execuo de Gomes Freire quanto da que levou
morte Domingos Jos Martins.
A memria, to fresca ainda, do movimento
pernambucano de 6 de maro, bastava para aconselhar Lus do
Rego a proceder com a maior prudncia ao experimentar pr em
vigor o gozo dos direitos constitucionais, mxime por um
mtodo revolucionrio. Nem podia ser outro o mtodo desde
que se sara da legalidade. Ele porm bem suspeitava que a
revivescncia de uma agitao poltica construtora
acarretaria sua queda.
A tarefa da aclimao em Pernambuco das
instituies representativas fora moralmente facilitada pela
atitude de el-rei, ao jurar a 26 de fevereiro adotar a
constituio que fosse elaborada pelas Cortes e aplic-la a
toda a monarquia. Surgira entretanto, como expresso da
efervescncia local, o alvitre de uma junta provisria como
a do Par e a da Bahia.
A notcia do pronunciamento do Rio chegou
ao Recife justo um ms depois de ocorrido, a 26 de maro, e
Lus do Rego logo se pusera em guarda para impedir que o
constitucionalismo, no seu parecer aceitvel e at
bem-vindo, se divorciasse da lealdade dinstica. A obra das
Cortes era alis de rtulo monrquico e na sua essncia
unionista. Para contemporizar todavia com a ebulio
poltica que pressentia crescente, o capito-general, que j
anteriormente obtivera a mencionada representao em favor
de uma constituio, como fruto da convocao em conselho
extraordinrio da cmara e do povo - espcie de cabildo
abierto das colnias espanholas - promoveu por essa nova
ocasio a eleio de um conselho consultivo de governo,
composto naturalmente de pessoas da sua parcialidade. Com
efeito nomeou a 31 de maro, em virtude de autorizao que
para tanto lhe foi concedida pelo conselho convocado a 29, a
chamada Junta Constitucional Governativa, que ainda recebeu
outros nomes e cujo pessoal (72) se modificou no
decorrer da sua existncia, crescendo ou diminuindo ao sabor
das desconfianas pessoais e dos interesses polticos do
capito-general. O pensamento oculto era sempre o mesmo:
evitar a separao que ele melhor do que ningum adivinhava
iminente, segundo mesmo mandara dizer para as Cortes de
Lisboa (73).
Paralelamente com a sua ao corria porm
a ao clandestina dos revolucionrios. Diz Mena Calado que,
alis sem aplauso seu, nem do seu amigo Manuel Clemente, foi
o morgado do Cabo o primeiro escolhido para cabea do
projetado movimento pernambucano. Jos de Barros Falco foi
o segundo escolhido, mas com nenhum dos dois logrou tomar
corpo o desgnio, que s assumiu feitio prtico e entrou em
caminho de realizao depois da chegada a Pernambuco, nos
princpios de junho de 1821, daqueles dois egressos do
crcere baiano, mais cheios de ardor ou mais pertinazes do
que os precedentes emissrios da Bahia.
Foram ambos sem tardana para o interior,
para o engenho Cangahu, de Joaquim Martins da Cunha Souto
Maior, e l, durante mais de dois meses, urdiram em completo
sigilo e com a mxima cautela a conspirao, cujas
ramificaes se estenderam Paraba, onde os dois
agitadores foram a indagaes e onde contavam com a
cooperao de vrios companheiros de enxovia, ao mesmo tempo
que com a oposio do batalho, cujo quadro se compunha de
oficiais portugueses e de inferiores brasileiros. Entre
estes se iniciou, como era lgico, a propaganda para
recrutamento do pessoal revolucionrio.
Lus do Rego, contrariando e negando o
anelo de uma eleio popular de junta a fim de permanecer
ele frente do governo, pretendia agir de acordo com o
decreto das Cortes de 18 de abril - o decreto que declarara
legtimos os governos locais que se estabelecessem para
realizar a regenerao poltica da nao portuguesa e
responsveis aqueles que, mesmo sendo autoridades, movessem
oposio aos benemritos da ptria que tivessem chamado a si
tal regenerao. A Constituio fora proclamada na Paraba a
29 de abril; Lus do Rego f-la proclamar e jurar no Recife
e Olinda a 29 de maio e mandou proceder s eleies para
deputados s Cortes Constituintes, as quais tiveram
pacificamente lugar a 7 de junho.
A legitimao pela assemblia portuguesa
dos governos provisrios organizados tumultuariamente e que
lhe tivessem prestado termo de obedincia, uma vez posta em
violento contraste com os sucessos de 5 de junho no Rio de
Janeiro, que cercaram de entraves o governo civil e militar
da regncia, levou no entanto, o capito-general de
Pernambuco a pensar na real eleio de uma junta. O conselho
porm por ele adrede convocado, adicionado de deputados
eleitos, comandantes de corpos e outras pessoas gradas,
opinou de preferncia pelo reforo da junta consultiva j
existente. Com isto no fez mais do que aumentar a oposio;
concomitantemente cresceram as perseguies, que nem todas
eram sem razo, e o regime das conspiraes, denncias e
sumrios de culpa chegou crise aguda de 21 de julho,
quando Lus do Rego escapou mal ferido pontaria de Joo
Souto Maior. Como conseqncia, as 42 deportaes para
Lisboa e 13 degredos para Fernando de Noronha.
Depois de restabelecer-se dos ferimentos
recebidos por ocasio do atentado, Lus do Rego, no
obstante amparar sua posio com o juramento de fidelidade
s Cortes, resolveu, no dizer de Porto Seguro, pedir sua
demisso e desde logo proceder eleio de uma verdadeira
junta de governo, a meio do que o teria surpreendido a
notcia da organizao da junta de Goinia, a 29 de agosto.
Parece mais razovel o que escreve Mena Calado, a saber, que
o capito-general teve notcia dos sucessos de Goinia no
dia anterior ao da recepo do ofcio da respectiva junta e
por isso, reunindo a cmara do Recife com os militares da
sua escolha, "amassou uma coisa a que deu o nome de conselho
governativo da provncia", a qual quis fazer passar pela
junta ideal (74).
* * *
A iniciativa do movimento de Goinia
partiu de Nazareth, sendo o primeiro convidado a aderir e
participar no levante o tenente-coronel de milcias Manuel
Incio Bezerra de Melo, senhor do engenho Tamataupe. Da
foram expedidos os estafetas a aliciarem outras foras para
se levar a cabo a eleio de um governo provisrio, no
esprito, como se dizia, das ordens emanadas de el-rei Dom
Joo VI. Goinia foi marcada como prazo dado do
pronunciamento das milcias. Mena Calado comeou por ler seu
enftico manifesto brigada de Bezerra de Melo, e pelas
cinco horas da tarde saram de Nazareth uns 600 e tantos
homens a p e a cavalo. Aps uma noite de chuvas torrenciais
chegaram de madrugada s proximidades de Goinia uns 200
homens: 400 e tantos tinham desertado, mau grado a
eloqncia tribuncia do agitador portugus.
Conseguiram entretanto esses poucos
insurretos que a vila de Goinia aderisse ao movimento,
apesar da oposio do juiz de fora Dr. Sarafana. A pequena
fora disposta com arte em volta e a distncia do povoado, e
entremeada com a gente que para l se dirigia ou de l saa
e era propositadamente demorada, fez impresso. O vereador
Gomes dos Santos, mandado a examinar a situao, volveu
exclamando: "Tem gente como bicho". Logo em seguida era a
cmara ocupada, forada sua anuncia, substitudos os
oficiais portugueses do batalho ou companhia por oficiais
brasileiros, cortadas as comunicaes com os outros centros
de populao e intimado o capito-general.
Este achava-se politicamente assaz
enfraquecido, mas no estava na sua natureza, nem era
prprio do seu brio de militar, ceder sem lutar. O nmero
dos seus presos polticos era avultado, turva a atmosfera
que o cercava; mas julgou poder arrostar a hostilidade que
se desenvolveu e espalhou rapidamente, logo que o
descontentamento latente pde firmar-se e agrupar-se em
redor de um centro de ao. Tal centro vinha oferecer-lhe a
junta rebelde? (75) e os senhores de engenho da
redondeza foram os primeiros a manifestar-se em seu favor. O
que houve porm de pior para o governador foi a desero de
milicianos brancos e de cor, que se seguiu na capital
divulgao da notcia da insurreio e que foi imitada por
muitos jovens fora do servio, mas em condies de pegarem
em armas, e tambm por soldados de linha.
Mrs. Graham, que esteve em Pernambuco de
21 de setembro a 14 de outubro de 1821 - o tempo que a
estacionou a fragata de guerra britnica Dons, do
comando do seu marido - escreve (76) que grande
parte do regimento de caadores abandonou o capito-general
para juntar-se aos revoltosos, formando o corpo mais
eficiente do ataque contra o Recife, empreendido com
armamento e cartuchame tirados por traio do depsito do
Arsenal de Guerra. A impopularidade de Lus do Rego conduzia
a atos tais. Nem a sua junta tinha prestgio para substituir
o que a ele lhe faltava, porquanto o sistema que seu governo
representava pecava pela base perante as novas condies
requeridas, e tanto assim que apesar do governo
constitucional eleito a 30 de agosto pela cmara, clero e
nobreza (77), Lus do Rego assegurava para
Goinia, ao propor conciliao a 4 de setembro, que
pretendia convocar as cmaras municipais da provncia em
congresso, delegando cada uma dois enviados.
"Senhores - diziam os do Recife -
lancemos no golfo do esquecimento todos os contratempos
passados: reine a amizade constitucional, todos revivemos
cidados; como possvel que queiramos converter em
instrumento de guerra as prerrogativas da paz? Ns esperamos
de Vossas Senhorias as provas da mais cordial unio, e
aguardamos os seus representantes para estreitarmos com eles
os laos da amizade, esmerarmos todos pelos interesses desta
provncia e da populao". O tom do apelo denuncia
debilidade, quase humildade. A junta de Goinia reteve o
portador do ofcio, coronel Acioli, e respondeu com altivez,
quase arrogncia, que reconhecida pela imensa maioria das
cmaras da provncia, no podia nem devia alterar o que se
achava feito. As blandcias foram impotentes, como tinham
sido as ameaas, para faz-la mudar de atitude. O resto
estava lanado: as armas decidiriam.
A junta rebelde no esperou ser atacada:
promoveu ela prpria a ofensiva, como o melhor meio de
vencer. Entretanto a junta legalista - se que alguma era
legal - continuava a ensaiar apelos moderao, concrdia
e at fuso no deixando por cautela de fazer marchar
tropas sobre Goinia. O primeiro contato com essas foras
sadas do Recife teve lugar em Iguarass e a se deu a
defeco da guarda avanada dos legalistas, que era composta
de parte do 1. batalho de caadores de linha. Intimidado
ficou o ltimo emissrio de Lus do Rego, Dr. Ucha, por um
manejo que Mena Calado relata, carregando talvez a mo no
pitoresco, porque o terror do Dr. Ucha ele o descreve
mortal ao ouvir os toques de rebate e os morras da
rapaziada, deixando-se trancar num armrio at ser
transportado para o Convento do Carmo.
Seja ou no exato o episdio, desses
talvez a que se recorre para enjoliver l'histoire, o
fato que o emissrio de Lus do Rego, aps assinar
acobardado uma ordem de contramarcha expedio, se
recolheu no Recife a meio de novas deseres, do resto dos
batalhes de caadores e do esquadro de cavalaria,
permitindo aos rebeldes reforarem seus contingentes e
iniciarem sua marcha a 15 de setembro.
A junta de Goinia intitulava-se Governo
Constitucional temporrio e dizia agir de acordo com as
Cortes Gerais da Nao Portuguesa, sem intuitos de
separao. Na sua primeira reunio, aos 2 de setembro,
depois de decidir o infalvel aumento de pagamento s
tropas, passando cada soldado a ter 200 ris dirios e
recebendo os desertores graduados um posto de acesso,
deliberou-se pr luminrias na vila e celebrar um Te Deum
pela feliz chegada de Dom Joo VI a Portugal (78).
Considerando-se a junta o governo "realmente reconhecido
legitimo", aprovou nas suas sesses que se oficiasse ao
secretrio do governo do Recife para que remetesse para
Goinia todos os ofcios e documentos originais dirigidos
pelas Cortes e pela regncia provncia de Pernambuco, e
que se ordenasse junta da Real Fazenda que no mais
pagasse soldos e ordenados ao general Lus do Rego e pessoas
s suas ordens, s podendo as despesas pblicas. ser
autorizadas pelo governo verdadeiramente legal.
Comandava a expedio de Goinia o
sargento-mor Jos Camilo (80) Pessoa de Melo. De
acordo com a ata da sesso, marcharia a fora da seguinte
forma: na vanguarda o corpo de guerrilhas, o corpo de
cavalaria e uma parte do regimento de caadores; no centro o
batalho 14, na vanguarda do estado-maior, marchando na
retaguarda deste o batalho 16 com o corpo de artilharia
adido; na retaguarda o batalho 15, seguido da bagagem, dos
presos de Estado que de Iguarass seriam remetidos para a
fortaleza de Itamarac, onde havia maior segurana, do corpo
de henriques e pardos, da outra parte dos caadores e de
outro corpo de cavalaria (81).
No Recife dispusera-se Lus do Rego a
combater essas foras com os recursos sua disposio,
gradualmente diminudos pelas sucessivas fraternizaes de
regulares. Mrs. Graham deixou-nos uma animada descrio da
cidade assediada: cavalos selados e soldados armados,
prontos a mont-los ao primeiro sinal; canhes com morres
acesos ao lado, em frente ao palcio do governo; as lojas
fechadas, porque os negociantes, constituindo a milcia,
estavam no servio militar, com tanto maior zelo quanto
muitos eram portugueses da Europa e se arreceavam do saque
no caso de um assalto feliz; peas de campanha, com
sentinelas vigilantes, nas extremidades das ruas e nos
encontros das pontes; o mercado sem legumes, sem leite, e
escasso de po de trigo, de bolos de mandioca e de
combustvel; os escravos mandados recolher a cada alarma
para que no ajudassem de dentro os atacantes; ndios de
arco e flechas cooperando na defesa a troco de um gole de
cachaa e de um punhado de farinha.
Os dois pontos extremos do cerco eram
Olinda e Afogados onde a investida se desenhou,
verificando-se o encontro mais renhido a 21 de setembro,
quando uma das colunas, a do sul, foi detida no caminho do
Recife pelo canhoneio do forte das Cinco Pontas ao passo que
a do norte atacava Olinda, ataque repetido na noite de 29.
Lus do Rego recebera da Bahia um reforo de 300 homens de
linha (350 diz Mrs. Graham, 340 a correspondncia do
prncipe Dom Pedro para seu pai) com petrechos de guerra e
munies, pelo que se sentiu no primeiro momento mais
animado. A junta de Goinia, por seu lado cada vez mais
esperanada, contava cerca de 2.000 homens em armas e
instalou seu quartel-general em Beberibe.
Mrs. Graham que, por ter voltado para
bordo, deixou de presenciar o ataque de Afogados pelos
constitucionais de Goinia na noite de 1. de outubro, teve
contudo ensejo de visitar o seu acampamento, incorporando-se
na embaixada inglesa despachada para obter a livre passagem
da roupa suja do navio, mandada lavar nas guas claras e
frias do Beberibe e retida pelos patriotas. Por mais animosa
que ela fosse, teria porventura hesitado em ir se j ento
soubesse que na oferta de paz por parte da junta provisria
de Pernambuco, esta afirmava que o governo que se reputava
legal contava como a assistncia das fragatas inglesa e
francesa estacionadas no Recife, oferecida sobre o
fundamento de proteo propriedade estrangeira, de sditos
das duas naes, existente na cidade.
Escreve Mrs. Graham que positivamente
nenhuma assistncia fora oferecida pela fragata inglesa:
fora verdade solicitada, mas recusada de acordo com as
instrues de estrita neutralidade do governo britnico,
limitando-se o comandante a prometer proteo pessoal a quem
quer que dela viesse a carecer, independentemente da
nacionalidade. A proteo propriedade britnica achava-se
garantida com a presena do navio de guerra, que no se
encontrava ali para outra coisa.
A pequena expedio da Dons levava
passaportes e fora informada do santo e senha. Duas milhas
separavam o ltimo posto do governo do primeiro posto dos
patriotas, cuja guarda de farroupilhas consistia de um negro
de cara jovial, armado de uma espingarda de caa, um
nacional empunhando um mosquete (blunderhuss) e dois
ou trs mestios armados de paus, espadas e pistolas. Mais
adiante, numa encruzilhada e rodeada de molecas toucadas de
vermelho, com balaios cabea, vendendo fruta e gua
fresca, a casa de guarda, donde um jovem oficial de
caadores com um todo de cavalheiro - (gentlemanlike)
escreve Mrs. Graham - acompanhou a party at o pouso
da junta.
No caminho encontraram a deputao
(segundo Mrs. Graham era a deputao da Paraba) que ia
entender-se com Lus do Rego - cavalgada de 40 pessoas,
levantando bandeira branca, ostentando, umas, ricas fardas
militares, indo outras paisana, com o traje usual dos
senhores de engenho. A tropa que ia aparecendo estava
sofrivelmente equipada, mas curiosamente vestida. No mais
de 200 tinham uniforme e pertences de soldado: o que mais se
via eram roupas e armas de toda espcie, sendo as roupas de
couro, de pano e de linho, e variando os feitios das
casaquinhas curtas (shortjackets) aos compridos
chals escoceses.
Mena Calado, na frase da autora a
smart little man (um homenzinho esperto), falando
francs que se entendia (tolerable French),
convidou-a tambm a entrar na sede da junta e ouvir uma
catilinria contra Lus do Rego e sua tirania, "que tinha
muito do sabor dos discursos carbonrios na Itlia". O
vestbulo da casa tinha a um tempo aspecto de quartel e de
hospital: ocupavam-no soldados, cavalos e feridos, cujos
gemidos se misturavam com o berreiro alegre dos sos. Pela
escada, um tal tropel de gente que era custoso subir; numa
sala grande e enxovalhada, com restos de talha dourada nos
painis do teto e uma moblia disparatada, cada cadeira do
seu tamanho e feitio, funcionava a junta.
Mrs. Graham, que nessa ocasio foi muito
interrogada pelos membros desse governo em armas sobre as
probabilidades do reconhecimento da independncia do Brasil
pela Inglaterra e sobre a possibilidade de uma interveno
inglesa para ajudar tal soluo, de antemo se defende
contra qualquer acusao que lhe possa ser assacada de
pretender na sua narrativa zombar das reunies populares do
Brasil. Ela era a primeira a reconhecer que semelhantes
reunies, de carter poltico, tinham em vista os melhores
objetivos: a independncia nacional e a liberdade civil sob
uma legislao reformada, admitindo alis que Pernambuco
tinha fartos motivos particulares de queixa. A comparao
que lhe sugeriu a carbonria italiana toda, escreve ela,
em abono do Brasil, porque as revolues brasileiras no
tiveram o carter sanguinrio das agitaes italianas e o
pas encontrou no seu soberano, em vez de um tirano, como
tantos da Itlia, um defensor e um protetor.
A junta de Goinia celebrou sua primeira
sesso em Beberibe a 5 de outubro (82), j para
discutir propostas de conciliao. A partida estava perdida
para o governador que a junta adversa declarara demitido do
seu cargo, avocando o tratamento de autoridade legal por
virtude do mesmo decreto de 18 de abril de que se socorria
Lus do Rego para prolongar a agonia do seu poder.
Rodeavam-no de resto traidores e espies: o resultado do seu
conselho militar de 2 de outubro, o qual findou
meia-noite, era juntamente com o plano da avanada
combinada, conhecido em Beberibe uma hora depois, e s duas
horas da madrugada recebia Lus do Rego um ofcio irnico de
Mena Calado, que burlara a marcha concertada (83).
O melhor era entrar em composio, tanto
mais quanto recebera entrementes o capito-general um oficio
do prncipe regente do Brasil, de 21 de agosto, mandando
estabelecer na provncia, de ordem das Cortes, uma junta
provisria de governo, o que no era possvel levar a efeito
com uma luta aberta. Para seren-la foram despachados do
Recife trs emissrios: o tenente-coronel Lus Francisco de
Paula Cavalcanti de Albuquerque (depois visconde de
Suassuna), o negociante Gervsio Pires Ferreira e o
tenente-coronel Joo de Arajo da Cruz, este ltimo enviado
pelo governo da Paraba (84). A tratar com eles
apresentaram-se a prpria junta de Goinia e alguns
representantes de cmaras da provncia, nomeadamente Goiana,
Pau de Alho, Limoeiro, Iguarassu, Cabo, Serinhaem e Santo
Anto.
Mena Calado, como preliminar, negou a
legitimidade dos emissrios do Recife, pelo fato de negar a
legitimidade da autoridade de Lus do Rego. No acontecia
outrotanto com os enviados paraibanos, cujos diplomas foram
julgados verdadeiros e legais, porque eram mediadores e no
representantes do conselho governativo do Recife. De fato, o
governo da Paraba fora solicitado para intervir em favor de
uma e outra parcialidade, mas preferira, concordando com o
seu povo, abster-se de manifestar simpatias e assumir o
papel de conciliador.
Os delegados de Lus do Rego foram
contudo reconhecidos por maioria de votos, sem que isto
implicasse o reconhecimento do capito-general. 0O essencial
parecia decidi-lo a embarcar para Portugal, diminuir o
nmero de tropas em armas e no s "sossegar o esprito dos
povos", como "aliviar a agricultura da suspenso dos
trabalhos rurais, desembaraando as milcias empregadas no
restabelecimento da ordem". Do interior tinha vindo bastante
gente armada e o governo de Goinia desde esse dia tratou de
licenciar as foras reunidas, despachando-as para suas
localidades.
No h dvida que com o governo rebelde
de Goinia estava o esprito da nova legalidade, segundo a
tinham construdo a deciso das Cortes de Lisboa e o aviso
do prncipe regente de 21 de agosto de 1821, devendo a junta
constitucional provisria ser eleita pelos deputados das
cmaras da provncia na sua capital. Chegara-se a um ponto
em que o desejo de pacificao era grande de ambos os lados:
apenas Mena Calado, intransigente sempre, protestava em cada
ata de reunio, por honra e para honra de Pernambuco, contra
todo instrumento em que figurassem Lus do Rego e seu
conselho governativo, cuja jurisdio ele repelia.
O acordo, representado por um armistcio
e uma conveno ratificados a 9, fizera-se porm sobre a
melhor base possvel: a da subsistncia da autoridade das
duas entidades administrativas apenas pelo curto perodo que
poderia mediar entre a conveno do Beberibe e a chegada da
determinao das Cortes soberanas acerca da instalao da
junta provincial a ser eleita. Ficavam entretanto, girando
nas suas respectivas rbitas - o conselho governativo no
Recife e Olinda e seus termos, e o governo de Goinia nos
distritos municipais que o tinham acompanhado. Ambas as
entidades concordaram nas medidas para manuteno da ordem,
franquia das comunicaes e pagamento das tropas e dos
funcionrios pblicos.
Todas as cmaras foram ento convidadas a
mandar, cada uma trs representantes, reunio fixada para
26 de outubro na S de Olinda, com o fim de ser eleito o
governo provisrio constitucional, o qual ficou composto de
Gervsio Pires Ferreira, Felipe Neri Ferreira, cnego Dr.
Manuel Incio de Carvalho, Bento Jos da Costa (nico membro
portugus), Joaquim Jos de Miranda e tenente-coronel
Antnio Jos Vitoriano Borges da Fonseca, sendo o primeiro
presidente, e secretrio o padre Laurentino Antnio Moreira
de Carvalho.
J por esse tempo tinham chegado a
Pernambuco o decreto especial das Cortes de l. de setembro
e a carta rgia de 2, mandando criar uma junta provisria
escolhida pelos eleitores de parquia das comarcas de Olinda
e do Recife, e tambm pelos da comarca do serto que por
estarem mais prximos pudessem reunir-se no prazo de dez
dias, dentro do qual se devia impreterivelmente concluir a
referida eleio. A jurisdio administrativa da junta
compreendia, na forma das demais criadas, todos os ramos do
servio pblico, sem restrio alguma, sob o regime das leis
e disposies existentes, e a autoridade militar ficava
desde ento separada e independente da autoridade civil,
confiada a um governador das armas, agindo de harmonia e em
correspondncia com a junta, porm sujeito ao governo do
reino e responsvel a este e s Cortes.
Foi uma modificao profunda, posto que
menos do que primeira vista aparece, a que assim se
introduziu na administrao brasileira, cuja feio civil
ficava sendo autnoma, representando entretanto a feio
militar o elo que ainda prendia a antiga colnia sua
metrpole, a qual por meio desta autoridade reafirmava o seu
poderio. O governador das armas verdade que facilmente
poderia converter-se num ditador, dispondo da fora pblica
para coagir a junta de governo e suspender as liberdades
constitucionais.
A concepo desta distino nada
imaginaria no se tem modificado com o correr do tempo,
apesar de toda a civilizao de que, pelo menos at a
conflagrao de 1914, se vangloriava o mundo contemporneo.
As garantias constitucionais s existem para tempo de paz:
em tempo de guerra desaparecem como por encanto, ou so
seqestradas, sem que ningum se queixe. em suma o mesmo
que recomendava o ministro Toms Antnio ao conde de Vila
Flor quando este foi mandado tomar conta do governo da
Bahia, o que se no realizou pela retirada forada do conde
da Palma: "Havendo tumultos, ou motins, tenha V. E. o
cuidado de que se faam aos rus processos judiciais, para
no vir a embaraar-se o nimo dos juizes, na imposio das
penas. Mas, quando for necessrio preveni-los ou no
flagrante, proceda militarmente na forma do regimento de
governadores, pois a conservao do Estado de Superior
considerao" (85).
Esperava-se a deciso de Lisboa para
regularizar a situao criada pela conveno do Beberibe, a
qual estatura que os deputados da junta de Goinia tomariam
parte igual no conselho da administrao existente e o
capito-general permaneceria testa do departamento
militar, separao de poderes que veio a ser logo confirmada
pela legislao adotada em Lisboa com relao ao reino
americano, conquanto no mais em proveito de Lus do Rego.
Este, ao mesmo tempo que o aviso das resolues tomadas,
recebia ordem de se no intrometer na eleio, qual
concorreram 134 eleitores de parquia, e de entregar o
governo nova junta, retirando-se para Lisboa, o que fez na
barca francesa Charles Adle, no prprio dia
da eleio. A junta eleita, que era toda composta de gente
da terra menos um, tomou posse a 27, assumiu o governo no
Recife a 28 e prestou juramento a 31 de outubro.
Com Lus do Rego deviam recolher-se as
foras europias, o que as Cortes contramandaram, enviando
at novos contingentes, quando perceberam o passo errado que
assim iam dar. O capito-general j estava porm longe e o
batalho dos Algarves j se achava restitudo ptria
(janeiro de 1822), quando chegaram as novas ordens, que a
junta deixou de cumprir, proibindo o desembarque das tropas
de reforo, se bem que fornecendo abastecimento aos
transportes, que foram expedidos para o Rio de Janeiro
(fevereiro de 1822). S o comandante militar, substituto
efetivo de Lus do Rego, general Jos Correia de Melo,
desceu para ocupar seu posto.
Das tropas da Bahia depressa se tinham
visto livres os pernambucanos. Essas tropas tinham alis
manifestado tendncia para se juntarem aos patriotas, mas
seu comportamento foi pssimo. Diz Mrs. Graham que suas
bebedeiras e arruaas, nos dez dias em que estiveram em
Pernambuco, indignaram a populao (quite disgusted the
people).
* * *
As juntas foram o alicerce do Brasil
constitucional. Entre a Bahia e o Par elas se foram
sucedendo num esprito de passividade nacional, diferentes
para com a poltica unionista das Cortes, refratrias
subordinao a um centro executivo brasileiro.
Sobre Sergipe, no querendo o governador
jurar a Constituio, estendeu a junta portuguesa da Bahia
sua autoridade, que s foi dissolvida por levantamento
popular quando se aclamou a independncia, em outubro de
1822. Alagoas teve porm junta prpria desde 11 de junho de
1821, com o governador por presidente, sendo eleita a nova a
31 de janeiro de 1822, a qual continuou fiel s Cortes de
Lisboa, desobedecendo aos decretos da regncia do Rio de
Janeiro, at que a 23 de julho de 1822 foi reconhecida a
autoridade de Dom Pedro, assumindo a presidncia da junta
local o juiz de fora de Penedo e ouvidor interino da
comarca, Caetano Maria Lopes Gama, que era pernambucano e
morreu visconde de Maranguape. Na Paraba o governador,
coronel Fonseca Rosado, fez logo a 17 de abril ler o aviso
do juramento da Constituio no Rio a 26 de fevereiro, e a
pedido da oficialidade do batalho de guarnio ele prprio
a jurou a 29. A junta governativa s foi eleita a 3 de
fevereiro de 1822, de acordo com o decreto das Cortes de 29
de setembro e presidida pelo tenente-coronel Joo de Arajo
da Cruz, mediador em Beberibe. Do Rio Grande do Norte era
ainda governador Jos Incio Borges, que fora deposto pela
revoluo de 1817 e reposto pela contra-revoluo e que
agora fez proclamar a Constituio a 24 de maio, sendo a 12
de dezembro eleita a junta provisria, que continuou at a
independncia.
O capito-general do Maranho, marechal
de campo Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, pretendeu
imitar Lus do Rego, fazendo jurar a Constituio a 5 de
abril e permanecendo ele, por vontade da tropa, testa do
governo, com a assistncia de um conselho consultivo
presidido pelo bispo. Numa nova reunio, "fruto do suborno e
do terror" na expresso de Porto Seguro, porque se efetuou
aps a priso dos elementos oposicionistas, alcanou o
governador novo triunfo, pelo que, confirmado no poder,
prosseguiu discrecionariamente como dantes at que, pela
disposio das Cortes, houve que eleger a junta governativa,
o que, teve lugar a 16 de fevereiro de 1822, embarcando o
governador a 28.
Esta junta, presidida pelo bispo, frei
Joaquim de Nossa Senhora Nazareth, era composta de pessoal
partidrio das Cortes. As ordens da regncia viam-se
desacatadas e a atitude da provncia assemelhava-se da
Bahia e de Pernambuco depois da retirada de Lus do Rego.
O Norte formara na sua disperso um bloco anti-unionista,
acompanhando-o a mais importante das capitanias centrais,
que era ao mesmo tempo a mais povoada das provncias do
Brasil - Minas Gerais, e servindo-lhe de contraste a coeso
ultramarina, com vistas a nacional, que no Sul se entrara a
desenhar pela inteligncia entre o Rio de Janeiro e So
Paulo.
O Norte era ento das duas sees, e
englobando num s os dois Estados do Brasil e Par-Maranho,
a que primava pela valia agrcola e comercial. Da Bahia
"rica e amenssima" dizia a carta de congratulao das
Cortes a el-rei pelo juramento de 26 de fevereiro, que era
"a chave desse vastssimo continente". No seu porto
entraram, em 1816, 519 embarcaes e saram 431. As suas
importaes subiram no mesmo ano a mais de 9.000 contos,
entrando os escravos pelo valor de 2.500 contos e
seguindo-se-lhes os vinhos e as chitas com quase 900 e 800
contos respectivamente. Sua exportao excedia 6.000 contos,
o dobro de trs anos antes. O Maranho, que no fim do sculo
XVIII no contava mais do que 75.000 habitantes e contaria
nessa ocasio 100.000, era uma capitania economicamente
organizada, tendo, em 1820, 18 fbricas de descascar e
beneficiar o arroz, 4 prensas de algodo, 6 olarias, 20
fornos de cal, engenhos de acar, destilaes e teares de
algodo. O Par exportava igualmente algodo e arroz, posto
que em menos considerveis quantidades, mas a variedade dos
seus artigos de exportao era superior, abrangendo cacau,
caf, salsaparrilha, canela, peles, leo de copaba,
aafro, anil, goma e madeiras de construo.
Foi a mesma junta maranhense a que tentou
resistir proclamao da independncia quando o elemento
favorvel separao tentou declarar a adeso da provncia,
a 19 de outubro de 1822. Invocou ela "que nenhumas relaes
tinham os maranhenses com o Sul do Brasil, ao passo que os
seus parentes estavam em Portugal, que era o verdadeiro
mercado dos seus produtos, e para onde as prprias
comunicaes eram mais fceis que para o Rio de Janeiro, nem
que a natureza, com as suas mones e ventos, tivesse
querido mostrar-lhes a unio que mais lhes interessava"
(86).
Ensaiou o Maranho formar uma liga
portuguesa com o Piau e o Par. A primeira junta paraense
durou at ser instalada a outra a 11 de maro de 1822,
chegando de Pernambuco em abril o comandante das armas,
brigadeiro Jos Maria de Moura. Apesar de igualmente
infensos regncia do prncipe, general e junta no se
entendiam bem: s concordavam plenamente em subtrair o Par
influncia do governo do Rio de Janeiro, cujas instrues
no eram cumpridas, no sendo, no entanto, unnime o
sentimento de lealdade para com Portugal, a saber que o da
independncia ia penetrando na regio amaznica, embora mais
vagarosamente do que nos centros fluminense e paulista.
As condies em que se operou a
transformao poltica em vrias provncias do Brasil,
sobretudo do Norte, foram a causa da agitao que ali
perdurou passando de aguda a crnica, e que se espraiou sob
a forma de rixas pessoais, de tropelias e violncias, de
assassinatos brbaros em que se compraziam famlias
inteiras, legando os ascendentes aos descendentes suas
vinganas e montando uma mquina de represlias inexorveis.
Era o regime puro e simples da vendetta e foram
precisos largos anos para se restabelecer a normalidade
moral, ao mesmo tempo que a constitucional.
No houve capitania que mais sofresse
desse estado de coisas do que o Cear, que em 1821-1822
passou pelas mudanas comuns a todas: a deposio do
governador, que era um oficial de marinha - no dizer de Joo
Brigido (87), avaro, devoto e poltro -; a
organizao de uma junta constitucional sob a presidncia do
comandante da fora de linha Francisco Xavier Torres e a sua
substituio por outra junta, nomeada pelos eleitores dos
deputados s Cortes de Lisboa. A independncia foi
proclamada em Ic a 16 de outubro de 1822, ao se reunirem
ali os eleitores do sul da provncia para a escolha dos
constituintes brasileiros. O governo temporrio por eles
organizado, pela aliana de Tristo de Alencar Araripe, um
dos implicados na revoluo de 1817, com o chefe realista
Filgueiras, tomou conta do Cear e decidiu socorrer o Piau
contra a truculncia de Jos da Cunha Fidi, que no
permitia provncia juntar-se causa da independncia e
rebatia pelas armas as foras dos patriotas. A expedio
cearense compunha-se de vaqueiros mal-armados,
mal-abastecidos e mal comandados, mais se assemelhando a um
movimento de tribo nmada, mas tinha por si o nmero - 6.000
homens, e o cerco posto a Caxias, onde se acoutara Fidi,
redundou na capitulao deste (1. de agosto de 1823).
* * *
Governava So Paulo em 1821 o
capito-general Joo Carlos Augusto de Oyenhausen, de
ascendncia austraca e futuro marqus de Aracati. Nas
capitanias de Mato Grosso e Cear, que anteriormente
administrara, deixara excelente reputao, sendo que
trouxera do reino europeu para o Cear a comisso especial
de prender um potentado que assassinara um juiz ordinrio,
diligncia que cumpriu "com audcia e ttica" no dizer de
Joo Brgido, sempre preenchendo suas funes a contento de
todos.
A 23 de maro de 1821 mandou ele publicar
por bando na capital paulista o advento do regime
constitucional e esperou que se manifestassem os habitantes,
o que veio a suceder exatamente trs meses depois, a 23 de
junho. O estado de desassossego era idntico ao das outras
capitanias e o capito-general sentia-se desmoralizado, na
impossibilidade de agir como competia a uma autoridade da
sua categoria, assaltado at por uma sublevao militar
motivada pela demora na aplicao do aumento do soldo. O
civismo de um capito, por nome Jos Joaquim dos Santos,
poupou cidade as indignidades e os desatinos que tinham em
mente os desordeiros e restabeleceu o sossego,
generalizando-se a convico de que somente a formao de um
governo provisrio local acalmaria o mal-estar e restituiria
o prestgio ao poder pblico.
Foi mesmo para reprimir a anarquia
latente que alguns patriotas levaram a cabo esse intento,
fortalecidos na sua resoluo pela convocao dos corpos de
milcias. Os caadores de linha prontamente apoiaram o
movimento, anunciado pelo sino da cmara tocando a rebate.
Congregados povo e tropa e convidados ouvidor e senado da
cmara para assistirem eleio, foi o Dr. Jos Bonifcio
de Andrada e Silva instado para presidir o ato, o que a
melhor prova do respeito que inspirava sua pessoa.
Jos Bonifcio era com efeito um tipo de
homem que no podia sugerir desconfiana a parcialidade
alguma. Tinha 58 anos: brasileiro de nascimento, estudara em
Coimbra; formara-se em leis e em filosofia; dedicara-se ao
estudo da mineralogia e da metalurgia; viajara e praticara
durante dez anos, de 1790 a 1800, em toda a Europa, s
custas do governo; fora no seu regresso nomeado
desembargador, intendente geral das minas e professor da
universidade; desempenhara comisses oficiais de carter
cientfico e propsito prtico, tais como o encanamento do
rio Mondego e a arborizao das suas margens; defendera o
reino europeu frente do batalho acadmico por ocasio das
invases francesas e, como scio e secretrio da Academia
Real das Cincias, salientara-se pronunciando elogios
histricos, entre eles o da rainha D. Maria I, repassado do
sentimento monrquico que nele jamais se dissipou, mesmo
quando associado a um sentimento democrtico mais intenso,
produzido pelo ardor patritico ou pelos ressentimentos
pessoais a que nenhum ser humano pode ser alheio.
No podia por tudo isso deixar de querer
a Portugal, ptria da sua inteligncia, bero das suas
amizades espirituais e ninho das suas saudades. Voltando
porm para o Brasil em 1819, assistira ao ocaso do reinado
americano de Dom Joo VI e sentira palpitar em redor de si
as aspiraes, posto que confusas e desunidas, da jovem
nacionalidade que almejava bater suas asas ao sol da
liberdade e adejar sem peias no espao imenso. Esposando
tais aspiraes, ele no as minguara com preconceitos
bairristas, antes as engrandecera com um golpe de vista que
abarcava todo o pas, sem todavia sacrificar a ordem
particular dos interesses locais.
As viagens e o intercurso delas derivado
tinham alargado os horizontes do sbio mineralogista e
qumico, que aprendera a harmonizar cosmopolitismo com
patriotismo e distribuir os encargos e as responsabilidades
de carter pblico pelas esferas federal, nacional e
provincial, como do f essas justamente afamadas instrues
da junta de So Paulo aos deputados paulistas s Cortes de
Lisboa, para as quais Jos Bonifcio no s ps em
contribuio sua prpria experincia, a familiaridade do seu
esprito enciclopdico com os negcios polticos, como as
lembranas e sugestes oficialmente solicitadas das cmaras
municipais da provncia. As instrues por ele redigidas
tornaram-se nas suas mos alguma coisa que recorda os
cahiers de charges com que os representantes das
provncias francesas se apresentaram em 1789 assemblia
dos Trs Estados e que tanto serviram a Taine para a sua
descrio da Frana do antigo regime no momento da
revoluo.
Por ocasio da formao da junta de So
Paulo deu Jos Bonifcio, apesar da sua natureza trfega e
impetuosa, prova de esprito pblico moderado e conciliador.
Foi ele quem props para presidente o mesmo capito-general
Oyenhausen, aps uma fala de que resultava seu ardente
desejo de concrdia. Aclamado ele prprio vice-presidente,
props aprovao popular os vogais representantes das
vrias classes - a eclesistica, a militar, a comercial, a
literria e pedaggica e a agrcola, com mais trs
secretrios, do Interior e Fazenda, da Guerra e da Marinha
(88).
Comeava desde a a revelar-se o esprito
de organizao que tanto distingue So Paulo na atual
federao republicana e que j no regime monrquico o
caracterizara, quando ainda lhe no cabia o primado da valia
econmica. A soluo do problema dos destinos brasileiros
dar-se-ia quando se encontrassem e congregassem a deciso de
Dom Pedro e a reflexo de Jos Bonifcio, a vontade e o
pensamento.
A junta de So Paulo foi a primeira a
reconhecer a autoridade do prncipe regente. "Os habitantes
- escrevia Dom Pedro a Dom Joo VI (89) -
organizaram uma junta provisria que depende de mim, exceto
no que diz respeito a dinheiros pblicos que se negam a
fornecer para as necessidades do Rio de Janeiro (90).
Reclamaram para a junta os mesmos poderes de que se achava
investido o governador a quem coube a presidncia. A
vice-presidncia foi confiada a Jos Bonifcio de Andrada a
quem se deve a tranqilidade atual da provncia de So
Paulo. Enviaram dois deputados para me cumprimentar em nome
da junta e chamar a minha ateno sobre a parcela de
autoridade que lhe foi confiada. Recebi em audincia pblica
os deputados no palcio da cidade para mostrar que eu no
ambiciono nada mais do que o bem geral, e que me uni a eles
de moto prprio com sentimentos puramente constitucionais".
CAPTULO VI
A REPRESENTAO BRASILEIRA
NA ASSEMBLIA DE LISBOA E A TENTATIVA
DE RECOLONIZAO
A qualidade da representao brasileira
nas Cortes de Lisboa prova que o Brasil se achava maduro
para a vida independente, sendo de notar que a procura de
lugares no foi grande, antes eram poucos os que se
prestavam a aspirar a uma honraria que no era um cargo e
que trazia no bojo incmodos certos e glrias problemticas.
Em todo caso completou-se o quadro com brasileiros
residentes em Portugal, como o bispo de Coimbra, D.
Francisco de Lemos, a quem o marqus de Pombal conferira a
reitoria da Universidade quando a reformou e cuja idade
avanada - era quase nonagenrio - o impediu agora de
aceitar o encargo eletivo; o clebre economista Azeredo
Coutinho, bispo de Elvas e inquisidor-mor, que honrara a
mitra de Pernambuco, mas faleceu logo depois de empossado
como deputado fluminense, e seu suplente Vilela Barbosa
(Paranagu), poeta, lente de matemticas na Academia de
Marinha, esprito culto e colega de Jos Bonifcio na
Academia Real das Cincias.
tambm verdade que essa representao
no se comps exclusivamente de gente educada na antiga
colnia. Os estudos superiores faziam-se em Coimbra e
universitrios eram vrios dos deputados, como Arajo Lima
(futuro marqus de Olinda), que, depois de formados, tinham
regressado para o pas natal a exercerem sua atividade.
A base para representao fora fixada em
30.000 cidados, dando o excedente de 1S.000 direito a um
deputado mais. O clculo pelo qual se orou a populao
brasileira foi o do ano da chegada da corte ao Rio de
Janeiro, computando a populao livre em 2.323.386
habitantes, o que dava ao Brasil uns 70 deputados (uns 50
chegaram a exercer o mandato) para uns 130 de Portugal. O
sistema eleitoral era complicado, abrangendo quatro graus.
Os moradores de cada freguesia elegiam compromissrios que
por sua vez designavam um eleitor paroquial, na razo de 11
votantes e 200 fogos. Os eleitores paroquiais reunidos na
cabea da comarca escolhiam em escrutnio secreto os ltimos
eleitores, que na proporo de 3 para 1 (15 eleitores
elegiam 5 representantes) e igualmente por sufrgio secreto
procediam na capital da provncia seleo final dos
deputados.
Os deputados por Pernambuco - os da
cidade e da mata, faltando os do serto - foram os primeiros
a chegar, no s pela maior proximidade geogrfica como pelo
empenho de Lus do Rego em dar arras do seu
constitucionalismo, prevendo os ataques que ele sabia
seguramente lhe seriam feitos em Cortes por esses homens que
a provncia escolhera, eivados do morbo revolucionrio.
Faziam parte da deputao figuras de 1817 como o padre Muniz
Tavares e Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira,
secretrio do Cabug na sua infeliz misso aos Estados
Unidos.
Mostrando-se pressuroso em obedecer s
Cortes, Lus do Rego tratava de conservar nas mos a alta
direo efetiva do governo local, de acordo alis com parte
da opinio, mesmo da terra, que nele no via propriamente um
tirano, mas um delegado da autoridade real. De fato, uma vez
abafada a revoluo e justiados os cabeas, Lus do Rego
manifestara-se abertamente em favor de medidas de demncia,
de fomento econmico e de proteo social (91).
Os deputados pernambucanos tomaram
assento a 29 de agosto de 1821. A figura proeminente entre
eles veio a ser Muniz Tavares, cuja participao nos debates
foi contnua e vibrante. Arajo Lima, j nomeado ouvidor em
Minas, mostrar-se-ia o que sempre havia de ser: um cultor da
legalidade, preso pelos melindres jurdicos, respeitador por
excelncia da vontade popular, manifestada ou manipulada
pelo voto eleitoral, mas sabendo combinar tal respeito com a
diferena devida coroa e ao papel constitucional que a
esta competia. Assim foi sempre o marqus de Olinda nas
Cortes de Lisboa, na constituinte do Rio de Janeiro, nos
conselhos do primeiro imperador, nas lutas da regncia,
regente ele prprio, vrias vezes presidente do conselho do
segundo imperador.
Muniz Tavares, pelo contrrio, era da
famlia dos tribunos, estalando de paixo e sequioso de
vingana debaixo da sua compostura eclesistica, da qual se
no despojara, apenas da uno generosa dos sacerdotes como
Joo Ribeiro, Miguelinho e Tenrio, corifeus da revoluo
to cruelmente esmagada. Subsistia contudo nele o zelo pela
instruo pblica, revelado na proposta para fundao de uma
universidade, a qual desdenhosamente comentou um deputado
portugus, dizendo que para o Brasil bastavam algumas
escolas de primeiras letras, e para a criao de tais
escolas, na razo de uma por parquia, nas quais fossem
ministradas noes de direito constitucional, competindo ao
clero no s o ensino do catecismo religioso, como o do
catecismo cvico.
Entre os deputados fluminenses
avantajou-se sem favor o futuro marqus de Paranagu, o qual
ainda hoje um enigma, no pelo que diz respeito ao
talento, mas pelo que diz respeito ao carter, tanto o
exaltando uns quanto outros o denigrem. Admiradores dos
Andradas consideram-no um hipcrita refalsado e um
intrigante desonesto, que se aproveitou do patriotismo
brasileiro sem possuir o sentimento da nacionalidade.
Antnio de Meneses Vasconcelos de Drummond acusa-o mesmo de
haver-se oposto em Cortes independncia do Brasil e
tratado os partidrios da separao de "degenerados"; mas
seus discursos no autorizam tal exprobrao. Muito pelo
contrrio, so dos mais inteligentes e dos mais persuasivos
em favor do reino americano (92).
Uma deputao que muito se recomendava
era a da Bahia, incluindo Domingos Borges de Barros (futuro
visconde da Pedra Branca), esprito delicado a quem j
preocupavam a sorte dos negros e a incapacidade poltica das
mulheres e que, lrico mavioso, foi tambm diplomata suave;
Cipriano Barata, mdico e, apesar de sexagenrio, publicista
inflamado, que Cairu apelida de "faanhoso perturbador
pblico", descrevendo-o por ocasio do pronunciamento baiano
de 10 de fevereiro "burlescamente armado sertaneja com
espado de tiracolo, e cinto de pistolas" e de quem diz, no
se podendo conformar com sua intransigncia republicana, que
"deixando o escalpelo da cirurgia pelo cutelo da democracia,
j no fim do sculo passado tinha sido implicado na obscura
faco de alguns idiotas que tentaro estabelecer
Repblica na Bahia (93); Lino Coutinho,
insinuante, culto, eloqente, espirituoso, magntico,
tratando de todos os assuntos com proficincia, e o dicono
Francisco Agostinho Gomes; de quem Gomes de Carvalho escreve
que era "um santo e um sbio", rgido consigo mesmo,
tolerante para com os outros, escrupuloso na moral,
incansvel no estudo, ardente na caridade.
A deputao de So Paulo era porm a que
se compunha de individualidades mais conspcuas, algumas
delas tendo depois desempenhado no imprio um papel
saliente, como Antnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva, Diogo A. Feij, Fernandes Pinheiro (visconde de So
Leopoldo) e Nicolau de Campos Vergueiro. Paula Sousa e seu
substituto Silva Bueno e Costa Aguiar de Andrada completavam
uma representao que no era certamente banal nem medocre.
Antnio Carlos era dos trs irmos o que
tinha o talento mais brilhante, porque tinha a palavra
fcil, imaginosa e arrebatada. Sendo por natureza enrgico
como Jos Bonifcio ou Martim Francisco, derivava o seu
vigor moral um acrscimo de reputao da parte tomada pelo
antigo ouvidor de Olinda na revoluo pernambucana de 1817 e
conseqentes padecimentos nos crceres imundos da Bahia. J
quase que qinquagenrio, o esprito bem sazonado, formado
em Coimbra por duas faculdades - leis e filosofia -, tinha
sofrido na vida bastantes vicissitudes e aprimorado sua
educao intelectual na "universidade" da priso por meio de
leituras e da convivncia com muitos engenhos slidos, ao
mesmo tempo que apurara a feio naturalmente combativa do
seu temperamento.
Merc de tudo isso, sentiu-se Antnio
Carlos logo vontade no meio parlamentar e chamou a si a
direo dos "brasileiros". Foi o seu lder natural, lder em
todo caso mais para assalto, para derribar, do que para
reconstruir porque, apesar da facilidade da sua argumentao
e da fecundidade dos seus alvitres, o dom da convico era
nele menor do que o dom da intimidao.
O padre Feij j ento era o nimo firme
e resoluto que mais tarde, como ministro da Justia e
regente do imprio, salvou a ordem pblica ameaada como
nunca de subverso no Brasil. Fernandes Pinheiro, o autor
dos Anais da provncia de So Pedro do Sul, no
primava talvez nas lutas polticas pela deciso e fora de
vontade, mas possua farta ilustrao e amenidade (94).
Campos Vergueiro, portugus que fora para So Paulo advogar
e se tornara agricultor pelo casamento que o fez
proprietrio rural, aparece depois como um precursor dos
poderosos interesses agrcolas e industriais da sua ptria
adotiva, dedicando parte da sua atividade aos depsitos de
ferro e fbrica de Ipanema e a colonizao europia.
A deputao de So Paulo foi a nica a
levar instrues e instrues eram elas compreensivas e
notveis, cuja autoria cabe sem dvida a Jos Bonifcio,
porque nas mesmas, se encontram estampadas idias que a
muito poucos ento preocupavam, como as da abolio da
instituio servil e catequese dos indgenas (96).
Dividiam-se essas instrues, que trazem
a data de 9 de outubro de 1821, em trs captulos, relativos
aos negcios da Unio, a que o documento chama o Imprio
lusitano, do reino do Brasil e da provncia de So Paulo. No
primeiro captulo recomendavam-se a integridade e
indivisibilidade do Reino Unido e a igualdade dos direitos
polticos e civis dos seus respectivos cidados. Deixava-se
em aberto a designao do lugar que serviria de sede
Monarquia, se o Brasil, se alternativamente um e outro
continente, regulando-se pelos reinados ou por perodos
dentro do mesmo reinado. Haveria igualmente que fixar as
leis orgnicas e determinar a distribuio proporcional das
despesas da Unio pelos dois Estados associados, cujas
obrigaes seriam estipuladas com relao ao Imprio
Luso-Brasileiro, fundando-se um tesouro comum, parte dos
tesouros dos dois reinos, para gastos de guerra, lista civil
da famlia real e representao exterior. O nmero dos
deputados dos dois reinos deveria ser sempre igual,
independente da populao, renovando-se a cmara sorte
pela metade cada dois anos. Alm dos trs poderes -
legislativo, executivo e judicirio - haveria um quarto, que
no era o moderador, e sim constitudo por um corpo de
censores que, eleitos do mesmo modo que os deputados e
fazendo vezes de poder verificador destes representantes,
agiriam como fiscais com relao invaso de um dos poderes
nas atribuies de outro, levando qualquer ato
inconstitucional perante um "gro-jurado nacional", por eles
prprios nomeado e formado em partes iguais de deputados,
membros do tribunal supremo de justia e conselheiros de
Estado, estes escolhidos pelas juntas eleitorais das
provncias, razo de um pelo menos por provncia, para
certo tempo. A esses censores pertenceria igualmente
pronunciarem a suspenso dos ministros do executivo e dos
magistrados, obrando a requerimento das Cortes.
Para o reino do Brasil deveria
organizar-se um governo geral executivo, ao qual ficariam
sujeitos os governos provinciais, determinando-se as
respectivas esferas de ao, e ficaria assente que, nos
tempos em que o Brasil no fosse sede da Monarquia e das
Cortes, seria aquele governo presidido pelo herdeiro da
coroa, entrando nas suas atribuies fixar os limites com a
Amrica Espanhola e colnia de Caiena, e demarcar as
provncias entre si. Os cdigos civil e criminal que viessem
a ser redigidos pelas Cortes da nao deveriam ter em
considerao as circunstncias especiais brasileiras "de
clima e de povoao, havendo classes de cores diversas e
pessoas, umas livres e outras escravas" (96).
A questo do ensino no podia deixar de
chamar a ateno do sbio redator das instrues.
Considerava ele de absoluta necessidade uma universidade
pelo menos, a ser criada desde logo em So Paulo pelas
condies topogrficas e climatricas e barateza da vida,
com quatro faculdades: a de filosofia, abrangendo as
cincias naturais, as matemticas, a filosofia especulativa
e as boas artes; a de medicina; a de jurisprudncia e a de
economia, fazenda e governo. No esquecia ele contudo as
bases desse ensino universitrio, a saber, o ensino primrio
e secundrio, o primeiro ministrado em escolas de primeiras
letras, no havendo freguesia que a no tivesse conforme os
modelos alemo e ingls, e o segundo dispensado em ginsios,
dos quais haveria um em cada provncia, "em que se ensinem
as cincias teis para que nunca faltem entre as classes
mais abastadas homens, que no s sirvam os empregos, mas
igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os
conhecimentos que so indispensveis para o aumento, riqueza
e prosperidade da nao" (97). Convinha que a
capital de cada provncia tivesse as cadeiras de medicina
terica e prtica, cirurgia e arte obstetrcia, arte
veterinria, matemtica, fsica e qumica, botnica e
horticultura experimental, zoologia e mineralogia.
As instrues referiam-se ainda ereo
de uma cidade central para capital, na latitude mais ou
menos de 15, como o melhor meio de povoamento do interior e
de circulao do comrcio interno do "vasto Imprio do
Brasil"; ao estabelecimento de uma direo geral de economia
pblica, uma vez ligado o novo centro por meio de estradas
s vrias provncias e seus portos de mar; a um cdigo de
minas; a uma nova legislao sobre sesmarias, acabando-se em
proveito da agricultura com os latifndios baldios e
dividindo-se estas terras devolutas para serem vendidas aos
que pudessem comprar os lotes, com o produto de tais vendas
favorecendo-se a colonizao de europeus pobres e nacionais
forros, sob a condio geral aos novos donos e sesmeiros de
reservarem a sexta parte do terreno para matas e arvoredos e
de no derrubarem e queimarem as florestas sem fazerem novas
plantaes.
As necessidades privativas de So Paulo
seriam reguladas de acordo com as informaes e peties das
cmaras municipais.
* * *
Uma das primeiras providncias de Dom
Joo VI, ao ter notcia da revoluo ocorrida no Porto e em
Lisboa, fora desligar do exrcito de Portugal, de certo para
evitar o contgio distncia, a chamada diviso dos
voluntrios reais ou corpo de tropas portuguesas da corte,
enquanto durasse seu servio no ultra-mar (98). O
orgulho lusitano agastou-se porm com essa medida, que o
governo do Rio de Janeiro foi prontamente obrigado a revogar99.
Restabelecida a continuidade militar e
ganho em Cortes (a constituio dos governos provinciais foi
promulgada a 1. de outubro de 1821) o ponto importante do
comando portugus- portugus pelo esprito quando o no
fosse pelo nascimento - isto , "despojadas as juntas da
fora militar" e conseguintemente da possibilidade de
resistncia sobretudo conjunta, passou a assemblia
constituinte ao terreno judicirio, afim de privar o reino
do Brasil dos tribunais superiores com que o dotara o
governo de Dom Joo VI e que lhe davam todos os meios legais
de prover sua prpria justia. Esquecia Portugal -
conforme relembra Armitage - que no manifesto dirigido s
naes da Europa para justificar a revoluo que reclamava o
regresso de el-rei, uma das queixas formuladas era que "a
justia estava sendo administrada com muita lentido e
despesa, na distncia de 6.000 milhas". Agora se pretendia,
com sutil ironia por certo, que a remoo dos tribunais
superiores para Lisboa multiplicaria as relaes e
estreitaria os vnculos da unio entre os dois pases.
Gomes de Carvalho nota que foi a prpria
comisso de constituio composta dos regeneradores de
primeira grandeza - Fernandes Toms, Borges Carneiro e
Moura, o maior orador da constituinte - a que props o
fechamento dessas cortes de justia e das juntas superiores
de administrao s quais fizera jus a elevao da colnia a
reino. O argumento velhaco de Fernandes Toms para abolir
esses ttulos e recursos brasileiros era que Lisboa no
ficava afinal de contas mais distante de muitas provncias
do Brasil do que o Rio de Janeiro, sendo talvez mais fceis
as comunicaes transatlnticas do que as que tinham lugar
ao longo da costa. A oposio do deputado fluminense Martins
Basto fez porm adiar o debate para quando estivesse
presente toda a representao brasileira (19 de setembro de
1821)
Imediatamente se tratou do complemento
necessrio da lei de constituio provincial, que era a
supresso da regncia do prncipe real. Novamente e mais do
que nunca dependentes as provncias brasileiras da sua
antiga metrpole, para que um representante da autoridade
real, ele prprio pessoa real, o sucessor mesmo da Coroa?
Era demasiada honra para uma colnia que tinha tido seus
vice-reis, mas nunca um herdeiro de rei... a no ser quando
tinha tido o rei, forado porm a voltar.
Os deputados brasileiros presentes, que
tinham aceitado a reorganizao administrativa do Brasil por
meio das juntas governativas eleitas, no ousaram protestar.
A proposta foi unanimemente aprovada e a verdade que, como
pondera Gomes de Carvalho, de harmonia com o esprito
dominante no Brasil, onde as juntas revolucionrias tinham
tido o maior cuidado, exceo feita de uma, de afirmarem sua
independncia com relao ao centro, pondo tanto af em se
proclamarem constitucionais como em desdenharem da
autoridade da regncia. A autonomia de que chegara a gozar o
Brasil sob um soberano absoluto, sumia-se nessa
efervescncia de cimes que umas provncias nutriam de
outras, receando que qualquer delas pudesse vir a ser
superior s demais, sobretudo a que fora e continuava a
servir de corte.
O Brasil, nem politicamente, nem
socialmente era ainda homogneo, como o tornou o imprio,
fazendo valer a uniformidade da colonizao que lhe
emprestava uma semelhana de aspectos. Circunstncias
variadas de clima, de histria e outras tinham distingido
sobre o carter local. Os prprios viajantes estrangeiros
disto se apercebiam. Auguste de Saint-Hilaire menciona que
os baianos eram geralmente reputados os mais inteligentes
habitantes do Brasil, os pernambucanos os mais ardentes e
independentes de carter, os mineiros os mais pacficos e
industriosos, os paulistas os mais inflexveis e
perseverantes.
No podia por um lado, para o ponto de
vista portugus, dar-se melhor delegado do executivo
nacional portugus do que o prncipe herdeiro, porque
ningum como ele podia tomar interesse pela integridade dos
estados da monarquia sobre que deveria um dia estender-se o
seu cetro: mas por outro lado, prend-lo demasiado ao Brasil
envolvia o risco de ver renovar-se no futuro o caso de Dom
Joo VI, a saber, pelo desaparecimento deste, a escolha do
Rio de Janeiro como sede permanente da realeza. E o que o
Portugal constitucional mais que tudo temia e abominava era
a idia dessa subordinao. Convm no esquecer que a
revoluo de 1820 foi essencialmente a exploso do orgulho
machucado. Os regeneradores vingavam agora o seu despeito
impondo sorrateiramente ao Brasil a prvia disciplina e
ofendendo na sua vaidade o prncipe Dom Pedro, notando-lhe
publicamente a falta, alis exata, de educao e ditando-lhe
como a um pupilo a maneira por que devia complet-la,
visitando e estudando os pases do ocidente europeu, escolas
de constitucionalismo embora limitado.
O sestro das juntas propagara-se at as
frias parlamentares, e as Cortes pensaram em derivar da
constituio espanhola mais uma sugesto, em ltima anlise
proveniente da conveno francesa: apenas o comit de
que se tratou em novembro de 1821 no era de salvao
pblica, nem mais poderoso do que a assemblia. Era uma
junta por assim dizer fiscal no regime constitucional e
sada do seio da representao nacional, a qual lhe cabia
convocar em casos de necessidade. Consoante o projeto e como
era de justia, seria ela composta de trs representantes do
reino europeu, trs do ultramar e um presidente tirado
sorte entre dois membros das duas representaes.
To perfeita igualdade, se era excelente
em teoria e todos a aplaudiam como tal, na prtica levantava
zelos e antagonismos, mascarando-se com princpios e
frmulas. Puro federalismo essa repartio - exclamavam
alguns; nas naes homogneas e coesas, no h dessas
distines. Ora o federalismo ou deve de ser um sistema de
equilbrio, no de sobreposio. A diviso eqitativa estava
mesmo em flagrante desacordo com o sentimento dos
constitucionais portugueses que, para os comandos de armas,
no se lembraram de um s brasileiro, o que ainda se
compreende e se pode justificar; mas nem sequer deles se
lembraram para os cargos de conselheiros de Estado
interinos, na lista de 24 apresentada a el-rei para sua
seleo.
A proposta da junta permanente passou por
69 votos contra 26, com a diviso: sua rejeio tornaria
franca a poltica de predomnio e no chegara ainda o
momento das afrontas irremediveis. Note-se que a expresso
ultramarinos era capciosa, porque abrangia tanto os
asiticos e africanos quanto os americanos, que se queria de
resto nivelar com aqueles outros. Por isso era possvel, em
face do texto seno do esprito da constituio, preencher
todos os lugares do conselho de Estado e da deputao
permanente com excluso propriamente dos brasileiros.
Se o lema geral era ainda a concrdia,
alguns todavia j afiavam o gume s espadas e escorvavam os
mosquetes. Cipriano Barata, por exemplo, viera da Bahia com
o propsito feito de se no deixar embair pelos portugueses.
No dia mesmo em que tomou assento (17 de dezembro de 1821),
props que, de acordo com o artigo 21. das bases
constitucionais, se suspendesse a discusso do projeto de
constituio at chegada de toda a deputao brasileira,
sendo at submetidos apreciao e sufrgio desta, quando
completa, os artigos da lei orgnica anteriormente
aprovados.
O alvitre era at certo ponto lgico
porque no valeria a pena eleger representantes se a estes
no fosse dado emitir seus juzos e votos sobre assunto de
tamanha transcendncia Por outro lado no parecia razovel
que a nao esperasse indefinidamente a chegada de parte do
pessoal da sua assemblia representativa para iniciar a
discusso do instrumento constitucional, para formular e
obter o qual se fizera uma revoluo. mesmo corrente em
casos tais deliberarem as assemblias com o quorum de
ocasio, sobretudo quando corresponde maioria cuja vontade
tem de prevalecer, no havendo distino entre os membros da
casa, que encarnam os interesses coletivos.
Fosse qual fosse a razo que predominou
no nimo dos deputados brasileiros, o preopinante viu-se s
ou quase e, perante a promessa de Fernandes Toms, de serem
reconsiderados os artigos constitucionais que sofressem
impugnao, acedeu em retirar o seu requerimento, contra o
qual a manifestao fora praticamente unnime. No soara de
fato a hora do rompimento e, num lado como noutro, reinavam
esperanas de harmonia, alimentadas seno pela afeio, pelo
menos pela convenincia. Nem convinha maioria portuguesa
reabrir o debate irritante sobre a remessa de tropas para o
Brasil: melhor era reabordar o assunto com maior calma.
O projeto relativo extino dos
tribunais superiores voltou porm discusso nesse mesmo
ms de dezembro porque assim se conviera, dando-se-lhe outra
redao e maior amplitude ao debate. Este no ofereceu
contudo nem a animao nem a vibrao que deveria ter,
porque o sentimento nacional ainda se no condensara no
reino ultramarino, o qual na realidade se compunha de
provncias sem tradies comuns, embora com aspiraes que
se encaminhavam para ser comuns.
Acresce que os tribunais superiores
tinham sido apangio da corte que voltara aos seus lares e
marcara portanto uma superioridade que desaparecera, a bem
da igualdade democrtica dessas comunidades transatlnticas.
Lino Coutinho achava mais que justo esse nivelamento e
exultava com ele. Subsistiam as relaes provinciais, para o
julgamento de toda matria contenciosa, e os recursos
supremos, que cabiam Casa da Suplicao do Rio de Janeiro,
passaram para a de Lisboa, por no acederem os
representantes brasileiros ao alvitre proposto por Borges
Carneiro, para funcionar a relao fluminense como tribunal
para revistas finais, aproveitando-se a circunstncia de ser
essa corte constituda por desembargadores do Pao.
Fagundes Varela, representante da
provncia do Rio, teve uma compreenso to peca do assunto
que se mostrou jubiloso com a extino dos tribunais
superiores, nela no enxergando uma diminuio do prestgio
da sua terra, antes a vantagem de se libertarem os
litigantes de um bando de sanguessugas (sic) que eram
a gente do foro. Na verdade eram os magistrados um dos
terrores e das pragas da sociedade brasileira, mas o pobre
deputado, que viera precedido de grande reputao, pagou com
a maior impopularidade alm-mar sua curteza de esprito e
perdeu para o resto das sesses qualquer veleidade oratria.
Borges Carneiro que, apesar de ser de
aqum-mar, percebia mais claramente o esprito ultramarino,
quis de novo atenuar o golpe, que se traduzia materialmente
por graves incmodos s partes no acompanharem seus
processos de ltima instncia em Lisboa. Apresentou uma
emenda ao artigo constitucional n. 158, o qual mandava
executar a revista final das causas do Brasil pelas relaes
com maior nmero de ministros, dizendo que se tratava
expressamente das relaes brasileiras. Assim ficou,
mas os baianos, no seu particularismo ainda no desbastado,
queriam que a cada tribunal de relao coubessem essas
funes (janeiro de 1822), o que nem numa federao se
concebe e pratica.
Fernandes Toms argumentava em favor do
monoplio judicirio do reino europeu invocando a
indispensvel unidade da magistratura. Os brasileiros eram
entretanto mais radicais no seu liberalismo do que os
portugueses, mesmo democratas. A deputao americana, com
exceo de Arajo Lima, que foi sempre um esprito
conservador, votou no decorrer da discusso da lei orgnica
pela eleio dos juizes, temporrios e no vitalcios, no
intuito de subtrai-los ao influxo do executivo, e entendia
que o estado de stio, isto , a suspenso das garantias
constitucionais no deveria ser aprovado seno por dois
teros de maioria e de acordo com uma interpretao rigorosa
da causa que o provocava.
Ao reformarem profundamente a organizao
judiciria nacional pela introduo do jri, mesmo no cvel,
as Cortes estabeleceram a responsabilidade dos juizes "por
erros de direito e especialmente por infraes das regras
processuais", competindo s relaes o respectivo processo e
sendo lcito a qualquer cidado iniciar contra um magistrado
uma ao "por suborno, conluio e prevaricao". Para
remediar os inconvenientes bvios de permanecer o querelado
no desempenho das suas funes at a pronncia, podendo
praticar outros atos at piores, o projeto de constituio
dava ao soberano a quem subisse a queixa a faculdade de
suspender o juiz, aps informaes tiradas in loco e
mediante parecer do conselho de Estado. O alvitre podia
satisfazer Portugal mas no o Brasil, pela distncia e
delonga, incmodos e despesas que essa circunstncia trazia
parte interessada, concedendo entretanto ao acusado amplo
tempo para eventuais tropelias.
Cipriano Barata foi quem levantou a
impugnao e o debate sobre ela foi instrutivo e acalorado.
Borges Carneiro props que as prprias relaes brasileiras
decidissem sobre a queixa e a suspenso. Outros, dos
maiores, insurgiram-se contra a pretenso determinada por
uma insanvel questo de geografia e acharam que esses
tribunais ultramarinos ficariam demasiado sobrecarregados,
com todas as atribuies que j tinham e as que lhes queriam
emprestar, ao passo que ao magistrado ficava o recurso de um
s juzo, o que alis no era para temer porquanto o
julgador no resultava nico, antes diversos dentro da mesma
corporao, cabendo a cada qual funo diferente. Vilela
Barbosa lembrou as juntas governativas que eram o superior
poder executivo local, mas argumentou-se com a necessidade
de garantir a independncia do poder judicirio, no intuito
de contrastar qualquer excesso de autoridade daquelas
juntas.
Surgiu nesta altura do debate a questo
das prerrogativas da Coroa, as quais deviam ser intangveis.
Estava-se em janeiro de 1822. Oradores negaram ao rei a
prerrogativa da suspenso dos juizes por no figurar a mesma
entre as enumeradas na constituio, sim entre as que no
pertenciam ao monarca, salvo casos especiais, pertencendo
portanto soberania nacional em vez de caber nas funes
prprias do trono que lhe no fosse lcito delegar, sendo o
rei impecvel. Arajo Lima distinguiu muito lucidamente
entre impecabilidade e irresponsabilidade, predicado este
ltimo proveniente da natureza do pacto constitucional. "Os
poderes do Estado, criados no interesse dos povos, tm a
jurisdio que lhes quer dar a sociedade. Assim numa nao o
rei delegar certos privilgios e no o far em outra,
porque o no exige a utilidade social".
Se a prerrogativa do indulto compete ao
monarca e a distncia priva os brasileiros do melhor da sua
eficcia e benefcio, quando mesmo transfervel seu
exerccio, ficava com isto registrada, no dizer de Vilela
Barbosa, mais uma desigualdade entre os povos das duas
sees da Monarquia. E tais desigualdades eram as que
fomentavam a desunio - fez ver Antnio Carlos,
recm-empossado, no seu maiden-speech ( (100).
A desunio entre Portugal e Brasil
entrara a tornar-se evidente ao tocar-se qualquer assunto.
Lino Coutinho comparou as concesses feitas ao reino
americano com a comida em frascos que na fbula a cegonha
oferece raposa. Vilela Barbosa fez sentir quo
estreitamente se procurava fazer toda a administrao
brasileira sujeita portuguesa, no esprito da mxima de
Maquiavel - dividir para governar. Entretanto na poca
colonial aos delegados supremos da autoridade real era
dispensada a atribuio de suspender no interesse pblico os
juizes, a qual agora se abolia - ponderou o padre Marcos
Antnio de Sousa, erudito deputado baiano (101).
Passava-se isto na sesso de 13 de
fevereiro de 1822 e j ento os dois reinos se tinham to
visivelmente apartado um do outro, que Vergueiro podia com
desassombro dizer que se devia cuidar das condies da unio
porque, nas suas palavras, "o Brasil est pronto a ligar-se
a Portugal, mas no segundo a marcha que leva o Congresso".
A oposio dos interesses respectivos ainda se manifestaria
porm ao tratar-se da organizao do tribunal supremo de
Portugal, quando voltou tona a questo da sua composio
por membros do reino e do ultramar. A proposta de Borges de
Barros (4 de maro de 1822), que foi prontamente repelida,
no pecava por falta de clareza: estipulava que o nmero dos
juizes do supremo tribunal, do qual dependia o conhecimento
das infraes do direito cometidas pelos desembargadores e
ministros executivos, fosse metade de portugueses e metade
de brasileiros.
A intransigncia das Cortes acabaria
fatalmente por estimular a resistncia brasileira e ia
entretanto emprestando aos poucos ao prncipe
constitucional, a quem na sesso de 9 de maio de 1821
propusera o deputado portugus Alves do Rio fosse dirigida
uma carta de congratulao pela parte que ele tomara na
direo dos acontecimentos do Rio de Janeiro - "estou
informado por cartas particulares do muito que este Senhor
tem contribudo" - ares de vtima patritica, enquanto lhe
no inspirava mpetos de arcanjo vingador.
O processo a seguir pelas Cortes
traava-o Mareschal com diplomacia (102): era
capt-lo com lisonjas para que se fosse sem barulho.
Fazia-se da mesma forma a independncia, escrevia ele; mas
fazia-se com anarquia, que era o que lhes podia ser de
vantagem. Com um centro de convergncia que era ao mesmo
tempo uma fonte de autoridade, em vez de anarquia reinaria
ordem no processo de separao.
CAPTULO VII
A EVOLUO NACIONALISTA DA REGNCIA
Aps o 5 de junho o governo da regncia
ficou numa situao pior do que a anterior: arranhada, seno
desprestigiada como escreve Porto Seguro, a dignidade do
prncipe real; vaga, seno nula a autoridade da junta criada
para coloc-lo na penumbra; entorpecida a ao dos ministros
a quem a fora militar, agora unificada no papel debaixo do
ttulo de exrcito constitucional, tinha concedido novo
prazo de poder.
De fato a tropa portuguesa, "que no
relevava ao regente o ter mandado deslocar do seminrio de
So Joaquim o intruso aquartelamento dos batalhes de
Portugal" (103), mandando restitui-lo ao fim de
beneficncia para que fora destinado, que era a educao de
rfos pobres, continuava a ser o fator capital da ordem da
capital fluminense. A unificao votada em Lisboa a 28 de
julho de 1821, tinha por fim oculto, na opinio de Cairu,
permitir destacar os contingentes militares brasileiros para
outras terras em outros continentes e substitui-los por
batalhes lusitanos.
Opor tropa portuguesa a brasileira
seria abrir a guerra civil. O desembargador lvares Diniz, o
novo ministro de Estado, confessava que esse seria o nico
corretivo possvel do desequilbrio poltico e social em que
mergulhara o Rio de Janeiro, no lhe cabendo, no entanto, na
sua qualidade de portugus, sugerir tal alvitre (104).
A 16 de junho correu o boato de que as foras dos dois
estados, que seriam no dia imediato duas nacionalidades,
estavam prestes a medir-se. Verificou-se porm no ter
fundamento o rumor: Dom Pedro chamou contudo os oficiais
fala e recomendou-lhes concrdia, que um conselho que
geralmente se d em circunstncias semelhantes e geralmente
tambm de nada serve.
Desse apelo resultou ficar o prncipe
moralmente manietado pela oficialidade portuguesa, empenhada
em agrad-lo. J Dom Pedro pusera de lado seus primeiros
arroubos de governante: almejara administrar com acerto e
tinham-no acusado de querer legislar, quando a funo
legislativa pertencia s Cortes. Ele apenas pretendera, como
escrevia ao pai, antecipar os benefcios da Constituio em
proveito do povo e com efeito opinio de Cairu que aqueles
supostos atos legislativos no passavam de "meros
regulamentos administrativos e provisrios".
Com suas crises de tenacidade, era Dom
Pedro uma natureza volvel. No era difcil seduzi-lo,
sobretudo em plena mocidade, aos 23 anos, quando a doena
ainda no turvara o seu temperamento folgazo com acessos de
hipocondria e uma precoce decomposio fsica, que o
derrubou antes de atingir a maturidade. Datam daquela poca
as denominadas orgias em companhia de oficiais portugueses,
muitos deles de casas nobres, e que no seriam mais do que
patuscadas com muitos brindes e alguns excessos
gastronmicos.
Data tambm dessa lua de mel poltica e
em ordem mais elevada o suntuoso baile oferecido pela
guarnio ao regente e princesa Leopoldina no primeiro
aniversrio da revoluo constitucional (24 de agosto de
1821). Pelas descries que ficaram nunca houve no Rio de
Janeiro funo social mais pomposa do que essa, em que se
despenderam 53 contos fortes. O local escolhido foi o teatro
de So Joo e faziam as honras o general Jorge de Avilez e a
condessa de Belmonte, servindo-se a ceia no palco em mesas
de 100 talheres, sucessivamente postas com o maior gosto e
esplendor no dizer das relaes dos tempos.
O orgulho portugus pairava alto com as
fceis vitrias conquistadas em demonstraes polticas que
se cifravam praticamente em passeatas militares. Dessa v
glria se alimentava a tropa desde 26 de fevereiro. Havia
ainda em muitos nacionais o receio de falarem em
independncia, ou mais provavelmente no se chegara na
totalidade do Brasil e na totalidade dos espritos cultos
realidade iminente desse desfecho sumrio, que nas
repblicas espanholas estava contudo custando havia anos
atroz sangueira e no recebera at ento a consagrao de
Ayacucho em 1825.
Entretanto tal soluo ganhava alento e
rompia caminho. No Norte, onde existiam tradies gloriosas
de luta pelo solo ptrio contra invasores estrangeiros e at
tradies republicanas de governo autnomo, no admira que
Lus do Rego informasse as Cortes desde o comeo que os que
queriam uma junta provisria, eram os partidrios da
separao: mas no Sul mesmo falava-se tanto, desde outubro
pelo menos, em conluios para extermnio da tropa portuguesa,
revelados em brados de emancipao, que Dom Pedro,
pretendendo tomar ao trgico um grito soltado num teatro,
que fora afinal um viva sua pessoa, e uma conspirao
mal-alinhavada em cujos fios ele no quisera realmente
tocar, julgava, aps repetidas notcias para o pai em
Lisboa, escrever muito romanticamente com seu sangue um
juramento de fidelidade ao rei.
Sua carta de 4 de outubro reza num
pargrafo clebre e que repetidamente serviu de tpico de
acusao contra a sua lealdade: "A independncia tem-se
querido cobrir comigo e com a tropa, com nenhum conseguiu,
nem conseguir; porque a minha honra e a dela maior que
todo o Brasil; queriam-me, e dizem que me querem aclamar
Imperador; protesto a V. M. que nunca serei perjuro, e que
nunca lhe serei falso; e que eles faro essa loucura, mas
ser depois de eu e de todos os portugueses estarmos feitos
em postas, o que juro a V. M., escrevendo nesta com o meu
sangue estas seguintes palavras: - Juro ser sempre fiel a V.
M., nao e a constituio portuguesa".
E como se isto no bastasse, lanava no
mesmo dia aos fluminenses, em linguagem to enftica que
chega a parecer postia tamanha indignao, uma proclamao
em que dizia: "Que delrio o vosso?...; estais iludidos,
estais enganados, e em uma palavra, estais perdidos se
intentardes uma outra ordem de coisas, se no seguirdes o
caminho da honra e da glria em que j tendes parte, e do
qual vos querem desviar cabeas esquentadas, que no tem um
verdadeiro amor de El-Rei meu Pai...; que no tm religio e
que se cobrem com peles de cordeiros, sendo entre a
sociedade lobos devoradores e esfaimados...". Rematava
declarando-se uma vez mais pronto a morrer por essas "trs
divinas coisas - a religio, o rei e a constituio".
Em Portugal no soariam suas palavras
como absoluta novidade. Desde que as Cortes entraram a
funcionar que se levantaram vozes, ou timoratas, ou
prudentes, ou profticas, premunindo a assemblia contra os
perigos de disposies para com o Brasil que no fossem
sinceras e conciliatrias, tendo tais vozes tanto mais
merecimento em se fazerem ouvir quanto as discusses eram
pblicas, nas galerias se apinhava a ral e a tentao
demaggica sempre forte. "No s a razo e a justia que
nos ditam a respeito do Brasil um procedimento franco e de
verdadeira liberalidade - exclamava o deputado Sarmento -;
tiremos vantagens do que tem sucedido a outras naes. A
Inglaterra ainda hoje formaria uma s nao com as vastas
regies da Amrica Setentrional, se um ministro cego e
pertinaz no se opusesse aos americanos ingleses,
disputando-lhes o direito, que a Constituio Inglesa
estabelece, de nenhum cidado ingls poder ser coletado
seno por seus representantes".
Talvez no se acreditasse geralmente na
gravidade do perigo ou no se quisesse acreditar nela. O
deputado padre Castelo Branco, um dos oradores mais
escutados das Cortes, deu a nota mdia e comum quando,
depois de denegar projetos de conquista sobre o Brasil,
conquista que se deveria realizar, no por fora armada, mas
por interesses recprocos de ambas as partes integrantes da
Monarquia, ajuntou em concluso: "Diz-se, e diz-se muito
vagamente, que h em todas as provncias do Brasil grande
partido pela independncia. No devemos recear que esse
partido seja to grande como se nos inculca, e assim como se
procura aterrar o Congresso com idias fantsticas e
quimricas, talvez que os mesmos autores dessas pretendidas
dissenes nos queiram aterrar tambm com a exagerada
extenso e fora do partido da independncia" (sesso de 23
de agosto de 1821).
* * *
As cartas escritas pelo prncipe real a
Dom Joo VI eram sem demora levadas ao conhecimento das
Cortes (105), o que Dom Pedro alis solicitava,
escrevendo logo na segunda, de 17 de julho de 1821: "Espero
que V. M. me faa a honra de mandar apresentar esta minha
carta em Cortes para que elas, de comum acordo com V. M.,
dem as providncias to necessrias a este reino de que eu
fiquei regente, e hoje sou capito-general, porque governo
s a provncia". Ao l-las, e primeira vista, no parece
no entanto que essas cartas, to familiares na sua
substncia poltica, tivessem sido escritas com semelhante
inteno, seno dando direito a que Dom Pedro, ao expirar em
Queluz 13 anos mais tarde, pudesse exclamar, como Nero, que
com sua morte perdia o mundo um artista consumado.
H nas mesmas mincias que no costumam
ser, mesmo ficticiamente, destinadas a que as divulgue a
publicidade, ao lado de confidncias evidentemente
tendenciosas como essa famosa advertncia paterna e
paternal, bastante para invalidar o juramento byroniano com
sangue, de que, no caso muito provvel do Brasil vir a
separar-se, melhor era cingir o prncipe herdeiro a Coroa
dessa grande nao do que abandon-la s ambies de um
qualquer aventureiro.
O visconde de Cairu diz que el-rei
comunicava assemblia as cartas do filho "por timidez, ou
poltica". Era mais por poltica do que por timidez; e
sobretudo tratando-se dele, poltica significava astcia.
Dom Joo VI, um tanto desnorteado ao desembarcar em Lisboa e
ser saudado pelos delegados das Cortes com efuses
constitucionais ainda desusadas para seus ouvidos e que
disfaravam o rugir do tigre democrtico, cedo recobrara o
exerccio da sua facult matresse que era a
sagacidade, e tomara p nas guas revoltas de Portugal.
Sentia-se amparado pelo estrangeiro e a situao
equilibrada, com a Santa Aliana prestes a acudir ao menor
aceno seu e a Inglaterra em boa inteligncia com as Cortes,
uma vez que estas no quisessem forar a nota e descambar em
repblica.
Um incidente de ordem internacional
provou-lhe saciedade que o governo britnico no
autorizava intervenes reacionrias, mas tampouco
autorizava excessos revolucionrios. O seu temor da Europa
continental congregada num esprito misticamente conservador
corria parelhas com o de uma unio ibrica ultra-liberal. O
incidente fora este. A Santa Aliana, reunida nos congressos
de Laybach e Troppau (o ltimo de novembro de 1820),
manifestara sua inquietao pelas revolues da Espanha, de
Portugal e de Npoles. "Os mesmos princpios - rezava sua
circular, dirigida pelos soberanos s respectivas legaes -
que haviam unido as potncias da primeira ordem do
continente para libertar o mundo do despotismo militar de um
homem abortado dessa revoluo, deviam mostrar-se eficazes
contra a nova potncia da rebelio, que recentemente se
formou. As potncias tm sem dvida o direito de tomar, de
comum acordo, medidas de previdncia contra os estados cujas
mudanas polticas marcham hostilmente, at s pela fora do
exemplo, contra o governo legtimo; sobretudo quando o
esprito de inquietao se comunica aos estados vizinhos por
emissrios encarregados de propag-lo".
A Santa Aliana reafirmava nesse ponto
seu direito de interveno, tanto mais quanto no visava a
conquistas nem pretendia atacar a independncia dos outros
estados ou impedir seus melhoramentos: apenas manter a
tranqilidade europia. O gabinete britnico declarou, (19
de janeiro de 1821) reconhecer tal direito de interveno no
caso de segurana imediata ou interesses essenciais dos
estados, "mas como o governo de S. M. pensa que o uso do
referido direito no pode ser justificado seno pela
necessidade a mais absoluta, em conseqncia da qual deva
ser regulado e limitado, o dito governo no pode admitir que
este direito possa receber uma aplicao geral e sem
distino a todos os movimentos revolucionrios, sem haver
respeito a sua influncia imediata sobre algum estado ou
estados particulares. O governo de S. M. considera este
direito como uma exceo da maior importncia dos princpios
gerais, exceo que s pode resultar das circunstncias do
caso especial; mas considera que excees desta natureza no
podem jamais, sem o maior perigo, ser erigidas em regra, de
maneira que seja incorporada na diplomacia ordinria dos
estados ou nos institutos da lei das naes".
Na sesso das Cortes de 14 de junho foi
apresentado um ofcio de Silvestre Pinheiro Ferreira, de 3
de abril, declarando que el-rei desmentia sua oposio s
reformas constitucionais, sendo as Cortes no seu entender o
legtimo rgo da vontade nacional, e repelia "como um ato
da mais horrenda agresso contra a independncia da Coroa
portuguesa todo e qualquer procedimento, conveno ou ajuste
de interveno". Dom Joo VI estava no seu elemento quando
marombava e Lus Filipe dele podia ter recebido lies para
sua poltica do juste milieu. As cartas porm do
prncipe real denunciam em muitos pontos sua preferncia
pelas atitudes definidas e transudam mesmo uma franqueza que
pode ter sido entremeada de toques de dissimulao, mas que
no geral costumava ser uma das qualidades ou dos defeitos de
Dom Pedro.
A linguagem bem dele, por vezes
incorreta, quase sempre canhestra do ponto de vista
literrio mas viva, pitoresca e sugestiva, tal como no
vulgar ocorrer em papis oficiais, como eram essas cartas
desde que se lhes atribua esse carter. E a verdade,
corroborada pelos fatos, acha-se retratada nas linhas da
referida correspondncia com uma fluncia to despida de
atavios retricos ou artifcios epistolares, que na sua
feitura, posto que poltica, nada choca a expanso natural
entre filho e pai. Submetendo s Cortes soberanas os
repetidos protestos de fidelidade de Dom Pedro, Dom Joo VI,
que neles sabia pr o gro de sal da razo de Estado, ia ao
encontro da calnia, na qual colaboravam os adversrios do
Brasil-reino e os adversrios da regncia brasileira, isto
, os partidrios do sistema europeu e os do sistema
americano, reacionrios e republicanos, de que o filho s
fazia conspirar contra o pai, renovando-se, na frase de
Cairu, o episdio do grande Constantino e de seu primognito
Crispo, inocente da aleivosia propalada.
Dom Joo VI tinha o pudor de ser enganado
pelos filhos: j lhe bastava ser trado pela esposa. Se Dom
Pedro parece ocasionalmente inconseqente, justamente
porque no tinha em mente enganar, no preparava assim uma
defeco, e por isso se no preocupava com uma
invariabilidade de opinies ou de sentimentos de que lhe no
teria sido difcil dissimular a falta, mas que pouco comum
na vida, frtil sempre em vicissitudes. Dom Pedro mais
permitia que os acontecimentos sobre ele exercessem sua ao
do que pretendia orient-los: a. natureza humana nele era
ondoyante, como a definiu Montaigne.
A seu lado possua o prncipe real uma
companheira inteligente e excelente na pessoa da
arquiduquesa Leopoldina, cuja participao nos sucessos da
independncia s no pode ser descrita com absoluta
fidelidade e cpia de pormenores porque foi to pouco
espetaculosa quanto a sua vida, toda discreta. A impresso
que ficou do tempo, ajudada por alguns testemunhos de
confiana, que Dona Leopoldina ajudou de corao a causa
nacional, no pela ambio de ser imperatriz, pois tinha a
certeza de vir a ser rainha de uma dilatada monarquia que
era por si um Imprio, mas por finura e alcance de esprito,
percebendo a marcha inevitvel para o rompimento.
Muito mais instruda do que Dom Pedro,
que apenas cultivara um pouco sua vocao musical, e
tendo-se formado noutro meio, ela dispunha sobre o nimo do
marido de um poder de seduo que lhe no era infelizmente
dado exercer sobre o seu temperamento. Dom Pedro tinha no
entanto razes de sobra para no pecar por falta de
sinceridade quando falava em querer partir para Lisboa,
renunciando empresa que lhe fora confiada. O mais que ele
sentia em redor de si eram desconfianas e hostilidades.
Cairu escreve que o seu lema podia ser o que Catarina da
Rssia adotara ao marchar contra os turcos: estou s.
De fato durante algum tempo Dom Pedro foi
muito mais espectador do que ator. Percebia que por si nada
podia remediar e apenas tratava de apaziguar, sem procurar
mudar.
Na segunda parte do ano de 1821 deixara
ele de ser o dolo dos constitucionais portugueses - se
que algum dia o foi integralmente - e ainda no era bem o
dolo dos constitucionais brasileiros, como por breve tempo
o havia de ser. A obra de recolonizao a que se tinham
aventurado as Cortes no podia ter seu assentimento, nem
espontneo nem refletido, conhecedor como era das condies
e dos sentimentos da terra qual no podiam deixar de
prend-lo laos de afeio, porque para ela viera aos nove
anos, a passara sua adolescncia "malcriada", como ele
prprio a caracterizava, e desabrochara com a juventude sua
natureza feita de impulsos, fossem polticos ou amorosos.
Na verdade Dom Pedro nunca se mostrou
arraigadamente de uma ou de outra parcialidade e por isso
mesmo seria durante sua curta vida sucessivamente acusado de
favorecer esta ou aquela ptria. Sua vontade era mais
vacilante do que levavam a crer seus mpetos e sua valentia,
a qual brilhava singularmente ao lado da ausncia completa
de coragem do pai. Carecia contudo de outra vontade mais
esclarecida e mais forte que lhe iluminasse e guiasse a
prpria: foi o que sucedeu quando ocorreu o encontro com
Jos Bonifcio, que chegou a fascinar por forma tal o
prncipe que este, no exagero sentimental que o distinguia,
o tratava em certas ocasies de pai.
Antes disso j Antnio Carlos nele
causara impresso bastante para que a transmitisse a Dom
Joo VI (106), mencionando a audincia concedida
ao deputado paulista, de viagem para Lisboa, e considerando
"uma justa reciprocidade" a idia de uma igual representao
nacional para as duas sees da Monarquia, de que era
Antnio Carlos estrnuo defensor. Nessa mesma carta,
manifesta o regente o desejo de que "o soberano congresso
no se deixasse levar pelas cartas que lhe so comunicadas,
relativamente Amrica, e que antes de ocupar-se desta
parte do reino tivesse o cuidado de consultar, como deve, os
deputados americanos". Era como ele prprio estava agindo.
At o Fico, que marca a
culminncia da transformao, o prncipe estivera
simultaneamente em contato com os elementos em antagonismo,
tanto com os constitucionais portugueses que procuravam
facilitar o trabalho das Cortes, as quais, segundo a
observao picante de Armitage, "em sua sabedoria sempre
mandavam primeiro os decretos, e depois a fora destinada a
faz-los executar, o que se pode chamar um processo
negativo, como os patriotas brasileiros, cujos intuitos eram
bem diversos. Armitage, bem informado destas coisas
porquanto chegou ao Rio de Janeiro em 1828 e lhe foi
familiar o meio do primeiro reinado, escreve que Dom Pedro
foi "sondado", constando que prestara ateno favorvel aos
promotores do plano de independncia, que devia comear pelo
estabelecimento da integridade do reino americano,
fundamento necessrio e para o qual parecia indispensvel
sua interveno.
Capacitara-se porm Dom Pedro dos riscos
da tentativa, no formando ainda os brasileiros um partido
bem organizado, persistindo at no poucos em confiar, por
amor s idias, no liberalismo das Cortes, ao passo que a
diviso auxiliadora tinha a cidade sua merc, repetindo-se
esta situao em cada uma das principais cidades martimas
de um pas de comunicaes difceis e aleatrias, com suas
divises administrativas, correspondentes s provncias
histricas, intrigadas, seno desavindas, ou pelo menos
indiferentes umas as outras (107).
Da uma tal ou qual recrudescncia do
lusitanismo de Dom Pedro, que no chegou todavia, por
ocasio dos sucessos de outubro, para mandar perseguir os
chefes da conspirao, que lhe eram conhecidos,
contentando-se com prender agentes subalternos e fazendo do
caso, que para alguns no passou de uma farsa da diviso
auxiliadora (108), grande escarcu para Lisboa
(109). Foi nessa ocasio que, tendo-se Pedro lvares
Diniz recusado a referendar o decreto de exonerao do
intendente geral de polcia Antnio Lus Pereira da Cunha
"pela sua indolncia, pouca atividade e pouco amor e
interesse pela constituio portuguesa", foi verdadeiramente
"enxotado do ministrio". "Eu disse-lhe, escrevia o prncipe
a Dom Joo VI, que gente covarde no deve servir empregos
pblicos e muito mais em tempo em que e necessrio suma
atividade; que, visto ele ser isto que eu dizia, lavrasse o
decreto de demisso para ele e de nomeao para Francisco
Jos Vieira...
Este Vieira era um homem de sorte,
desembargador da relao de Goa, na ndia Portuguesa, que
acabava de chegar ao Rio de Janeiro, em trnsito para
Lisboa. Era tambm um homem de brio, porque a posio
oferecida nada tinha de tentadora, nem mesmo de estvel: at
entre o comrcio reinava a apreenso que, por ser pouco
crvel, no era menos sintomtica, de que a confuso
remataria em desordem, assinalada por uma pilhagem geral.
* * *
Uma das coisas que mais pareciam apavorar
o prncipe era a grave situao financeira, com a qual havia
que arcar. As dificuldades do governo neste terreno eram
imediatamente devidas s circunstncias em que se operou a
retirada da corte, sem que servisse de compensao ao
escoamento de dinheiro que ento se verificara, o afluxo das
quotas provinciais, dantes canalizadas para a capital
brasileira e cuja remessa se achava agora suspensa, com
exceo de Pernambuco em tempo de Lus do Rego, pela falta
de unio entre as provncias. Essas contribuies vinham em
"numerrio metlico"1 (10 e a penria do errio
com o estancar dessa fonte primordial de receita,
traduzia-se naturalmente pelo atraso dos pagamentos a civis
e a militares.
Outra causa da crise das finanas era a
condio em que se encontrava, praticamente seno
declaradamente falido, o Banco do Brasil, que era de fato um
banco do Estado, mas que nascera torto. Esse estabelecimento
fazia ao governo emprstimos em papel moeda que cada dia
valia menos, porque nem se aumentava o capital do banco com
reserva em ouro e prata que garantisse sua circulao
fiduciria, nem se apuravam as responsabilidades das
emisses de notas, sobre as quais os acionistas recolhiam
lucros enormes.
Esses acionistas eram uns privilegiados e
nem todos de verdade possuam tal qualidade, porque alguns
tinham tomado dinheiro fiado para subscrever em aes que
ficavam de cauo nos cofres do prprio banco. O interesse
residia neste caso, em que o juro do emprstimo contrado
com usurrios excedia talvez o dividendo do banco, na
comenda de Cristo com que Dom Joo VI galardoava os que
concorriam com certa importncia para a instituio de
crdito por ele fundada (111).
Os diretores eram os primeiros a
claudicar no meio sem escrpulos em que se moviam: com os
fundos do banco descontavam letras em proveito prprio. Nada
se publicava, nada portanto se sabia, at que sobreveio o
dia do balano forado, quando o transporte do numerrio,
das barras e dos diamantes, causado pelo novo xodo da
corte, deixou vazias arcas que j no andavam repletas e que
agora s o ficaram do papel enxovalhado porque foi trocado
seu metal. O decreto real mandando recolher aos cofres do
banco os diamantes de que no houvesse mister, foi
certamente uma demonstrao oficial platnica, e as Cortes
encarregaram-se de reduzir expresso mais simples o mesmo
decreto de 23 de maro de 1821, pelo qual mandava elrei
considerar dvida pblica os desembolsos do Banco do Brasil,
feitos sob forma de avanos ao real errio para suprir as
urgncias do Estado, sendo o mesmo banco credor a diferentes
cofres pblicos pelo desconto de letras firmadas pelos seus
tesoureiros.
A dvida do governo excedia bastante o
capital do banco. O decreto tornava responsveis pelas
transaes realizadas todas as rendas pblicas do reino do
Brasil. A fim de aumentar os capitais que deviam servir a
acelerar o pagamento do dbito da real fazenda, ordenava
outrossim el-rei que a diretoria geral dos diamantes
removesse para o banco no s os brilhantes lapidados
depositados no seu tesouro, como os brutos que no fossem
necessrios para se entreter o trabalho da fbrica de
lapidao estabelecida na corte, e bem assim fizesse a
administrao da real casa entrar para o mesmo depsito os
objetos de prata, ouro e pedras preciosas que fosse possvel
dispensar do uso e decoro da Coroa.
Vendo contudo que este processo de
liquidao era demorado e no impedia entretanto o
descrdito do banco, Dom Joo VI expediu para Portugal o
conselheiro deputado do tribunal da Junta do Comrcio
Pereira de Almeida, para a ou no estrangeiro negociar um
emprstimo de 6 milhes de cruzados, quantia alis
insuficiente pois que, para satisfazer os compromissos
existentes e "ocorrer as despesas do banco", o que quer
dizer restabelecer sua situao folgada, seriam necessrios
20 milhes de cruzados, quantia que se poderia obter com a
hipoteca dos rendimentos da alfndega do Rio de Janeiro.
Somente as dvidas contradas no banco pelo tesouro subiam
mais ou menos a 12 milhes de cruzados, devendo porm o
governo muito mais do que isso, a particulares, a casas
comerciais estrangeiras, a estabelecimentos nacionais, aos
prprios voluntrios reais, aos quais havia que pagar 26
meses de soldo atrasado (112).
Nas Cortes o protesto contra o emprstimo
projetado tocou as razes da indignao por parte dos
regeneradores. Borges Carneiro qualificou a proposio de
"monstruosa" pelo lado da constitucionalidade, no podendo o
soberano dispor livremente da fazenda nacional como seria no
caso da hipoteca, e no convindo o emprstimo a Portugal,
cujos interesses diferiam dos do Brasil. Nem valeria a pena
adiar a discusso. No era questo de se achar ou no ainda
o Brasil representado nas Cortes: "nunca, em tempo algum,
ainda que estivesse todo o Brasil neste congresso, se
aceitaria tal emprstimo proposto como se prope". Foram
estas as palavras de Fernandes Toms.
No deixava de ter razo Borges Carneiro
ao dizer que o dinheiro que se pretendia tomar de emprstimo
era "para cobrir os notrios e escandalosos roubos do Banco
Nacional do Brasil". A este estabelecimento, corrodo pela
fraude, pelas prodigalidades e delapidaes dos seus
administradores, que os empregados menores tratavam de
imitar e dos quais uns quebravam, outros se evadiam,
atacados da megalomania e alcanados pelo desfalque, s
restava esboroar-se, e foi o que aconteceu. A 28 de julho
ocorria uma virtual suspenso de pagamentos, sendo as notas
trocadas, 75% por notas menores, 15% por moeda de prata e
10% por moeda de cobre. Era o regime do curso forado.
Escreve Armitage, que era empregado numa
casa comercial, que o pnico financeiro no foi to grande
quanto se podia calcular, porque se fez acreditar que a
insolvabilidade era motivada pelo desequilbrio da balana
do comrcio e pela escassez do meio circulante determinada
pela dragagem operada pela corte. O que restava entrara para
o p-de-meia, conforme acertadamente julgava o principe
(113), a ponto do cobre j ter um prmio de 3%. Aquilo
que no diminura, enquanto Dom Joo VI permaneceu no
Brasil, foi o nmero dos parasitas do tesouro, embora este
tivesse deixado de ser alimentado. quer pelas rendas
provinciais, quer por um banco que Dom Pedro tratava de
"tsico".
"Esta provncia est quase a estourar,
logo que o banco, que o meu termmetro, estiver com o
dinheiro exausto, que para isto no faltam quatro meses
pelos passos gigantescos com que ele marcha para a cova
aberta pelos seus delapidadores" - informava o prncipe
(114), ralado por uma situao angustiosa que debalde
procurava sanar, o que era um impossvel desde que a receita
da provncia do Rio de Janeiro no chegava a seis milhes e
as despesas do Estado, que em 1820 tinham sido de vinte
milhes de cruzados, ele a muito custo esperava reduzi-las a
quatorze milhes.
A regncia teve a felicidade de encontrar
ministros das finanas honrados e escrupulosos como foram o
conde da Louz, Caetano Pinto e Martim Francisco, mas teve
sobretudo a dita de achar-se sua frente um prncipe
disposto a restringir suas prprias despesas e as da sua
corte at os limites do possvel. Dom Joo VI era um misto,
de resto freqente, de sovina e de perdulrio: gostava de
entesourar e ao mesmo tempo fechava os olhos aos
desperdcios. Tambm verdade que no se furtava a exercer
caridade, vista da desventura, o que lhe poupa o epteto
de avaro.
Dom Pedro tinha porm uma proporo muito
exata entre o que devia ser rendimento e o que devia
constituir despesa, com tanto mais razo nessa ocasio
quanto o perodo que lhe cabia era o das vacas magras. Com o
regresso da corte para Lisboa tinham declinado as transaes
mercantis, parado as obras de melhoramento, paralisado por
assim dizer a vida econmica, apreensivo cada qual do dia de
amanh e tratando de pr a bom recato o que fosse apurando.
Inaugurando sua poltica de economias, em
que o ajudava Louz, Dom Pedro comeou por sua casa os
cortes. Na ucharia, de famigerada memria, de que vivia um
horror de gente, a economia orada foi de 400 contos. S os
animais das cavalarias foram reduzidos de 1.200 a 156. No
pao da cidade instalaram-se os ministrios, tribunais e
reparties pblicas de maior monta, poupando-se os aluguis
das casas que ocupavam. "Todas estas mudanas - escrevia ele
para Lisboa - custaram-me pouco porque nelas empreguei os
pretos de Santa Cruz e de So Cristovo, todos os quais tm
ofcios". E como no h economia que no merea a pena,
citava que "toda a minha roupa branca, a da capela e a de
mesa so lavadas pelas minhas pretas" e que para os cavalos
a despesa era s do milho, porquanto o capim provinha de So
Cristovo.
Entre as providncias tomadas, duas
traduzem o pensamento poltico da unio das provncias. A
primeira , no decreto de 13 de maio de 1821, a que, na
inteno declarada de proteger a navegao de cabotagem,
manda abolir o imposto de sada ou exportao de 2% sobre
gneros brasileiros transportados de um porto para outro do
reino americano. A segunda, constante do mesmo decreto,
ordena que quaisquer gneros importados pela alfndega do
Rio de Janeiro, aps terem sido despachados em outra
alfndega, ficassem isentos da diferena que pudesse haver
de uma pauta para outra, o que redundava em uniformizao
dos direitos aduaneiros.
Com as diminuies feitas nas despesas, o
embarque para Lisboa de umas centenas de pensionrios do
Estado, que de direito deviam pesar sobre o errio de
Lisboa, e a ajuda trazida pela melhoria das condies do
comrcio de um pas naturalmente progressivo, que por si se
desenvolvia contra quaisquer obstculos, a situao
atenuou-se sensivelmente dentro da esfera das
possibilidades. Ora, toda modificao favorvel resultava
proveitosa causa que se ia tornando nacional.
No tinha o prncipe uma natureza para
ficar imune ao contgio da febre nacionalista. A resistncia
dos seus preconceitos unionistas era frouxa, e a febre ia-se
alastrando como uma epidemia, passando dos clubes secretos,
onde incubara, para as gazetas que iam pululando afogueadas
de radicalismo, e no respeitando sequer o plpito. Os
religiosos das ordens monsticas, possuidoras algumas, como
a dos beneditinos, de avultados bens, tinham perdido na
licena dos costumes o fervor das tradies, e o clero
secular, na frase de Armitage, "privado dos dzimos, no
tinha nem propriedade, nem privilgios, nem abusos a
defender: pelo contrrio, animado de sentimentos iguais aos
do povo, reputava os seus interesses ligados aos da
comunidade brasileira". Assim que se encontravam os mesmos
hbitos de burel nas lojas misteriosas e nos claustros
conventuais.
Estes adeptos, cujo contingente era
numeroso e cuja ao foi considervel, recrutavam-se por si.
As Cortes encarregaram-se de recrutar outros. O pessoal
desempregado por virtude da extino das cortes judiciais e
juntas administrativas do reino americano, era matria-prima
necessria da classe dos patriotas exaltados: a fome age
ento como conselheira. "Aqueles mesmos, observa ainda
Armitage, que haviam durante a maior parte da sua vida
serpejado entre os mais baixos escravos do poder,
ergueram-se como ativos e estrnuos defensores da
independncia". O Reverbero Constitucional Fluminense,
fundado a 15 de setembro de 1821, ainda se continha"5,
mas os prprios monarquistas de princpios, que os havia e
no poucos, anteviam na retirada de Dom Pedro depois da de
Dom Joo VI, o sinal certo do advento da repblica, sinnima
para eles de desordem e runa.
Os sucessos j entravam a dar-lhes razo.
O Brasil estava convulso, quase anarquizado. Em Santos - o
prprio prncipe quem o relata na carta ao pai de 17 de
julho - as tropas sublevaram-se; exigindo seus atrasados, e
estando vazios os cofres do governo, decidiram pagar-se por
suas prprias mos, pilhando os ricos, ao que no foi
possvel opor uma resistncia eficaz. Morreram algumas
pessoas na escaramua, levando a soldadesca a melhor e
saqueando at dois navios ancorados no porto, na importncia
de 200.000 cruzados. Cenas parecidas ameaavam repetir-se
noutros pontos e Dom Pedro era forosamente sincero quando
dizia (116) ter sempre diante dos olhos
"horrorosos painis, uns j vista, e outros, muito piores,
para o futuro".
Ficar e lutar era uma atitude que carecia
de ser incutida e pesada: no bastava ser lembrada. Os
obstculos que dentro do Brasil se erguiam no eram menores
do que os que se levantavam em Portugal evoluo
desafogada da sua antiga colnia. Quem, para comear, estava
certo de lograr reunir num feixe compacto essas provncias
dispersas, quase hostis, embriagando-se cada uma com o vinho
espumante da liberdade?
Dom Pedro julgava abaixo de si, do seu
nascimento, da sua dignidade, dispor de uma autoridade to
limitada como a que lhe andava atribuda, e por isso
escrevia desde 17 de julho que o melhor seria instalar-se no
Rio de Janeiro uma junta executiva, "para que V. M. se no
degrade a si, tendo o seu herdeiro como governador de uma
provncia s". A tanto parecia dever resignar-se o regente,
vendo que ao plano gradualmente constitudo das Cortes
correspondia o sentimento egosta das provncias
brasileiras. Ele prprio afianava por esse tempo que no
levaria a mal que as mesmas se dirigissem ao Soberano
Congresso, "limitando-me eu s a esta at V. M. mandar que
eu parta..."
Ao chegarem a nove de dezembro, pelo
brigue Infante D. Sebastio, os famosos decretos Nos
124 e 125, que mandavam eleger e empossar dentro de dois
meses a junta fluminense e volver Dom Pedro a Lisboa, este
ainda escrevia ao pai que ia dar imediato cumprimento s
disposies transmitidas, porque desde o momento em que
estivesse organizada a nova autoridade, "ele no queria
influir mais nada no Brasil" (117)
No era que se quisesse o regente
esquivar a tarefas rduas. J por efeito da sua ndole ativa
e impaciente, j porque os tempos andavam por tal forma
revoltos que at os prncipes tinham que desmentir o
constitucionalismo que lhes queria emprestar gestos
hierticos, Dom Pedro no desdenhava intrometer-se nos
assuntos de administrao e no recuaria sequer, se preciso
fosse, ante o desempenhar funes subalternas de beleguim,
caso faltassem no caso do padre Jos Narciso'18.
Dom Pedro lembra um rei medieval no
sentido de ter sido um soberano em contato dirio com o seu
povo. No administrava justia, como So Lus, sombra de
um carvalho, nem bailava como Pedro o Cru pelas ruas, luz
dos archotes e ao som dos pandeiros e tamboris, mas em
freqentes ocasies esteve pessoalmente metido na refrega
das paixes. No julgava atentatrio da dignidade da sua
investidura falar do terrao de um teatro a um magote de
povo alborotado ou a tropas insubordinadas; soltar do
camarote real vivas entusisticos "divinal Constituio" e
entoar, acompanhado pelo pblico, da platia s torrinhas, o
hino de liberdade no qual colaborara como poeta e como
msico; replicar alto e bom som, de uma arrancada, a
qualquer observao proferida de dentro da multido e que
lhe ferisse os ouvidos; ir dias seguidos a casa do seu
ministro Jos Bonifcio, prendendo o cavalo argola do
porto, a ponto de um gracejador qualquer observar que ele
era o ajudante de campo do verdadeiro monarca; passar horas
a fio na cela de frei Sampaio no convento de Santo Antnio a
ouvir-lhe a retrica constitucional, porque nesse instante
curioso da vida nacional os frades eram os revolucionrios
mais rdegos e a independncia ia sair tanto dos
concilibulos dos pedreiros livres quanto das palestras dos
mosteiros.
A 14 de dezembro de 1821 Dom Pedro
comunicava a Dom Joo VI que a publicao dos decretos das
Cortes fizera "um choque mui grande nos brasileiros e em
muitos europeus aqui estabelecidos, a ponto de dizerem pelas
ruas: se a constituio fazerem-nos mal leve o diabo tal
coisa; havemos fazer um termo para o prncipe no sair, sob
pena de ficar responsvel pela perda do Brasil para
Portugal...". Porto Seguro pondera que os portugueses que
rivalizavam com os brasileiros em reprovarem o proceder das
Cortes, receavam vir a sofrer nos seus interesses como
funcionrios, comerciantes ou proprietrios com a remoo da
garantia viva da ordem.
O prncipe entretanto informava que "sem
embargo de todas estas vozes" se ia aprontando "com toda a
pressa e sossego, a fim de ver se posso, como devo, cumprir
to sagradas ordens, porque a minha obrigao obedecer
cegamente, e assim o pede a minha honra, ainda que perca a
vida: mas nunca pela exposio ou pedimento dela fazer
perder milhares". Na mesma carta pedia ao pai que fizesse
saber ao Congresso que lhe seria "sensvel sobremaneira" se
fosse "obrigado pelo povo a no dar o exato cumprimento a
to soberanas ordens".
No dia imediato, 15 de dezembro, dando
conta das representaes que se preparavam pondo o dilema:
"ou vai, ns nos declaramos independentes; ou fica, ento
continuamos a estar unidos, e seremos responsveis pela
falta de execuo das ordens do Congresso - o prncipe
continuava a afirmar que s fora cederia e rematava com a
seguinte declarao: "Sou fiel e honrado". O pior porm era
que, conforme reza sua ltima carta do ano de 1821, de 30 de
dezembro, "a opinio que dantes no era geral, hoje e est
mui arraigada".
CAPTULO VIII
O "FICO". A PRESSO E A REAO
Toda a comdia tem um desenlace. O ano de
1822 abria-se com um grande ponto de interrogao:
obedeceria afinal o prncipe regente intimao vinda de
Portugal, quando fosse reiterada, ou permaneceria de todo no
Brasil? Condescenderia com os despeitos inbeis das Cortes
ou satisfaria os anelos dos patriotas, que se supunham
protegidos pelos ingleses e pelos americanos? (119)
O Brasil - parte dele pelo menos - ressentira-se do
agravo que o alcanara na pessoa do regente e queria um
desforo: este desforo s podia ser a nacionalizao de Dom
Pedro, servindo de eixo unio das provncias americanas.
Entretanto, para no romper de chofre, contemporizava-se
ainda, apelando para o critrio dos regeneradores do
Congresso e tratando-se de melhor os esclarecer sobre a
situao dos espritos no reino ultramarino, para que
avaliassem todo o perigo das suas resolues autoritrias e
impertinentes.
O visconde de Porto Seguro insiste muito
na sua Histria da Independncia sobre o efeito
decisivo que as vistas de recolonizao das Cortes e depois
as injrias assacadas contra o Brasil e seus representantes
por deputados portugueses e populares da mesma nao
exerceram sobre a opinio culta ultramarina, que at ento
aceitava o dualismo. Em abono do seu juzo cita no s as
instrues da junta de So Paulo aos deputados da provncia,
insistindo na autonomia sem insinuarem a separao, como o
Reverbero que no seu segundo nmero, de 1. de
outubro, dirigindo-se assemblia constituinte de Lisboa,
se referia ao "eterno vnculo que nos ligar eternamente" e
dizia confiar nela "porque uma parte da nao livre no h
de querer escravizar a outra".
Antnio Carlos, num folheto publicado na
Bahia logo depois de deixar o crcere, nem o dualismo
aceitava, achando, nas suas expresses, o cmulo da inpcia
e da velhacaria por parte do ministrio do Rio, pretender a
princpio "rachar em duas a mesma nao", destruir-lhe a
unidade central por meio de parlamentos privativos, quando
instituies diversas sob a mesma Coroa mascaravam naes
inimigas acorrentadas pela conquista e distanciadas pelos
costumes, lngua, pensar e at religio. Era este o caso da
Inglaterra e da Irlanda. Antnio Carlos pertencia ao nmero
avultado dos que queriam antes de tudo ver estender-se ao
Brasil o benefcio da democratizao portuguesa.
A partida do prncipe real implicava
certamente a separao com a independncia da seo
americana da Monarquia: sua permanncia ainda poderia
determinar o prolongamento da unio atravs do Atlntico,
com a condio de consolidar-se a unidade brasileira que
fraquejava no processo da fuso e ameaava dissolver-se
irremediavelmente, da fragmentao s podendo aproveitar-se
o ideal republicano. "No existe at agora unanimidade
alguma, nenhuma tendncia comum entre as principais
provncias", escrevia, Mareschal a Metternich nas vsperas
do Fico, a 7 de janeiro, e vimos que citava Minas
Gerais tratando com o Rio de Janeiro como de potncia a
potncia, a exemplo do Paraguai com Buenos Aires, e
Pernambuco, onde lavrava um esprito de independncia
republicana". Ao diplomata austraco acudira at a lembrana
da transferncia da sede do governo central do Brasil para
Minas, a fim de no suscitar embaraos o cime contra o Rio
de Janeiro, que era um trao geral na antiga colnia.
O prncipe at a deixara-se ir um tanto
ao sabor dos acontecimentos, sabedor de que nas lojas
manicas, das quais eram membros ou acabaram por fazer
parte todos os propagandistas da nossa nacionalidade, se
trabalhava com afinco pela organizao no reino ultramarino
de um governo perpetuamente livre, que como tal no poderia
deixar de ser independente. A idia de aclam-lo imperador
no dia do seu vigsimo terceiro aniversrio, a 12 de outubro
de 1821, se de fato viu a luz e no foi um simulacro de
nascimento, ali fora concebida.
Descontava-se de antemo a ambio de um
prncipe trfego e com aspiraes, o qual no entanto no deu
seno mais tarde mostras de perfilhar tais projetos, antes
os repelira de comeo pelo escrpulo mais que tudo de no
melindrar o pai, parecendo aodado no seguir-lhe o precavido
parecer. Como julgaria el-rei o que se lhe afiguraria por
certo sofreguido, antes de esgotada a lista de provaes a
que o prprio monarca andava por seu lado sujeito?
O fardo alis era pesado e qui inglria
a misso, caso falhasse, para gudio da guarnio
portuguesa, cujo estado de alma Porto Seguro indica, ao
notar que a proclamao de 4 de outubro, do prncipe aos
fluminenses, obedecera " insinuao da comisso que desde 5
de junho respondia pelo governo das armas".
No era s por uma concordncia de
sentimentos com os da terra que o elemento portugus
colaboraria na exploso de descontentamento com que foram
acolhidos os decretos n.s 124 e 125, qualificados por Porto
Seguro de inquos, uma vez publicados no dia 11 de dezembro
na Gazeta Extraordinria. Aqueles que Drummond
denomina "chatins das ruas da Quitanda e do Rosrio"
manifestaram-se contra uma soluo que os deixaria merc
do elemento nacional. A intimidade do prncipe com os
oficiais da diviso auxiliadora garantira-lhes o seu
luzismo; mas por sua vez os brasileiros o tinham como o
melhor penhor da sinceridade de uma poltica que viesse a
consagrar a autonomia do seu pas. Entrementes positivo
que as Cortes s estavam demonstrando empenho em humilhar o
herdeiro da coroa, ao passo que no Brasil se desenhava por
ele uma corrente de simpatia e mesmo de carinho. A ciso,
com Ele ou sem Ele, s deveria contudo para a maior parte
ser um recurso de ltima extremidade.
Mareschal, que vivia na privana da
corte, achava que a irresoluo proverbial dos Braganas no
era alheia natureza de Dom Pedro, em quem igualmente
prevaleciam a compreenso natural e a vivacidade intelectual
da famlia. Arrebatamentos como ele os tinha, podiam
eqivaler a bravura, mas no supem forosamente coragem
moral, que se exibe pela capacidade de deliberao
espontnea, sem carecer para agir ou se transformar em ao
do estmulo de uma fora maior, encarnada numa influncia
estranha. Assim acontecera em Vila Viosa com o duque Dom
Joo e Joo Pinto Ribeiro, por ocasio da conjurao de
1640, que elevou ao trono a dinastia dos Braganas: outro
tanto ia verificar-se no Rio de Janeiro com Dom Pedro e Jos
Bonifcio.
J anteriormente ao patriarca da
independncia atuara em sentido idntico, porventura sem a
mesma autoridade, mas seguramente com maior delicadeza, a
habilidade da esposa. As cartas ao major Schfer, recrutador
de colonos e mercenrios em Hamburgo e comensal do prncipe,
no deixam dvida a semelhante respeito (120).
Dona Leopoldina enxergava claramente o momento histrico e
era decididamente pela permanncia de Dom Pedro, portanto
pela causa brasileira. "Ele est melhor disposto para os
brasileiros do que eu esperava mas necessrio que algumas
pessoas o influam mais, pois no est to positivamente
decidido quanto eu desejaria" (121).
Estas palavras a princesa as repetia
textualmente numa carta de 8 de janeiro, vspera do Fico:
"O prncipe est decidido, mas no tanto quanto eu
desejaria". E acrescentava, referindo-se resoluo de
formar-se o gabinete do regente com brasileiros e ao plano
de agruparem-se as provncias numa livre unio: "Muito me
tem custado alcanar tudo isto - s aspiraria insuflar uma
deciso mais firme" (122).
No lhe faltavam outras sugestes para
que desobedecesse s Cortes. No pensavam deste modo os
raros fidalgos portugueses que ainda tinham seus penates no
Rio de Janeiro, mas assim pensava o ntegro e desinteressado
Toms Antnio, relquia da administrao paterna (123).
A questo era que as Cortes queriam tornar verdadeira a
fico da soberania popular e concentrar em si todos os
poderes polticos e administrativos, no admitindo o sistema
constitucional misto. Nem lhes podia convir frente de um
Estado imenso como o Brasil o sucessor presuntivo da Coroa,
dispondo de uma soma de poder e prestgio que facilmente
eclipsaria a autoridade da representao nacional.
Um rompimento s podia contudo arrastar o
prncipe para muito mais longe do que o ponto onde ele se
achava, e Mareschal era o primeiro a reconhecer que o futuro
do reino unido s se lograria sustentar como fora devaneado
"ligando a sorte de Portugal do Brasil". Eis precisamente
o que as Cortes no queriam aceitar por principio algum,
embebidos os olhares na sua passada preponderncia de
instituio poltica portuguesa.
* * *
Nos comeos de janeiro estava Dom Pedro
com o propsito feito de ficar. Podia ser ainda inabalvel,
mas j dava para se externar neste sentido. Assim o declarou
ao seu guarda-roupa Gordilho de Barbuda (futuro marqus de
Jacarepagu) e assim dava a entender na sua carta a Dom Joo
VI de 2 de janeiro, pondo-o ao fato das "firmes tenes dos
paulistas" e ajuntando como comentrio: "Farei todas as
diligncias por bem para haver sossego, e para ver se posso
cumprir os decretos, o que me parece impossvel, porque a
opinio toda contra por toda a parte".
Os anteriores protestos de fidelidade de
Dom Pedro no tinham diminudo o ardor com que se entrou a
procurar demov-lo da sua inteno, sincera ou afetada,
levantando a opinio no Rio e expedindo emissrios para as
provncias prximas para que estas colaborassem na empresa,
o que era tambm uma forma indireta de congreg-las para um
fito comum. geralmente difcil em casos tais estabelecer
prioridades de iniciativa, e Jos Clemente Pereira, juiz de
fora e presidente do senado da cmara do Rio de Janeiro,
portugus de Trs-os-Montes, formado em cnones e em direito
em Coimbra e praa do batalho acadmico, que veio a ser uma
figura notvel na poltica brasileira, fez esta mesma
observao num discurso pronunciado na cmara dos deputados,
quando ministro da guerra, em 1841, acrescentando todavia
que se prioridade houve, coube aos fluminenses, embora seja
a glria igual para todas as provncias.
Foi ao Rio que chegaram as primeiras
noticias dos decretos e a foi por isso que se tratou de
promover a resistncia. opinio de Jos Clemente, expressa
naquela ocasio, que Dom Pedro simulava por poltica querer
ir para Portugal, quando na realidade sempre teve vontade de
ficar. Dar preferncia a uma soluo no contudo adot-la:
circunstncias adversas podem fazer mudar de rumo. Em todo
caso fato que o prncipe respondeu afirmativamente e
declarou que receberia as deputaes, ao expor-lhe Gordilho
de Barbuda o que havia a respeito e perguntar-lhe se
anuiria, " vontade unnime dos povos do Rio de Janeiro,
Minas e So Paulo".
Gordilho de Barbuda era nessa ocasio o
portador dos desejos de vrios patriotas que costumavam
reunir-se em casa do capito-mor Jos Joaquim da Rocha e
entre os quais Melo Moraes menciona Lus Pereira da Nbrega,
Dr. Jos Mariano de Azeredo Coutinho, desembargador
Francisco da Frana Mirandal24 e Antnio de
Meneses Vasconcelos de Drummond. Assegurado o consentimento
do prncipe, foi ento encarregado o padre mestre frei
Sampaio de redigir a representao fluminense - a qual ficou
com a data de 29 de dezembro - com a assistncia de alguns
dos entusiastas da idia que para este fim subiam ao
convento de Santo Antnio, entre eles figurando o confessor
do prncipe, frei Antnio da Arrabida, depois bispo de
Anemuria. Outros ficaram encarregados de angariar as
assinaturas pela cidade, iludindo a vigilncia dos
comandantes dos corpos portugueses, que mandavam rondar as
imediaes da casa do capito-mor Rocha na rua da Ajuda por
soldados paisana, por sua vez fiscalizados pelas patrulhas
de Cavalaria da policia do clebre comandante Vidigal
(125).
A 20 e 22 de dezembro tinham partido
respectivamente para Minas e So Paulo, Paulo Barbosa da
Silva, ento jovem oficial, mais tarde general,
plenipotencirio em vrias cortes europias e sobretudo
conhecido como mordomo da casa imperial, e Pedro Dias Paes
Leme, futuro marqus de Quixeramobim (126). As
representaes procedentes de Minas Gerais trazem algumas
delas datas que mostram a boa vontade que ao emissrio se
deparou, antes pelo menos dele encontrar-se com a junta de
governo: assim a representao de Barbacena de 27 de
dezembro e a de Mariana de 2 de janeiro. A capitania de
Minas Gerais, afastada do prncipe, tampouco prestava s
Cortes obedincia incondicional. Desde que se organizou pelo
modo que se dizia constitucional porque uma junta aclamada
tomara o lugar de um governador nomeado, Minas julgou-se
provncia autnoma, seno estado soberano, concedendo
patentes militares, sujeitando os decretos de Lisboa ao
beneplcito local, obedecendo ao critrio dos seus
interesses privativos, pensando em alterar a legislao e
at em cunhar moeda (127).
Paes Leme, que de Sepetiba a Santos fez a
viagem em canoa ao longo da costa, chegou a So Paulo a 23
de dezembro noite. Jos Bonifcio estava doente de
erisipela numa chcara fora da cidade: debaixo de chuva o
procurou o emissrio sem demora e pela madrugada veio ele,
doente mesmo, para a cidade, convocou a junta e props que
se suplicasse ao prncipe regente que no partisse antes de
receber a deputao que So Paulo ia encarregar de
apresentar-lhe os motivos de tal pedido (129).
Constam estas razes da representao famosa de 24 de
dezembro, contra os termos da qual protestou o presidente
Oyenhausen, como j protestara contra o prprio alvitre,
acabando porm por se confessar vencido e assinar o ofcio
em que Jos Bonifcio ps toda a vibrao do seu
temperamento apaixonado no dar expanso queixa contra as
cortes de quererem desunir o Brasil pelo "deslumbrado e
indecoroso decreto de 29 de setembro", e arrancar-lhe o seu
pai, "depois de o terem esbulhado do benfico fundador deste
reino". O prncipe, se obedecesse aos "desorganizadores,
perderia para o mundo a dignidade de homem e de prncipe e
responderia, perante o cu, do rio de sangue que de certo
vai correr pelo Brasil com a sua ausncia".
Com esta linguagem mostravam-se os
paulistas dispostos a tudo e o prprio Martim Francisco, que
era o mais calmo dos trs irmos, escrevera concisa mas
precisamente a Jos Joaquim da Rocha: "Nunca quis entrar em
revoluo, porque conhecia a pouca madureza dos meus
patrcios; porm agora, como a necessidade insta, mostrarei
para quanto pode em mim o amor da minha ptria" (130).
Por esse tempo j o prncipe,
gradualmente abalado pela intensidade do movimento a que
assistia, pusera completamente de lado seu justificado
receio de uma interveno violenta da diviso auxiliadora, a
qual podia dar origem a uma desastrosa guerra civil, e as
prprias obrigaes morais a que se dizia jungido para com
aqueles de quem emanava sua autoridade - o rei que nele
delegara seus poderes majestticos, as Cortes que
personificavam no regime constitucional puro a soberania
nacional. Sua correspondncia indica bem a progresso na
mudana da sua atitude, da recusa formal para a recusa
relativa e por fim para a aquiescncia.
Ao raiar de 1822 o acordo estava
estabelecido entre ele e os portadores dos protestos gerais
e a 9 se ia tornar de pedra e cal. Jos Clemente Pereira
recordava em 1841 que, tendo conversado com o prncipe na
vspera de natal na tribuna da capela imperial, j ele lhe
respondera que ficaria. Publicada na Gazeta
Extraordinria na noite de 8 a representao de So
Paulo, que fora entretanto divulgada por meio de cpias
manuscritas que circulavam, emprestando-lhe porm a atrao
do segredo, efetuou-se ao meio dia de 9 - hora fixada pelo
regente ao solicit-la o procurador da cmara - a entrega
solene do requerimento do senado, fundado nas representaes
do povo fluminense e coberto com mais de 8.000 assinaturas.
Dom Pedro comunicava-se destarte
diretamente com a nao. Nenhum ministro assistiu ao ato e
os corpos de linha brasileiros bem como as milcias estavam
de prontido nos quartis, na previso de algum
pronunciamento das tropas portuguesas. Ao ter noticia da
manifestao que se preparava, o general Jorge de Avilez
levara ao prncipe regente uma representao da diviso
auxiliadora, a qual, conquanto esperasse a cada momento ser
rendida por tropas de Lisboa e no quisesse por isso tomar
uma atitude mais radical, exigia a priso e deportao para
Portugal dos "perturbadores da ordem pblica". Respondeu-lhe
muito bem Dom Pedro que o direito de petio j se achava
garantido pelas bases da Constituio por ele prprio jurada
a instncias da tropa e que no lhe era mais possvel privar
os fluminenses do gozo desse direito.
As coisas passaram-se porm nesse dia
todas festivamente. Jos Clemente Pereira dizia quase 20
anos depois: "Creio no ser possvel nos nossos dias tornar,
a haver um dia to solene como este, em que se apresentaram
sessenta e tantos cidados das primeiras classes do Rio de
Janeiro, vestidos com o uniforme de capa e volta que ento
se usava". A cmara que sara e a que entrara no comeo do
ano partiram em duas filas da sala consistorial da igreja do
Rosrio, que servia de s, encaminhando-se pela rua do
Ouvidor para o pao da cidade. Como convinha a um ato
exclusivamente civil e popular, a diviso portuguesa no
esteve a ele presente e absteve-se mesmo de aplaudi-lo ou de
hostiliz-lo aps a frustrada assuno por Jorge de Avilez,
comandante em chefe da diviso e governador das armas, do
papel de mentor, cujos ares por algumas horas se arrogou no
intuito de forar o regente a aceitar os decretos que o
exautoravam.
O bisbilhoteiro Vasconcelos Drummond,
mostrando neste trao sua vocao diplomtica, refere que o
prncipe cortejava a mulher do general Avilez, o que ajuda
porventura a compreender o tom mal-humorado com que foi
feita a intimao ao representante da rgia autoridade. Mrs.
Graham escreve que corria voz que tal intimao fora
grosseira e indecorosa (ungentlemanlike and indecent).
A representao da junta de So Paulo
insistia talvez mais no "sistema da anarquia e da
escravido" que as Cortes sonhavam impor ao Brasil, sem a
participao da deputao americana, e vaticinava que "seus
povos, quais tigres raivosos, acordaro de certo do sono
amadornado, em que o velho despotismo os tinha sepultado, e
em que a astcia de um novo maquiavelismo constitucional os
pretende agora conservar". A representao fluminense
alongava-se de preferncia sobre a retirada do prncipe e
essa viagem forada pelas cortes europias, "hoje decadas
daquele esplendor que elas apresentavam em outras pocas,
nelas no encontrando mais do que intrigas diplomticas,
mistrios cabalsticos, pretenses ideais, projetos
efmeros, partidos ameaadores, a moral pblica por toda a
parte corrompida...".
O prncipe devia de preferncia viajar
pelo interior do "vastssimo continente desconhecido na
Europa portuguesa" e que os estrangeiros melhor estudavam e
descreviam, continente do qual Portugal, dominado por uma
cega rotina, "no se dignou em tempo algum entrar no exame,
nunca lanou os olhos sobre o seu termmetro poltico e
moral, para conhecer a altura em que estava a opinio
pblica...". A presena do prncipe despertaria entre os
povos brio e entusiasmo e ele, por sua vez, recolheria a
vantagem de conhecer por si mesmo "a herana da sua
soberania".
A fala do presidente do senado da cmara
foi toda elaborada no sentido de que, para poupar grandes
males, suspendesse o prncipe a partida at nova
determinao das Cortes. Dom Pedro respondeu no mesmo tom. O
auto dessa sesso nica da vereao fluminense comportou
porm uma declarao complementar, que se reflete nos dois
editais sucessivos do senado da cmara ao povo do Rio de
Janeiro. Segundo o auto e o primeiro edital, este do prprio
dia 9, a resposta do prncipe regente foi a seguinte:
"Convencido de que a presena da minha pessoa no Brasil
interessa ao bem de toda a nao portuguesa, e conhecido que
a vontade de algumas provncias assim o requer, demorei a
minha sada at que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor
deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das
circunstncias que tm ocorrido".
O auto diz todavia no post scriptum
que as palavras de S. A. Real foram lanadas menos
exatamente no termo, devendo ser substitudas pelas
verdadeiras, que foram as seguintes:
"Como para bem de todos e felicidade
geral da nao, estou pronto; diga ao povo que fico."
E como o povo fora prorrompesse em
aclamaes, S. A. Real chegando s varandas do pao,
disse-lhe: "Agora s tenho a recomendar-vos unio e
tranqilidade". Esta segunda parte no consta do segundo
edital, de 10, que reza ter o senado da cmara publicado na
vspera, "com notvel alterao de palavras", a resposta do
prncipe regente, "esperando o mesmo senado que o
respeitvel pblico lhe desculpe aquela alterao,
protestando que no foi voluntria, mas unicamente nascida
do transporte de alegria que se apoderou de todos os que
estavam no salo das audincias...".
A mudana significa que houve receio de
que a expectativa geral, bastante excitada, estranhasse a
resposta, achando-a morna e considerando-a um paliativo para
o mal que se apregoava horrendo. O remendo visvel na
linguagem do edital, achando "to desculpvel aquela falta
de todas as pessoas que acompanharam o senado e no tiveram
dvida em declarar que a expresso do edital que se acaba de
publicar fora a prpria de S. A. Real, com alguma pequena
diferena".
No h dvida que a verso que ficou
histrica mais lapidar e, alm desta vantagem de uma maior
conciso, soa alto e firme como um toque de clarim. A outra
verso, mais prudente, tambm mais conforme com a
realidade. Dando conta mais de um ms depois s Cortes do
ocorrido, o senado da cmara, em ofcio de 16 de fevereiro,
insistia pela permanncia do prncipe e declarava que o
Brasil "queria ser tratado como irmo, no filho; soberano
com Portugal, e nunca sdito; independente como ele e nada
menos". E em ofcio do dia seguinte, aos deputados
fluminenses, definia a unio que desejava como "um pacto
indissolvel, de condies em tudo iguais".
Esta j a linguagem de Jos Bonifcio
ministro, adotada pelos outros fatores do momento. No
intuito de diminuir o papel dos Andradas no movimento da
independncia, Porto Seguro, que lhes no afeioado, opina
que a vigorosa representao de So Paulo no contribuiu ela
s para a final determinao do prncipe, tendo sido
precedida no Rio por vrios artigos de argumentao anloga,
e mesmo que sua linguagem, a qual trata de descabelada para
um documento dessa natureza, mais podia ser prejudicial do
que benfica.
fato que os Andradas eram irascveis;
tinham o que vulgarmente se chama "gnio forte", e Jos
Bonifcio em particular era desbocado: mas o valor do seu
gesto do ponto de vista histrico consiste no af de
solidariedade que traduz e que se revela em todos seus atos
pblicos, at no terreno intelectual (131).
Coube-lhe pois justificar antecipadamente e praticamente o
que Jos Clemente Pereira apontou com discernimento - que
possvel que a prioridade do movimento emancipador no
tivesse cabido em suma a ningum; no entusiasmo comum, sem
combinao prvia, estariam todos dispostos para o mesmo fim
e iriam tomando essa direo.
mister repetir que o Brasil at certo
tempo no queria na sua maioria desunir-se de Portugal:
queria apenas que lhe assegurassem as franquias alcanadas.
Para isto, ao mesmo tempo que se dirigia ao prncipe
regente, a junta de So Paulo procurou sob a instigao de
Jos Bonifcio uma aliana ofensiva e defensiva com a junta
de Minas Gerais e, se possvel, com as outras, contra a
projetada recolonizao do Brasil. Chamava-se a esta
federao "sagrada" e esperava-se que abrangeria toda a
monarquia, lanando em todo o caso, para a hiptese de
malogro, "os alicerces de uma unio indissolvel, recproca,
justa e decorosa".
Fiado neste apelo anterior de Jos
Bonifcio e j se sentindo apoiado na trplice combinao,
fluminense-paulista-mineira, foi que o prncipe regente na
noite de 12 de janeiro escreveu de seu punho, requisitando
dos governos de So Paulo e Minas foras que ajudassem a
defesa no caso de ataque por parte da diviso portuguesa
transferida para a Praia Grande, vindo um regimento de
infantaria de So Paulo e, com alguma demora, um de
cavalaria de Minas Gerais.
A combinao referida podia no se achar
ainda cimentada, mas j era positiva a constituio de um
bloco sulista. So Pedro do Sul participou da cerimnia do
dia 9 de janeiro na pessoa do coronel Manuel Carneiro da
Silva e Fontoura, autorizado para falar em nome da terra
riograndense, o qual declarou em alta voz que os sentimentos
dos seus comprovincianos, concordavam com os que ele ali via
manifestados.
Outra qualquer impresso mais lata
deixaria de ser rigorosamente exata. Os mineiros, com seu
natural desconfiado pelas condies mesmas da sua
colonizao, na qual se rodeava de mistrio a extrao do
ouro e dos diamantes a fim de lesar-se quanto possvel o
fisco, nicos a possurem no sul do Brasil tradies
republicanas, at de martrio, ficaram, ao que se diz, sus
peitando de que no Rio se tramava uma coisa e se comunicava
outra. Foi esta, segundo Melo Moraes, compilador atabalhoado
de documentos de primeira ordem, a razo da tardana da
deputao de Minas Gerais ao prncipe, precedida entretanto
pela deputao destinada s Cortes de Lisboa, a qual, uma
vez no Rio e tendo conferenciado com o regente a 22 de
janeiro, desistiu de seguir viagem e decidiu, conjuntamente
com o representante do Esprito Santo aguardar os
acontecimentos.
A resoluo de Dom Pedro fora
efetivamente a salvao do Brasil unido - unido entre si
quando deixasse de s-lo a Portugal - mas fora um golpe
terrvel para o partido republicano, a que se referia Jos
Clemente Pereira na sua fala de 9 de janeiro como semeado
por todo o Brasil e protegido pelos Estados Unidos. A
partida do prncipe real podia ter dado ganho de causa
democracia, mas tambm teria convertido o Brasil numa mera
expresso geogrfica, como foi a Itlia at sua unidade.
A liberdade de imprensa, que o general
Jorge de Avilez no seu manifesto de 14 de janeiro aos
cidados do Rio apontava como uma das instituies dos povos
livres decorrentes da atitude das tropas portuguesas que se
levantaram a 26 de fevereiro e depois a 5 de junho contra o
governo que, no seu dizer, "iludia astutamente os benefcios
da constituio, concedendo como uma graa o que era devido
por direito", provocou em redor deste episdio do Fico
um torneio de opsculos por publicistas de valor, no
nmero dos quais sobressaem Pereira da Fonseca (Maric),
Bernardo Jos da Gama (depois visconde de Goinia), o
tenente-coronel Raimundo da Cunha Matos, todos no esprito
do unionismo, quer no sentido brasileiro, quer no sentido
portugus, quase todos, seno todos, abundando em argumentos
persuasivos em favor de um pacto igual.
As tipografias comearam a abrir-se e as
folhas a aparecer. Ao lado do Reverbero surgiram, em
principio de outubro de 1821, portanto quase
simultaneamente, o Espelho, hebdomadrio e depois
bi-hebdomadrio, dirigido por Manuel Ferreira de Arajo
Guimares, antigo redator da revista O Patriota e da
Gazeta oficial, e desde dezembro a Malagueta de Lus
Augusto May, folha de opinies variveis e publicao
incerta, que durou irregularmente at 1829 e cuja redao
no era destituda de talento. Em 1822 entrou a publicar-se
o Correio do Rio de Janeiro, do portugus Jos Soares
Lisboa, jornal de escndalo e investivas pessoais, que
motivou o decreto de 18 de junho do mesmo ano contra os
excessos da imprensa. Soares Lisboa, condenado depois da
proclamao do imprio a 10 anos de priso por uma culpa
sria e provada, foi indultado por Dom Pedro, sob condio
de deixar o Brasil. Desembarcou porm em Pernambuco, - onde
fundou o Desengano Brasileiro e tomou parte na
Confederao do Equador, morrendo em novembro de 1824 no
combate do Couro da Anta (132).
CAPTULO IX
A RETIRADA DA DIVISO AUXILIADORA
Restava ainda ao prncipe, para
consolidar sua deciso, emancipar-se da verdadeira tutela
que sobre ele pesava, seno em contnua operao, pelo menos
sempre latente e prestes a manifestar-se ao primeiro sinal
de vontade prpria. A 4 de outubro fora a comisso militar
que desde 5 de junho exercia o governo das armas sob a forma
de triunvirato, que reclamara e exigira do regente "uma
declarao pblica pela imprensa, em que, da maneira que
mais for do seu agrado, faa conhecer a segurana de seus
sentimentos causa da nossa constituio poltica, e a bem
fundada confiana que tem na tropa desta guarnio;
protestando proceder sem a mais pequena condescendncia
contra todo aquele que for convencido de perturbador do
sistema constitucional, cujas bases, solenemente juradas, h
de manter inviolavelmente, enquanto por novas leis as Cortes
Gerais e Extraordinrias do Reino no mandarem o contrrio"
(133). Foi desta intimao que procedeu a conhecida e
empolada proclamao daquela data.
Agora outra tentativa para impor as
ordens das Cortes: esta porm foi mal sucedida. Diante da
desobedincia de Dom Pedro, apregoada aos quatro ventos pela
sua sucinta resposta ao senado da cmara, Jorge de Avilez
fez constar entre os soldados da diviso auxiliadora que,
com grande sentimento prprio, estava demitido do governo
das armas desde o dia 10. Na tarde de 11 visitou ele os
quartis, sendo aclamado como "o general constitucional".
Melo Moraes pretende que no se tratara
ainda de demisso e que Jorge de Avilez quis apenas
especular com isso para acirrar sua gente. Porto Seguro
supe que ele deu demisso a 12 do governo das armas,
continuando porm no comando da diviso. Cairu escreve que
foi de 12 a abolio do triunvirato, com a conseqente
destituio de Avilez. A expresso do prncipe pois
verdadeira na sua carta ao pai de 23 de janeiro: a 11 o
general "no estava demitido".
Havia no entanto alguma coisa de mudado e
profundamente mudado. Era uma nova orientao poltica que
se desenhava: a proclamao ulterior de 1. de fevereiro a
refletiria dizendo que, "recrescendo novas e imperiosas
circunstncias, era do dever da autoridade suprema mudar de
resoluo e tomar novas medidas". Afirmou-se essa orientao
na escolha, nas noites de 9 e 10 de janeiro, de
destacamentos nacionais para formarem a guarda de honra no
teatro de So Joo, ponto de reunio obrigatrio da corte,
que ia ser crismado em So Pedro de Alcntara e que se
transformara no cenrio das expanses, primeiro
constitucionais e depois independentes.
No estando ainda no seu papel ostentar
preferncias, quis o prncipe por tal motivo dar uma espcie
de satisfao aos regimentos portugueses e mandou buscar
entre eles a guarda de honra para a noite de 11; mas, ao que
parece, experimentou a desfeita de uma recusa geral. Mrs.
Graham, espectadora e cronista destes sucessos, no d o
fato como autntico, julgando-o contudo provvel, em vista
das circunstncias. A sedio fervia e rompeu nessa mesma
noite, quando grupos de 20 e 30 soldados portugueses,
armados de cacetes, percorreram as ruas quebrando vidraas,
insultando os transeuntes e praticando outros que tais
desacatos contra as casas decoradas de luminrias pelo
motivo do Fico, aos gritos de: "esta cabrada leva-se
a pau (134).
A notcia chegou ao teatro, onde Dom
Pedro logo notara a ausncia de Jorge de Avilez do camarote
de que era freqentador o mais assduo. Os espectadores em
confuso dispuseram-se a recolher-se, detendo-os todavia a
palavra tranqilizadora de Dom Pedro que da tribuna real
falou ao pblico, anunciando ter j tomado as providncias
necessrias para restabelecer a ordem, as quais tinham sido
chamar o brigadeiro Carretti, imediato de Avilez, e mand-lo
reprimir os amotinadores. Estes foram induzidos a voltar
para os quartis, podendo portanto recomear o trnsito das
ruas em segurana e parecendo, graas presena de esprito
do prncipe e calma que a mesma insuflou em alguns
oficiais, ter a cidade volvido sua anterior normalidade.
Urdira-se porm coisa pior, proveniente
diretamente de um incidente vulgar de embriaguez, ao qual
igualmente se refere a citada carta do prncipe. No saguo
do teatro o tenente-coronel Jos Maria da Costa, do
regimento 11 da Diviso, altercou com o tenente-coronel Jos
Joaquim de Lima e Silva, do 30 da corte, sobre a poltica do
dia, e o oficial portugus, que estava "espiritualizado" na
expresso da relao publicada por Melo Moraes, jurou ao
outro que o Brasil continuaria escravo de Portugal e que o
prncipe embarcaria, mesmo que para isto tivesse sua espada
de servir-lhe de prancha. Na excitao da briga saram os
dois para o largo e Lima e Silva, voltando para o teatro,
contou o ocorrido a vrios camaradas dos quais um, o
cirurgio ajudante Soares de Meireles, acompanhou o
tenente-coronel Jos Maria at conhecer que havia um plano
de insubordinao e ver mesmo, sua voz, a Diviso comear
a pegar em armas e formar no largo do Moura.
Deu-se ento Meirelles pressa em vir
informar o ministro da guerra, que por sua vez informou o
prncipe, ambos ainda na funo. Dom Pedro retirou-se para
So Cristovo, dando porm ordens para que as foras de 1.
e 2. linha da corte se preparassem para qualquer
eventualidade. De fato o motim, longe de arrefecer,
agravara-se: 700 soldados tinham marchado com quatro peas
de artilharia para o morro do Castelo, donde ameaavam
varrer metralha a populao a seus ps para depois
saquear-lhe as casas.
A guarnio portuguesa da Quinta da Boa
Vista, composta de caadores 3 - uns 500 homens no clculo
de Mrs. Graham - no tinha feito causa comum com os
companheiros, declarando que lhes havia sido confiada a
defesa do prncipe. Melo Moraes atribui sua atitude a um
ardil: o projeto da Diviso era, segundo ele, embarcar o
prncipe fora na fragata Unio e mais fcil se
tornaria a empresa conservando a postos aquela guarda
fiel. O que parece mais exato que sua neutralidade foi
efeito de anuncia a um pedido pessoal do regente, que lhes
falou nos seus deveres de lealdade e no se esqueceu
provavelmente de distribuir algumas recompensas. Esses
caadores pediram depois para partilhar da sorte dos seus
patrcios, mas dos seus oficiais se valeu antes Dom Pedro,
como intermedirios, para evitar um conflito cujas
conseqncias se no podiam prever.
No s o prncipe deu nessa crise mostras
de capacidade executiva, como os nacionais no esmoreceram
um instante na atividade que exibiram. Alm dos soldados,
artfices de caserna, obreiros do arsenal e policiais,
afluram simples paisanos a armar-se no quartel do campo de
Sant'Anna, assumindo o seu comando, apesar de estar com
dores reumticas, trazendo as pernas envoltas em baetas, o
ajudante general Oliveira lvares, que era alis madeirense
e a quem muito ajudou nessas circunstncias o coronel Lus
Pereira da Nbrega.
Ordem fora dada para que no campo se
congregassem todos os cavalos e muares que fosse possvel
encontrar na capital. Na madrugada de 12 j nada menos de
4.000 homens ali se achavam reunidos, dispondo de animais e
prontos para a ao. Nas palavras de Mrs. Graham, se eram
deficientes em matria de disciplina profissional, eram
formidveis pelo nmero e pela determinao de que se
achavam possudos. O velho general Joaquim Xavier Curado, o
decano dos oficiais superiores brasileiros, veterano das
campanhas do sul e no imprio conde de So Joo das Duas
Barras, foi aclamado no acampamento governador das armas da
cidade e provncia do Rio de Janeiro, que lhe dava como que
a interinidade da pasta da guerra, a cujo expediente o
titular dela se esquivara.
O prncipe tinha diante dos olhos a
guarnio dividida em dois campos hostis, mas afetava no
tomar partido entre portugueses e brasileiros. Mandou
indagar de uns e outros porque se achavam assim armados e
municiados e s alcanou a madrugada de 12 foi o general
Jorge de Avilez a palcio propor ao regente o recolhimento
recproco das tropas em armas, recebendo porm como resposta
do prncipe que, se as foras portuguesas lhe
desobedecessem, "as poria a elas e a ele barra a fora
(135).
Dom Pedro, falando com esta arrogncia,
ainda no podia calcular que as foras respectivas iam cada
vez mais distanciar-se em nmero, crescendo, segundo Porto
Seguro, a 2.000 homens no morro do Castelo e 10.000 no campo
de Sant'Anna (136), com algumas peas de
artilharia, ardilosamente transportadas por oficiais e
praas de coragem. Nem estava pelo menos de si para si to
seguro dos resultados que no tivesse, feito nessa mesma
madrugada de 12 partir para a fazenda de Santa Cruz, a doze
lguas da capital, a esposa e as crianas, ficando ele
indeciso entre ir juntar-se familia ( (137) ou
resistir a qualquer agresso.
Vira-se de um momento para outro
desamparado de seus conselheiros: Mareschal escrevia para
Viena que "abandonado do modo mais vergonhoso" pela nobreza
e pelos polticos ocupando altos cargos, todos do partido
europeu. Os fidalgos portugueses temiam um desforo das
Cortes de Lisboa nos bens que possuam em Portugal.
Segundo escreve Melo Moraes, antes do 9
de janeiro o regente propusera em conselho a questo da
execuo dos decretos de 29 de setembro, fazendo ver o
perigo que representava para a monarquia no Brasil o
cumprimento dos mesmos, dada a desconfiana que j entrara a
lavrar intensamente. Os ministros votaram porm em sentido
contrrio ao juzo do regente, menos Farinha (futuro conde
de Souzel). O desembargador Vieira, ministro do reino o dos
negcios estrangeiros, assim votou oficialmente, declarando
contudo a Dom Pedro, aps a reunio, que seu parecer como
particular era que o prncipe ficasse. Perguntando-lhe ento
este se ficaria nesse caso ele tambm, respondeu que no,
porquanto o cargo de ministro que ocupava "o privava dessa
honra e dessa convenincia" (138). Escusado
dizer que um homem to respeitador da integridade faleceu
pobrssimo. O ministro da Fazenda Louz foi tambm instado
para ficar por causa da sua probidade, mas tambm preferiu
partir.
No risco de perder a partida em que se
empenhara e antes da exuberncia do movimento popular fazer
pender a balana para o lado nacional, Dom Pedro achou
tambm avisado preparar para si e os seus um asilo a bordo
da fragata inglesa Dons. Conta Mrs. Graham, mulher do
comandante, que pessoas ricas para l mandaram por segurana
seus objetos de valor e que ela aprontou seu beliche para
receber a famlia real, no caso desta procurar refgio, como
fora formulada a hiptese. A autora refere que o recado veio
sem que ela soubesse a fonte: "A message, I do not know on
what authority, arrived to know if the Prince and Princess,
and family, could be received and protected on board". O
encarregado de negcios da ustria confirma na sua
correspondncia oficial que o regente "a t jusqu' faire
d'une demarche hier (12 de janeiro) d'une manire indirecte
au commandant de la frgate anglaise la Doris...; preuve
combien il est encore peu dcid".
Era realmente preciso que a situao
fosse cheia de incertezas para que Dom Pedro, que pelo menos
nunca foi homem propenso a fugir ao perigo, e tambm Dona
Leopoldina, que por sua vez sempre se mostrou to animosa
quanto interessada no destino soberano do pas aonde a
conduzira sua sorte, pensassem na retirada. O Sr. Alberto
Rangel, paladino da marquesa de Santos, acha que foi at a
carncia de feminilidade da arquiduquesa, a qual era
entretanto uma sentimental (139), o que mais
concorreu para trazer Dom Pedro por tanto tempo enfeitiado
pelos encantos da sua Domitila.
Era alis natural que naquela emergncia
o augusto casal no enxergasse a situao por um prisma
menos verdadeiro do que a enxergava uma estrangeira
recm-chegada ao pas como Mrs. Graham, a qual inseria no
seu dirio a observao - "que quanto mais o prncipe e a
princesa confiassem nos brasileiros, melhor para eles e para
a causa da independncia, porquanto esta agora se tornara
to inevitvel (is now so inevitable) que a questo
nica era saber se seria alcanada com ou sem derramamento
de sangue".
O prncipe parecia, e pela vida adiante o
mostrou, ser impelido pela educao e tambm pelo
temperamento para o despotismo, mas possuir firme crena
poltica no regime constitucional. "O esprito pblico se
purifica de dia em dia - escrevia ele ao pai (140)
- e se desenvolve com maior energia e prudncia. O
povo inteiro verdadeiramente constitucional, o que aprecio
mais do que posso expressar, porque no quereria governar um
povo que no amasse sinceramente a constituio. Creio que
uma constituio faz a felicidade do povo; mas creio ainda
mais que ela faz a fortuna do rei e do governo. Se o povo
infeliz onde no h constituio, o rei e o governo ainda
so mais infelizes. S velhacos acham seu proveito em
governo sem constituio".
Mareschal pensava exatamente como Mrs.
Graham e escrevia ao prncipe de Metternich "no haver
dvida de que depois desses fatos o prncipe se lance
inteiramente nos braos dos brasileiros, pois estes o
apoiam, ao passo que a pusilanimidade, o egosmo e a
covardia dos seus servidores portugueses no tm exemplo". O
diplomata era neste ponto demasiado severo para os
portugueses, que estavam no seu papel esquivando-se a uma
nacionalizao forada: isto no atenua nem muito menos
desculpa o fato apontado por Mareschal (141) de
no ter havido nem um camarista, nem uma dama para
acompanhar a Santa Cruz sua ama, em adiantado estado de
gravidez, e os filhinhos, ocasionando a jornada, segundo
consta, a doena de que veio a falecer a 14 de fevereiro
(142) o primognito Dom Joo Carlos, enquanto Dom
Pedro ficava a resolver as conseqncias da crise que afinal
se encaminhara mais prontamente do que deixava esperar para
um feliz desenlace.
* * *
A 13 de janeiro, j com razo muito mais
confiado num bom desfecho do grave incidente - Jos Clemente
Pereira no seu discurso de 1841 ainda se referia iminncia
da luta evitada experimentou Dom Pedro chamar ordem os
discolos. Convidou-os a confabularem uns com outros, isto ,
portugueses e brasileiros, razo de dois oficiais de cada
corpo, depois de, na vspera, mandar perguntar a cada um dos
generais comandantes o motivo da sua atitude. Respondeu
Curado que os brasileiros se tinham congregado para resistir
ameaa contra o prncipe e a cidade; por seu lado invocou
Jorge de Avilez a necessidade da sua defesa e da sua gente.
Em vista das respostas mandou o regente que as duas
parcialidades chegassem a acordo que redundasse em
restituir-se cidade a sua tranqilidade (143).
Segundo a verso de Porto Seguro, foi o
general Avilez quem se ofereceu para entrar em negociaes,
admitindo o prncipe a proposta da trasladao da Diviso
Auxiliadora para o outro lado da Bahia, guardando os
soldados suas armas e recebendo seus soldos at embarcarem
para Portugal. Para tal fim entrou o ministro da Marinha
Farinha em correspondncia com Carretti, porque os trs
outros ministros j estavam de demisso aceita, bem como do
outro lado o general Avilez, cujo pedido de demisso fora
aceito a 12.
Da carta do prncipe de 23 de janeiro
antes resulta que a iniciativa da concluso do alvitre
pacificador lhe pertence: "e assim estiveram at as 24
horas, que mandando eu dois oficiais, um aos de c, e outro
diviso, com diferentes propostas, assentiram os da
diviso passarem para a outra banda do rio". Os portugueses
no tinham contado com tanta presteza e deciso da parte dos
brasileiros e, compreendendo bem a m vontade que contra
eles reinava na cidade e que to espontaneamente se
manifestara, cederam assim prontamente, mesmo porque no
tinham carregado para o morro do Castelo provises de boca,
calculando que outro rumo tomariam os acontecimentos.
Nem era o adversrio de desprezar-se.
Mrs. Graham achou os homens, conquanto geralmente franzinos
(slight), sadios, ativos e cheios de vida
(spirit), parecendo-lhe gente resoluta nos seus
desgnios e determinada a defender seus lares e seus
direitos. A cavalhada era a melhor que ela at a vira na
terra. O espetculo do acampamento era variado e pitoresco,
dele nos deixando a escritora inglesa uma descrio que tem
o relevo de uma gua forte:
"Dentro da cerca onde a artilharia fora
postada, tudo parecia grave e srio: os soldados estavam
alerta e os oficiais, em grupos, discorriam sobre os
acontecimentos da noite anterior e as circunstncias do dia;
aqui e alm, dentro e fora do crculo, um orador estacionava
com os Ouvintes em redor, prestando ateno aos seus
arrazoados polticos e suas arengas patriticas. Na parte
aberta do campo viam-se soldados afastados dos seus
regimentos e companhias inteiras que tinham fugido
aglomerao de dentro da cerca, que mais intenso tornava o
calor. Cavalos, mulas e burros espojavam-se no cho,
arfando. Em todas as direes viam-se negros transportando
capim e milho para os animais ou levando cabea
tabuleiros, de doces e refrescos para os homens. Aqui uma
poro de soldados, exaustos da viagem e da viglia dormiam
estirados sobre o solo; ali jogava um grupo de moleques;
cada qual matava o tempo a seu modo, esperando pelo grande
evento, uns silenciosamente e pacientemente, receosos do que
poderia vir depois, outros ansiosos por agir, tratando
apenas de preencher o intervalo da forma mais divertida."
Segundo Mareschal (144), aos
milicianos tinham-se agregado populares, roceiros, padres e
frades, uns montados, outros a p, armados de pistola, de
faca e at simplesmente de um varapau.
Ao regressar para bordo da Dons no
dia 13, Mrs. Graham assistiu por acaso rendio da ltima
guarda portuguesa do pao da cidade pela primeira guarda
brasileira. Os vivas do povo assinalaram a importncia do
ato que se estava passando. A insuspeita testemunha
comentava: "Os habitantes em geral e especialmente os
negociantes estrangeiros esto muito satisfeitos com a
retirada das tropas de Lisboa, porquanto sua tirania de h
longo tempo se vinha exercendo de uma maneira brutal com
relao aos forasteiros, aos negros e no raro aos
brasileiros: de algumas semanas para c ento, sua
arrogncia revoltava tanto o prncipe como o povo".
No de admirar que nestas condies a
ordem de transferncia causasse srias apreenses. A cidade
apresentava um aspecto merencrio: fechadas as lojas,
patrulhas pelas ruas, toda a gente sobressaltada. O pessoal
do comrcio, incorporado na milcia, andava de servio,
armado e municiado, posto que no fardado, apenas com bandas
e cintos de couro cru sobre seus trajes paisanos. O Fico,
se exprimia a vontade do partido brasileiro, tambm
podia ser vantajosamente interpretado pelo partido
portugus, desde o momento em que uma das razes - a
principal alis - para sustar-se obedincia deliberao
das Cortes, era o receio, melhor dito, a convico da
separao imediata que dali adviria. A desconfiana, que se
tornara extrema, entre as duas faces que levava tenso
entre elas, qui luta por uma soluo que em suma
aproveitava a ambas, garantindo a presena do prncipe o
prolongamento da unio ou que a separao se operaria sem
gerar confuso e desordem.
No discurso pronunciado a 26 de janeiro
perante Dom Pedro, na qualidade de orador da deputao de
So Paulo, Jos Bonifcio disse que desobedecer a tais
ordens como as expedidas pelas Cortes era um verdadeiro ato
de obedincia filial, pois que para os paulistas era
indubitvel que o rei as assinara sob coao. Por sua vez,
antes de fazer o conhecimento pessoal do seu ministro, j
Dom Pedro estava convencido, e o expressava com uma noo
poltica muito exata e muito prtical (145), que
"com fora armada impossvel unir o Brasil a Portugal; com
o comrcio, e muita reciprocidade, a unio certa: porque o
interesse pelo comrcio, e o brio pela reciprocidade, so as
duas molas reais sobre que deve trabalhar a Monarquia
Luso-Braslica".
No dia 13 efetuou-se o transporte da
diviso para a Praia Grande sem que houvesse a menor
alterao de ordem: somente subsistiam temores do que
poderia ainda acontecer, mormente quando chegassem as tropas
em viagem de Lisboa. A 14 reabria o comrcio e no faltaram
oficiais e sobretudo soldados da Auxiliadora para, desejosos
de ficar na terra, pedirem baixa, obtendo-a sem a menor
dificuldade: o que os portugueses do partido adverso
verberavam como sendo fomentar a desero entre as foras
reais. A medida ajudava porm incontestavelmente o regresso
boa ordem, restabelecida sem tiroteio, a no ser o de
publicaes, nas quais a poca foi fertilssima, parecendo
que da forada anterior reserva se queriam todos desforrar
por uma verdadeira incontinncia de argumentao poltica.
Jorge de Avilez lanou uma proclamao
tersa e emproada, a que deu o ttulo de manifesto;
portugueses do partido nacional replicaram com uma
contra-proclamao muito recheada de reminiscncias
clssicas, ao passo que um "brasileiro constitucional"
publicou uma resposta declamatria e com visos a pattica.
Uma idia audaciosa assaltou porm os chefes da Diviso
Auxiliadora quando viram interrompidas as comunicaes da
Armao, onde foram aquartelados, com o Rio de Janeiro -
chegando o cerco a ser to severo que, por edital do
intendente geral de policia Joo Incio da Cunha (futuro
visconde de Alcntara), os moradores daquele lado foram
mandados retirar seis lguas para o interior, com seus gados
e vveres, e por outro edital foi vedada a comunicao em
barcos ou canoas com a capital. Foi essa idia a de seguirem
por terra para a Bahia, a juntarem-se s foras do general
Madeira, que ali estavam constituindo um forte ncleo de
resistncia portuguesa.
Desistiram porm da empresa os que a
conceberam, vista das dificuldades que se antolhavam
insuperveis, apesar de ser lembrado que as depredaes pelo
caminho podiam fornecer carros e cavalos para a conduo.
Foi tal projeto originalmente atribudo a um egresso por
nome Vicente Pazos, um dos muitos hispano-americanos
refugiados no Rio de Janeiro por motivo das convulses
polticas das suas terras, o qual figurara na emancipao da
Audincia de Charcas, tomara parte nos sucessos
revolucionrios de Buenos Aires at o advento de Rodriguez e
Rivadvia em 1820, e em Montevidu se ligou de viva amizade
com Jorge de Avilez, a quem acompanhou ao Rio de Janeiro.
Melo Moraes, que evoca essa personagem, refere at que Jos
Bonifcio, erroneamente informado da paternidade da idia da
marcha sobre a Bahia, quando de fato o boliviano o que
achava razovel era o embarque para Portugal, pensou em
apoderar-se dele por uma cilada, do que o preveniu a tempo
Duarte da Ponte Ribeiro, depois conselheiro e ministro
plenipotencirio do Brasil.
O que parece positivo que, ao chegar a
Diviso Auxiliadora Praia Grande, pretendeu um
destacamento ir reforar a guarnio da fortaleza de Santa
Cruz, composta, afora os artilheiros, de soldados
portugueses de infantaria 11, tomando assim conta de uma
posio que lhe permitiria dominar a entrada do porto. Um
regimento de milcias de So Gonalo, que ia para a cidade,
prevenido da inteno do destacamento, precedeu-o, forando
sua prpria marcha, e entrou na fortaleza, donde expulsou os
soldados portugueses, erguendo depois disso a ponte
levadia.
Grande a lista das acusaes levantadas
contra Jorge de Avilez pelo sentimento hostil do momento,
mas, como escrevia a Gazeta do Rio de Janeiro a
propsito e todavia sem lhe aplicar o conto, difcil
apurar a verdade acerca de estrondosos fatos contemporneos,
quanto mais sobre sucessos passados de h muito. Acusam-no
de ter querido promover uma "bernarda" para evitar o 9 de
janeiro; de ter pensado em desfeitear o prncipe
apresentando-se no teatro em trajes caseiros no espetculo
de gala do mesmo dia 9 (146), de ter pretendido
cortar o abastecimento de gua da capital; de ter projetado
obrigar o senado fluminense voltar atrs com o Fico,
organizando-se um governo provisrio; de ter imaginado
uma lista de proscrio como as de Sula, abrangendo 50 e
tantos ricaos, entre eles o visconde do Rio Seco (depois
marqus de Jundia), cujos bens seriam confiscados como de
rebeldes s Cortes: isto fora o que j sabemos.
As recordaes romanas eram de rigor e
Sila vinha a tempo e hora. O artigo da Gazeta compara a
poltica das Cortes com a da velha Roma: "Acaso uma
provncia ou muitas provncias reunidas tero menos jus para
reclamarem em termos legais e decentes os seus direitos, que
julgam menosprezados ou desatendidos, do que tem cada
indivduo de per si? No uma verdade conhecida na histria
que a grandeza colossal que adquiriu o imprio romano, foi
fundada na astuciosa medida com que se dividiram e separaram
as partes componentes de diferentes Estados? Eles tiraram
(diz Montesquieu) as ligaes polticas e civis que havia
entre as quatro partes da Macednia, do mesmo modo com que
antigamente romperam a Unio das pequenas vilas dos latinos.
A Repblica de Achaia era formada por uma associao de
cidades livres; o senado decretou que cada cidade se
governasse dali por diante por suas prprias leis, sem
dependncia de uma autoridade comum... vista disto quem
autorizou a Jorge de Avilez para criminar os povos que,
meditando sobre estes fatos e no achando uma razo em que
fundem o novo mtodo de se governarem as provncias do
Brasil isoladamente, no o atribuam a pretenses de se
diminuir a sua ligao ntima, para lhes ficar Portugal
preponderante em fora moral e fsica, j que o no pode ser
em extenso e riqueza?".
Foi a poltica das Cortes que mais do que
qualquer outra causa criou no Brasil o sentimento nacional.
As provncias uniram-se na defesa dos seus interesses,
quando destes penetraram a indefectvel comunidade. A no
ser isso, as rivalidades ter-se-iam manifestado porventura
insanveis. A Bahia ainda no perdoara ao Rio de Janeiro a
mudana da sede do vice-reinado para a Baa de Guanabara,
quando ela continuava a ser a mais importante das capitanias
brasileiras. Relata Mrs. Graham que as provncias do norte
preferiam uma capital mais setentrional e que no sul havia
bastante gente que a queria ver removida para So Paulo,
pela maior segurana de uma cidade interior, alcandorada
sobre uma serra, e pela maior proximidade das minas, onde se
teimava em acreditar estar a principal riqueza do pas,
apesar da acentuada baixa da sua produo.
Uma capital, um centro, era contudo
essencial e afinal havia de vingar aquela mesma onde se
achasse instalada a autoridade para a qual tinham de
convergir num dado momento todos os esforos espalhados. Foi
o que a perspiccia brasileira no tardou muito mais em
compreender para opor intriga das Cortes. Na representao
de So Paulo aponta-se para o fato de querer a Assemblia
Constituinte privar o reino americano de um centro de unio
e de fora, e mesmo em Lisboa o deputado Pereira do Carmo
desde a sesso de 6 de agosto de 1821 taxara o plano de
dividir-se o Brasil em miserveis fragmentos, de "horrendo
perjrio poltico". Como poderia com efeito prover sua
defesa contra inimigos externos e desordens internas um pas
privado de um executivo local, cuja ao lograsse
estender-se sobre toda sua vastido?
A deputao paulista incumbida de
reforar o pedido de no ser dada aplicao aos decretos das
Cortes que refletiam aquela poltica insidiosa, s chegou ao
Rio de Janeiro a 17, tendo as guardas e patrulhas pela
estrada sido dobradas para prevenir qualquer surpresa dos
constitucionais portugueses, considerados adversrios desde
os incidentes do dia 12. Nada entretanto ocorreu do que se
pressagiava, e a prontido e oportunidade das providncias
adotadas por Dom Pedro antes de entrar em colaborao com
Jos Bonifcio, bastam para desmanchar a lenda, que alguns
tm querido forjar, de que o mrito dos atos acertados e da
orientao atilada do governo da regncia cabe todo e
exclusivamente ao ministro paulista.
Este estava ausente no episdio do
Fico e na transferncia da Diviso Auxiliadora, nem
sequer espiritualmente se achava presente como no Ipiranga,
quando a natural impetuosidade do prncipe concordou num
repente feliz com a deciso suprema e necessria que fora
demorada e avisadamente preparada. A verdade que os dois
se completavam e foram os agentes nas suas espiritualidades
diversas de uma s e harmnica idia nacional. O cientista
maduro fora amigo de Alfieri: somente o jovem romntico
mostrava por vezes mais impacincia, como que sob o
pressentimento de que havia de viver menos do que o velho.
A facilidade com que no campo de Santana
se congregou to avultado nmero de milicianos no curto
espao de uma noite, faz crer que o golpe contrrio estava
previsto e a reao preparada, no sendo desarrazoado pensar
que a Diviso Auxiliadora esteve com efeito ameaada de ser
desarmada quando existissem para tanto os elementos precisos
- do que entretanto Jorge de Avilez no faz claramente
meno antes dos sucessos de 9, 11 e 12 de janeiro no seu
relatrio s Cortes.
O embarque da guarnio portuguesa teve
lugar sob presso. No podia convir ao governo que a Diviso
Auxiliadora estivesse acampada to perto quando chegassem as
tropas destinadas a rend-la. A situao ficaria por
completo alterada. Cercaram-na por isso por terra, com
regimentos de milcia de infantaria e cavalaria e algumas
peas, e por mar, com uma parte da pequena esquadra que se
estava formando, diviso naval composta da fragata Unio
(nome mudado para Piranga), da corveta
Liberal, de uma barca a vapor, nica da sua espcie no
Brasil, e de trs canhoneiras (147).
Aprestados os transportes para a
travessia transatlntica, foi disposto o embarque para os
primeiros dias de fevereiro e marcada mesmo a data de 5, mas
os homens reclamaram tardana com sua habitual
impertinncia, j tendo aclamado para seu general Jorge de
Avilez, incompatvel com a regncia, pelo que a proclamao
do prncipe, de 1. de fevereiro, os tratava de "insensatos"
e os concitava a lanarem do seu seio "os homens
desacreditados na opinio pblica, e rebeldes s minhas
reais ordens".
A resposta de Dom Pedro foi um breve -
"Estou cansado de desaforos", e depois de condescender em
que houvesse maior nmero de transportes e em que levassem
os da Diviso no s seus atrasados como trs meses mais de
soldos adiantados, fixou-lhes o embarque para 7 e a partida
para 12. No tendo porm a ordem sido obedecida at o dia 9,
mandou o regente fundear em frente aos alojamentos da Ponta
da Armao a pequena esquadra comandada pelo chefe de
diviso Rodrigo de Lamare, disposta a bombardear os
recalcitrantes se at as oito horas da manh de 10 no
embarcassem. Na retaguarda formou um corpo de soldados
brasileiros.
Dom Pedro passou a noite na galeota, indo
de navio em navio verificar os aprestos. Sua atitude mostrou
aos rebeldes que a situao era sria e levou-os a partirem
sem mais ensaio algum de resistncia. Assim aprendeu a
vencer esse condottiere das liberdades
constitucionais. Nas cartas a Dom Joo VI d ele conta dos
incidentes desse embarque forado, desde a ameaa Diviso
de ficar sem po e sem gua merc do stio, at a declarao
aos comandantes que vieram procur-lo, de que faria fogo
sobre eles, uma vez esgotado o prazo. A 15 de fevereiro
singrou a frota composta dos navios Constituio, So
Jos, Americano, Trs Coraes, Despique, Duarte Pacheco,
Indstria e Verdadeiros Amigos (este ltimo
sardo), que foi acompanhada at alm do cabo de Santo
Agostinho pelas corvetas Maria da Gloria e
Liberal.
Na altura dos Abrolhos cruzou-se essa
frota de transportes com a esquadra de Francisco Maximiliano
de Sousa, a qual parara no Recife e trazia a seu bordo um
batalho de infantaria, um regimento provisrio, uma brigada
de artilharia e uma companhia de condutores, um total de
1.200 homens ao mando do coronel Antnio Joaquim Rosado.
Comunicaram frota e esquadra indo a bordo da nau capitnea o
brigadeiro Carretti. Alguns dos transportes, mais ronceiros
e provavelmente mal aparelhados, arribaram a Pernambuco,
entre eles o Trs Coraes, que conduzia Jorge de
Avilez e sua esposa. Esta ia doente, mas a junta do Recife
proibiu-lhe o desembarque, como proibiu o de todos os
oficiais e soldados. Enquanto os navios estiveram no Lamaro
foi um mdico de terra vrias vezes atend-la, no sem
dificuldade e at com risco pelas condies do ancoradouro.
Mareschal julgava por esse tempo que o
prncipe, procedendo como estava, se adiantara demais para
poder recuar. O dado estava lanado, restando saber se a
faco brasileira no se serviria dele apenas como
instrumento, enquanto o no pudesse dispensar. E com seu
horror por quanto se parecesse com manifestaes populares,
sobretudo de carter desordeiro, ajuntava o diplomata
austraco que era mister haver visto, como lhe acontecera no
dia 12, aquela mistura de gente de condies, estados e
cores diversas, vociferando e pregando a matana e a
pilhagem, para se fazer uma idia do que podia ainda vir a
suceder (148).
No se enganava entretanto Mareschal na
desconfiana que nutria quanto lealdade dinstica de
alguns dos corifeus do movimento, aos quais a soluo
monrquica afigurava-se incompleta e ilusria, e que do
prncipe s queriam fazer o seu agente de operao. A
independncia j se tornara grito de combate, mas as foras
tinham que combater unidas. Por curto espao de tempo,
conforme escrevia Dom Pedro (149), "desde que a
diviso auxiliadora saiu tudo ficou tranqilo, seguro, e
perfeitamente aderente a Portugal; mas sempre conservando em
si um grande rancor a essas Cortes, que tanto tem, segundo.
parece, buscado aterrar o Brasil, arrasar Portugal, e
entregar a nao providncia...". Pelo seguro tratava de
explicar que "a raiva s a essas facciosas Cortes, e no
ao sistema de Cortes deliberativas, que esse sistema nasce
com o homem que no tem alma de servil, e que aborrece o
despotismo".
CAPTULO X
JOS BONIFCIO NO MINISTRIO. O CONSELHO
DOS PROCURADORES
O eplogo do episdio da retirada da
Diviso Auxiliadora passou-se nas Cortes de Lisboa, s quais
foram apresentadas as respectivas comunicaes em
contradita: a alegao de Jorge de Avilez e oficiais
comandantes da Diviso e o ofcio do ministro da guerra do
reino do Brasil Joaquim de Oliveira lvares ao ministro da
Guerra do reino de Portugal Cndido Jos Xavier da Silva.
Os adversrios do partido europeu
facilmente descobriram na linguagem do general portugus
traos de insolncia, consubstanciados com o domnio
lusitano na opinio dos que o queriam abolir. Historiando os
acontecimentos do Rio, dizia Jorge de Avilez que "o nome de
constituio ou a idia de um governo representativo fora no
Brasil ouvido com terror por uns, com alegria por outros e
com admirao pela multido de castas, cuja civilizao est
na infncia"; que foi o exrcito portugus representado pela
Diviso Auxiliadora que promoveu a deposio do poder
arbitrrio alm-mar, prestando glorioso servio
civilizao; que em vez de procurarem melhorar suas
instituies civis e polticas para adquirirem "aquela
liberdade racional que o fruto da moral da virilidade e
instruo geral dos povos", os brasileiros pelo "estado
deficiente da educao e defeitos do governo interior", se
mostraram indiferentes aos bens de um governo
representativo, erigindo em dogma pregado por demagogos e
aventureiros a emancipao do Brasil, isto apesar da
separao das provncias, dos zelos da prosperidade alheia e
da degradao que trouxe a trasladao da corte para sua
antiga sede.
Simulando honrar e amar o prncipe real
posto que apontando para gestos seus "de humilhao e
envilecimento" para a Diviso, provenientes da sua
inexperincia, Jorge de Avilez lana na sua justificao
sobre os conselheiros do regente os baldes de enganadores e
corruptores, considerando precria a posio de um
governante "fiado em seus maiores inimigos" e sacudindo
sobre estes os "atos de dio e de desprezo" de que fora
vtima a mesma diviso. A parte histrica ou narrativa dos
sucessos, alis muito sumria, oferece fidelidade, conquanto
mencionando que os preparativos de luta foram todos da outra
parcialidade, fruto do pnico e da hipocrisia e praticados
de um modo "escandaloso e ignbil", o que ainda assim no
levou a Diviso Auxiliadora a represlias.
Oliveira lvares conta o ocorrido
naturalmente sua feio, responsabilizando a Diviso
Auxiliadora pela desordem que tinha querido implantar no
fazer prevalecer seus propsitos hostis ao que no fosse o
esprito de obedincia s Cortes, mas no entanto
atribuindo-lhe a iniciativa da transferncia para a Praia
Grande, aps "infrutferas e baldadas" medidas adotadas pelo
prncipe regente. A proposta foi mesmo formulada para
"poupar efuso de sangue", persistindo todavia o comando da
Diviso Auxiliadora em no manter uma atitude passiva, antes
protestando contra baixas que no seu entender s em Portugal
poderiam ser concedidas e contra a entrega ao regimento de
artilharia da corte dos tiros de bestas da artilharia
montada portuguesa, e iludindo mesmo as ordens recebidas.
A correspondncia diplomtica de
Mareschal reduz a histria completa do Fico - a minha
ficada, como lhe chamava Dom Pedro numa das suas cartas - s
suas propores humanas. Esse episdio no fornece tema para
um poema pico: apenas para uma crnica de sucessos
polticos triviais, posto que podendo ter e tendo tido
momentosas conseqncias. A verdade que portugueses e
brasileiros j se arreceavam uns dos outros e que se tornara
preciso que uns cedessem o lugar, sob pena de se converterem
em dependentes dos outros. No era tanto a questo do
nascimento que devia servir de regra para a diviso nas
categorias opostas: portugueses natos podiam vir a ser
brasileiros de corao, como o foram Vergueiro, Jos
Clemente Pereira, almirante Barroso e outros; mas no geral o
critrio da seleo havia que ser esse.
Como continuariam as tropas do reino
europeu de guarda pacfica a uma fidelidade que se ia
evaporando, sendo elas as primeiras a doer-se das investidas
dirigidas s Cortes em desafronta dos seus atos e a ameaar
os nacionais com represlias armadas, se estes continuassem
tais ataques? Se essas tropas cederam no caso da Diviso
Auxiliadora e solicitaram seu transporte para o outro lado
da baa, foi porque se capacitaram da sua inferioridade e,
como escrevia Mareschal, se intimidaram diante da
resistncia que se alava, fomentada pelo esprito
brasileiro, j infenso ao esprito lusitano ao ponto de
serem inevitveis os combates pelas ruas, se as duas
parcialidades continuassem com suas foras ombro a ombro.
Mareschal fala de uma "fora maior", que
ele considerava indispensvel como impulso para a ao de um
Bragana, o qual sem essa mola poderosa deixaria at de
valer-se de um ensejo favorvel aos seus planos. A "fora
maior" foi nesse caso para Dom Pedro o sentimento geral da
populao fluminense, e como lhe no faltava propriamente
coragem fsica, antes era e continuaria a ser muito dele no
recuar ante os perigos e at os afrontar, sua atitude
produziu o resultado feliz de um desenlace inesperadamente
ordeiro. O prncipe depe muito na sua correspondncia para
Lisboa contra o moral da Diviso Auxiliadora (150),
mas o fato que foi o temor da exaltao do elemento
nacional que aconselhou a retirada ao elemento militar mais
disciplinado, cujos chefes, Avilez e Carretti, obedeciam
antes na sua maneira de proceder, pelo que se diz, ao desejo
de obterem das Cortes, em recompensa, a promoo aos postos
mais elevados de hierarquia, do que ao amor pelos princpios
que as Cortes encarnavam.
O melhor recurso que a Dom Pedro se
antolhava na emergncia a que fora levado e o mais adequado
para habilit-lo a encarar o seguimento dessa crise, era
seguramente voltar-se para o partido brasileiro, e Jos
Bonifcio chegou muito a propsito de So Paulo para ser o
conselheiro abalizado e experimentado que o regente at a
em vo buscara. Dos ministros com quem estava governando, s
conservou Farinha, o nico a prestar-se a referendar a ordem
de transporte da tropa portuguesa para a Praia Grande,
negando-se os outros a assumir semelhante responsabilidade.
Caula foi substitudo na guerra pelo
ajudante-general Oliveira lvares, que nos servios que lhe
ficara devendo a causa nacional encontrara sua carta de
naturalizao; Caetano Pinto de Miranda Montenegro (futuro
marqus da Praia Grande), que se fizera brasileiro pela
estadia e cargos exercidos, e que era tido por todos como
homem de bem, apenas de ndole timorata, entrou para a
fazenda, e para Jos Bonifcio foi reservada a pasta mais
importante, do reino e dos negcios estrangeiros.
Do ponto de vista da nacionalidade, era o
que se pode chamar um ministrio de transio. Quanto
personalidade da sua principal figura, Porto Seguro,
desafeto dos Andradas, o primeiro a reconhecer que as
qualidades e at os defeitos de Jos Bonifcio o indicavam
nesse momento para o posto, ningum o excedendo em saber,
intrepidez e entusiasmo. Dom Pedro tanta confiana nele
aprendera a depositar que o escolheu para o cargo antes de
se avistar com ele. Quando Jos Bonifcio chegou como membro
da deputao incumbida de saudar o regente e de oferecer-lhe
as razes do proceder poltico da junta e do povo de So
Paulo, j estava nomeado ministro, e foi a princesa
Leopoldina quem em Santa Cruz deu a primeira notcia ao
interessado, persuadindo-o mesmo de aceitar o que parece ele
se achava disposto a recusar.
Segundo refere Melo Moraes, que diz t-lo
ouvido do conselheiro Drummond, entre a princesa Leopoldina
e Jos Bonifcio estabeleceu-se no primeiro encontro uma
profunda simpatia. Conversaram em alemo, o que devia ser
grato filha da casa da ustria, e a princesa, que gostava
muito de cincias naturais, ficou encantada com os vastos
conhecimentos do homem de estudo tanto quanto com a lcida
compreenso do homem de Estado.
A fama de Jos Bonifcio como estadista
tem contribudo para eclipsar sua fama como sbio, isto ,
seu nome hoje muito mais conhecido e reverenciado no
Brasil pela sua ntima associao com o movimento da
independncia do que pelos seus cometimentos de investigador
da natureza. No se deve contudo esquecer que foi ele um
homem de cincia de reputao europia, e como tal vive nas
pginas de rara beleza de estilo em que Latino Coelho traou
o perfil do seu predecessor como secretrio perptuo da Real
Academia das Cincias de Lisboa. Ali o vemos nos anfiteatros
de Paris e de Freiberg ouvindo os mais clebres professores
do tempo; companheiro de Alexandre de Humboldt e sagrado
mestre pelo bigrafo alemo do grande cosmgrafo; visitando
minas e fazendo descobertas mineralgicas de que Le Play
disse que mereciam esttuas; recebido no seio das mais
respeitveis associaes e dos mais afamados institutos;
consultado, disputado no estrangeiro, galardoado pelo
governo portugus com uma sucesso de mercs e de cargos.
Conta-se que nas horas passadas em Santa
Cruz a princesa real trouxe-lhe seus dois filhinhos, dizendo
a Jos Bonifcio: "Estes dois brasileiros so vossos
patrcios e peo que tenham por eles um amor paternal".
Seria recordando-se desta frase tocante que Jos Bonifcio
dizia mais tarde ao encarregado de negcios de Frana, conde
de Gestas, que no podia ver sem emoo os pequenos rebentos
da Casa de Bragana.
Foi a 26 de janeiro, ocupando o
ministrio havia j alguns dias, que Jos Bonifcio foi
recebido em audincia solene pelo regente, juntamente com
seus companheiros de deputao, o coronel Antnio Leite
Pereira da Gama Lobo e o marechal Jos Arouche de Toledo
Rendon, alm do vigrio Alexandre Gomes de Azevedo, pelo
bispo, cabido e clero.
A data fora intencionalmente escolhida,
dir-se-ia que com fina ironia. Era o primeiro aniversrio da
instalao das Cortes Constituintes de Lisboa, que dotaram
toda a nao portuguesa dos seus direitos civis e polticos.
A representao paulista, que aos portugueses tanto
irritara, no seria possvel se tais direitos no estivessem
exarados nas bases constitucionais, se a cada cidado no
assistisse, na frase de Dom Pedro (151), o
"direito de representar, que lhe provm do direito natural,
ajudado pelo direito pblico constitucional".
A deputao foi acompanhada da travessa
de So Francisco de Paula, onde se aposentara Jos
Bonifcio, at o pao da cidade pelos paulistas residentes
na capital, senado fluminense e magistrados, formando todos
um cortejo a p, precedido por um piquete de cavalaria,
caminhando entre os magotes de povo apinhado de encontro s
casas cujas janelas ostentavam cortinas de seda e colchas de
damasco. No pao a cerimnia foi de grande gala. Jos
Bonifcio aproveitou o ensejo para expurgar-se da acusao
de ferrabrs. Num estilo apaixonado, que outro no seria
seu, compendiou todas as razes histricas e polticas que
assistiam a causa do Brasil e tinham levado So Paulo a
formular aquela representao contra o que a cmara de So
Paulo chamava "plano de escravido, preferindo os paulistas
a morte escravido".
A orao de Jos Bonifcio pronunciada
nessa ocasio, o protesto de um patriota mais ainda do que
o atestado de um estadista, e como patriota foi que o
instinto popular o consagrou patriarca antes que a
investigao histrica lhe concedesse tal dignidade. As mais
difceis combinaes qumicas so pelo bom senso popular
reduzidas aos seus elementos essenciais.
Ao assumir Jos Bonifcio suas funes, a
situao permanecia bastante obscura. A famlia do prncipe
regente tinha voltado de Santa Cruz desde 19 de janeiro.
Durante a semana que ela ali passou, provvel que Dom
Pedro, cuja rapidez de movimentos era extraordinria e que
executou viagens a cavalo que ficaram clebres, como a do
regresso de Minas nesse mesmo ano - 80 lguas portuguesas ou
400 quilmetros em quatro dias e meio, chegando a So
Cristovo s sete da noite e indo assistir ao espetculo -
sabendo Dona Leopoldina desamparada em Santa Cruz, sem uma
dama nem um camarista a seu lado, tivesse ido visit-la,
qui buscar conselho, deliberar em todo caso longe do
bulcio da cidade, onde a tonalidade era sombria. Da
talvez, em terra e poca de rumores, o boato da sua
desero, depois malevolamente antecipado para a primeira
manh.
Outros boatos tinham corrido, como o de
querer a Diviso Auxiliadora transpor de novo a Bahia para
uma arremetida, alis prevista e vigiada por postos de
observao dos contrrios. Contribuiria essa ameaa para que
a narrao oficial do episdio do Fico aparecesse a
15 de janeiro numa verso emoliente, que no condiz com a
resposta rspida mandada dar pelo prncipe splica dos
comandantes sobre a questo das baixas (152). Da
publicao dos documentos sobre o Fico o que se deduz
que o pedido do senado da cmara foi formulado para obviar
separao imediata que, dada a efervescncia dos nimos,
resultaria da partida, e que a permanncia ilegal, como que
em desafio, do regente, se prolongaria somente at que,
melhor esclarecidas dos fatos e condies, as Cortes
adotassem uma resoluo diversa.
Quer no interesse dinstico, quer no
interesse popular, o rompimento no devia ser abrupto, nem
convinha mesmo que fosse brusco. A presena de Dom Pedro era
o nico obstculo proclamao de mais uma Repblica
americana, soluo que no era a patrocinada por Jos
Bonifcio. De resto, mal subiu ele ao poder, entraram a
desenhar-se, a comeo ligeiramente, logo depois
sensivelmente, as duas correntes que a breve trecho se
separariam, no porm sem que uma delas procurasse atrair a
outra e arrast-la na sua esteira.
Jos Bonifcio, merc das suas idias, no
geral politicamente conservadoras posto que socialmente
adiantadas, da sua residncia de trinta e nove anos no Velho
Mundo e das suas afinidades intelectuais com a Europa e
especialmente com Portugal, da cortesia de algumas das suas
produes acadmicas, merc mesmo da tendncia voluntariosa,
por vezes at arbitrria do seu temperamento, era tido como
um reacionrio - um corcunda - pelos que desejavam afast-lo
da administrao. Gonalves Ledo, Pereira Nbrega, o padre
Janurio, Domingos Alves Branco, o grupo que depressa se
desligaria dele e que ele prprio perseguiria, formavam uma
faco ultra-liberal, quase republicana, abertamente
republicana se possvel fosse evitar o imprio para
conseguir a independncia.
Dom Pedro no se iludia quanto ao nmero
dos adeptos de uma pura democracia: na sua carta de 23 de
janeiro diz at ser essa "a opinio que reina nos coraes
americanos, desde o norte at ao sul da Amrica". A
independncia, desta ou daquela forma, representava em todo
caso a mesma aspirao, franca quanto a maior parte,
dissimulada quanto ao menor nmero, para todos os
brasileiros, arrastando os que at ento duvidavam da sua
eficcia, isto , da sua realizao. O Reverbero
mudara de linguagem, despindo as roupagens cautelosas
(153), clamando que o Brasil entrara na idade viril,
no mais precisando de tutela, e que "a emancipao das
colnias seguia uma marcha natural e irresistvel que jamais
foras humanas podiam fazer retrogradar".
Respondendo que ficava, Dom Pedro como
que requereu sua carta de naturalizao. Ainda no estava
contudo disposto a desavir-se de vez com Portugal, por
ateno a seu pai em primeiro lugar, depois pelo receio de
uma manifestao adversa e muito provvel da Santa Aliana,
sobretudo pela preocupao dinstica de no abrir mo da sua
coroa tradicional para assegurar outra de novo cunho e de
novo estilo. Por isso nos papis oficiais empregavam-se as
reticncias e os circunlquios, nas proclamaes as
exportaes e as frases de efeito: a contemporizao era a
regra, mas os atos j traduziam despeito, mais do que isto,
animosidade. Os apelos tornavam-se de enfticos rancorosos,
quando se traduziam em gestos.
No dia do aniversrio de Dona Leopoldina,
a 22 de janeiro, Dom Pedro recusou admisso presena de
sua esposa comisso de oficiais portugueses que viera ao
beija-mo, o que no impediu que as foras postas em
observao na Praia Grande dessem as salvas regulamentares.
Em correspondncia com essa desateno do prncipe, ao
espetculo de gala, alis pouco concorrido, nenhuma senhora
portuguesa compareceu. Nem trepidou o regente em recorrer a
uma infrao das boas normas internacionais, equivalente a
uma interveno estrangeira nos negcios domsticos de uma
seo da monarquia, transgredindo a poltica geral da mesma.
Foi o caso, referido pelo encarregado de negcios da ustria
(154) que Dom Pedro pretendeu que a fragata de guerra
inglesa Aurora cooperasse na expulso da Diviso
Auxiliadora, aproximando-se da posio por esta ocupada na
Armao, de modo a intimid-la.
As autoridades britnicas, tanto o cnsul
como o comandante do navio, recusaram porm cometer tal
quebra de neutralidade em dissenes civis, limitando-se a
oferecer refgio famlia real a bordo no caso de perigo
pessoal. Jos Bonifcio aparece figurando na negociao, no
exerccio do seu cargo: as circunstncias tinham mesmo feito
dele uma espcie de primeiro ministro. Era o conselheiro por
excelncia do regente. O diplomata austraco no antevia
contudo acordo duradouro entre as duas personagens, dadas a
vivacidade e a imaginao que distinguiam Jos Bonifcio e
que cedo poderiam entrar em conflito com predicados
idnticos de Dom Pedro.
Para um homem de Estado sero tais
qualidades em circunstncias ordinrias mais negativas do
que positivas, constituindo o sangue frio e a circunspeco
dotes muito mais preciosos. Num momento decisivo porm qual
o que o Brasil atravessava, no era porventura desarrazoado
ter ao leme um timoneiro com certa ousadia e permitir
poltica ter tratos com a fantasia. Mareschal ponderava
mesmo que "numa terra onde o langor e o torpor so gerais,
uma superabundncia de vivacidade talvez necessria". Jos
Bonifcio era, na sua frase, o "homem do dia", o que dava o
impulso e o que emprestava uniformidade s vistas do
governo, que de individuais chegavam a dispersivas, quando
no a antagnicas, e mais visavam, dir-se-ia, diluir-se do
que se concentrar, transigir do que agir, anulando-se
qualquer aparncia de iniciativa pelas intrigas secretas que
se teciam entre os membros da administrao.
* * *
A histria brasileira tem mostrado a
legtima curiosidade de discriminar entre o esforo de Dom
Pedro e o de Jos Bonifcio no feito da independncia e
verificar qual foi mais direto, qual mais sincero e qual
mais eficiente. Um momento houve, felizmente o psicolgico,
em que foram sncronos - o do ministro obedecendo porm a
largas aspiraes, o do prncipe regente a interesses que
mudaram e entusiasm9s que perduraram.
Mareschal fala a Metternich num oficio
(155) da extrema volubilidade com que Jos Bonifcio
lhe exps seus juzos sobre os sucessos da sua ptria, mal
podendo o austraco transformar o monlogo em dilogo e
colocar um aparte naquele jorro de palavras do qual - se
exato o que Porto Seguro menciona como recordao de
meninice - os perdigotos saltariam a cada instante,
acompanhando a voz roufenha. Essa volubilidade no era
contudo mera tagarelice: era antes a manifestao de quem
pouco tinha com quem externar seus pensamentos amadurecidos
ao calor da reflexo.
O resumo que deles faz a relao do
diplomata estrangeiro d a medida da clara viso do homem
pblico. Seu senso poltico era em demasia arguto para no
distinguir entre a Europa afeita a tradies seculares e a
Amrica pejada de novos ideais, donde no seria exeqvel
excluir a liberdade. Mareschal de resto acreditava nos
sentimentos elevados de Jos Bonifcio como governante:
apenas lhe notava uma grande vaidade que era de ndole, de
famlia mesmo pode dizer-se, mas que repousava sobre a
conscincia do prprio e indiscutvel valor.
O encarregado do negcios da ustria no
estava longe do pensar que, se fosse militar em vez de ser
naturalista, Jos Bonifcio aspiraria ao papel de um
Bolvar, de um San Martin ou de um O'Higgins: assim
contentava-se com exercer sobre o seu soberano uma
influncia que, embora no tamanha que ofuscasse a
personalidade rgia, permitisse independncia consumar-se
numa forma regular o assumir um carter modelar. O conde dos
Arcos sonhara, ao que se diz, ser o Pombal de um outro Dom
Jos: Jos Bonifcio queria ser o que foi depois Cavour para
Victor Manuel.
possvel que Jos Bonifcio, como
aconteceu a Antnio Carlos, tivesse tido o que depois se
chamou o sarampo republicano, isto , que o seu esprito
tivesse atravessado no verdor dos anos uma crise democrtica
facilitada pelo estado revolucionrio da Europa. Antnio
Carlos sofreu um tratamento drstico: em Jos Bonifcio a
desenvoluo da molstia teria tido uma cura normal. Ambos
limparam-se da erupo. O que Jos Bonifcio viu fora de
Portugal, de 1790 a 1800, bastava para determinar uma
metamorfose. O seu fervor liberal cristalizou-se num
composto de sapincia e de firmeza de nimo.
Dom Pedro no podia alimentar sobre o
regime representativo a mesma opinio assentada e meditada
que tinha o seu ministro: o seu mrito reside em ter cedido
com inteligncia presso dos tempos, compreendendo que lhe
no era lcito proceder diversamente, e tambm embriagado
pela glria que da lhe havia de resultar. Sua alma tinha
laivos lricos, como a sua natureza possua uma forte dose
de sensualidade. Era um apaixonado da fama, tanto quanto
doido por mulheres.
Sua resposta ao encarregado de negcios
da ustria, que o prevenia contra a reunio de Cortes no
Brasil, foi cheia do bom senso que nunca lhe faltava apesar
de no raro ser destemperado: "Que quer V.? Sonham todos com
assemblias legislativas e fora ser passar por a: de
resto o antigo governo era to ruim que eu mesmo o no
quereria restabelecer... Se os brasileiros quisessem porm
repblica, teriam pensado num presidente e no num monarca"
(156).
Mareschal escandalizou-se um pouco com a
declarao subseqente do prncipe - que um erro acreditar
na preeminncia e maior aptido de uma classe de homens com
relao a outra. Era uma opinio desabusada, que chocava
suas idias sobre o papel histrico e poltico da nobreza
que, segundo ele, Dom Joo VI fizera mal em no criar no
Brasil, pois que muito menos haveria ento a temer de um
partido republicano. O diplomata teve contudo de reconhecer
na sua correspondncia que o prncipe seguia uma marcha
calculada e obedecia a um plano preconcebido e concordado
que o inibia, no conceito de Mareschal, de atirar-se
cegamente nas malhas em que o queria envolver a faco
avanada, antes o levaria por instinto a procurar firmar-se
no equilbrio das opinies.
* * *
A retirada da Diviso Auxiliadora podia
ainda atenuar-se aos olhos de Portugal com o nome de
represso de um pronunciamento; mas a proibio de
desembarque da expedio de Francisco Maximiliano de Sousa,
chegado ao Rio a 9 de maro para transportar o prncipe real
para Lisboa (157) com uma esquadra que era quase
a mesma que levara o rei, pois se compunha da nau Dom
Joo VI, fragata Real Carolina, charruas Conde
de Peniche, Orestes e Princesa Real, e
transportes Fenix e Sete de Maro, j era um
ato de plena e ostensiva rebeldia s Cortes e ao monarca que
em nome delas falava, embora por elas coato.
A defesa do Rio tinha ainda aumentado com
a chegada de 740 milicianos de So Paulo e 500 de Minas,
prometendo mais a junta daquela provncia; e como estas
coisas distncia costumam avolumar-se sempre mais, nas
Cortes Borges Carneiro comparava indignado a morosidade do
governo portugus com a prontido do governo brasileiro.
"Ali, dizia ele a assemblia, um s homem, Jos Bonifcio de
Andrada e Silva, com a energia do seu carter improvisa
foras de mar e terra, acha recursos em abundncia, e nos
pe pela porta fora com a maior sem cerimnia possvel. Ns
aqui gastamos o tempo em falar e no fazemos seno registrar
as desfeitas que vamos recebendo do Brasil".
As instrues que traziam as autoridades,
naval e militar, da esquadra eram de desembarcarem tropa em
Pernambuco, cuja situao se sabia confusa, ou seguirem logo
para o Rio, conforme fosse mais preciso e urgente. Gervsio
Pires Ferreira no queria mais tropa portuguesa em terra e,
fazendo o governador das armas da provncia, Jos Correia de
Melo, saltar desacompanhado e verificar as condies
reinantes, conseguiu persuadi-lo da robustez do sentimento
constitucional portugus de Pernambuco, embora tivesse
aquele militar recebido a bordo mesmo informaes
desfavorveis quanto ao sossego pblico. Melo Moraes, que d
disto conhecimento, ajunta que Correia de Melo era por
natureza pacfico e conciliador, diferente do que estivera
ocupando temporariamente o lugar, Jos Maria de Moura, o
qual provocara reao e acabara por fugir para bordo da
corveta Activa, no mais se encontrando no posto.
Drummond, que se achava ento no Recife
como emissrio do centro - onde as notcias chegadas eram
pssimas -, diz na sua autobiografia (158) que
alcanou por seu lado convencer Francisco Maximiliano de
Sousa de singrar para o sul com todas as foras que
transportava, "sem que seja preciso revelar como logrou tal
resultado". Melo Moraes refere que o processo de que
Drummond se serviu para evitar que, com o reforo trazido da
Europa, Pernambuco se convertesse numa outra Bahia, foi
persuadir o chefe da esquadra da urgncia para ele de
atingir o Rio de Janeiro antes da partida da Diviso
Auxiliadora, podendo assim prestar um incomparvel servio
s Cortes e salvando at o prncipe e seu gabinete, que a
guarnio brasileira mantinha em estado de coao.
O tom voluntariamente misterioso das
palavras de Drummond faz supor que o mvel que apressou
Francisco Maximiliano de Sousa no foi precisamente o
indicado por Melo Moraes, antes alguma transao esboada
pelo mesmo Drummond e confirmada pelo prncipe aps ler a
carta do missus dominici para Jos Bonifcio, da qual
era portador o chefe de diviso. O esprito de cordialidade
que prevaleceu desde o comeo faz crer nesta segunda
hiptese. No foi logo franqueada esquadra a entrada da
barra e mandaram-na fundear fora, escreve Dom Pedro ao pai
(159) que "por o povo estar mui desconfiado de tropa,
que no seja brasileira, e tem razo"; mas o prprio Melo
Moraes relata que os dois comandantes, naval e militar, da
expedio foram tratados com o maior agasalho logo que
subscreveram o termo de iseno e obedincia s ordens do
governo da regncia que lhes foi apresentado, sob pena de
no terem vveres nem refrescos para a volta.
Privados do apoio j distante da Diviso
Auxiliadora, dispondo de escassas simpatias na terra a no
ser da parte dos seus compatriotas, estes mesmos divididos
consoante seus interesses, os recm-chegados, campees das
Cortes e despachados como executores dos seus mandados,
anuram a tudo, pela razo alis excelente de que lhes no
era possvel irem contra as condies impostas. A frmula
por eles assinada destoa porm pelo seu incondicionalismo
absoluto (160) das peties irrequietas na sua
dignidade dos comandantes da Diviso Auxiliadora.
O prncipe ainda requisitou a fragata
Real Carolina, que crismou em Paraguassu, e
ofereceu s tropas transferncia para a guarnio do Rio
como voluntrios engajados por trs anos, do que se
aproveitaram (161) 894 oficiais inferiores e
soldados (162). Dom Pedro escreve "que no quis
que oficial algum passasse (afora os inferiores) a
fim de no corromperem os soldados". E explicava ao pai:
"Achei que estas passagens eram teis por dois princpios, o
primeiro porque fazia um bem ao Brasil recrutando soldados
feitos, que depois acabam lavradores; e o segundo, porque
mostrava que o dio no aos portugueses mas a todos e
quaisquer corpos arregimentados, que no sejam brasileiros,
a fim de nos colonizarem. Com este expediente se conseguiu
reforar os laos que nos uniam nossa me-ptria, a quem
dizemos que tem direito de nos admoestar, mas nunca de nos
maltratar, sob pena de passar de repente de me a quem
amamos, a maior e mais infernal inimiga".
A esquadra regressou a 23 de maro, mais
leve do que viera pois que mais de dois teros da expedio
transportada ficavam nos quartis do inimigo eventual. E
Francisco Maximiliano de Sousa ainda achava e prevenia as
Cortes de que pior poderia ter sido, no lhe sendo dado
seno render discrio toda a esquadra e tropa, sem
possibilidade de resistncia, se assim lhe tivesse sido
exigido como tendo a expedio "sido enviada com hostilidade
manifesta contra as incessantes reclamaes dos deputados
brasileiros" no Congresso (163). Cairu ajunta
como explicao que "realmente declara a guerra, no o
governo que publica o diploma de resoluo de hostilidade,
mas o que efetua o armamento hostil".
Foi uma viagem inglria essa do ponto de
vista blico, mas talvez proveitosa do ponto de vista
poltico. Dom Pedro assim pensava e suas palavras (164)
do a perceber, melhor que qualquer documento oficial
ou artigo de jornal, como se ia desprendendo o esprito
brasileiro e como se ia ajeitando sua posio: "Se
desembarcasse a tropa, imediatamente o Brasil se desunia de
Portugal, e a independncia se faria aparecer, bem contra
minha vontade, por ver a separao; mas, sem embargo disso,
contente por salvar aquela parte da nao a mim confiada, e
que est com todas as mais foras trabalhando em utilidade
da nao, honra e glria de quem a libertou pela elevao do
Brasil a reino, donde nunca descer. A obedincia dos
comandantes fez com que os laos que uniam o Brasil a
Portugal, que eram de fio de retrs podre, se reforassem
com amor cordial me-ptria, que to ingrata tem sido a um
filho de quem ela tem tirado as riquezas que possui".
No liam as Cortes pela mesma cartilha. O
chefe da expedio foi sujeito a processo e condenado pelo
conselho de guerra a deixar o servio: atendendo porm s
circunstncias atenuantes, foi sem discrepncia recomendado
demncia real.
* * *
Tem sido assaz discutida ou pelo menos
diversamente atribuda a prioridade na iniciativa da
convocao na capital brasileira, no ano de 1822, de um
conselho de procuradores das provncias, servindo de ncleo
representao nacional numa ocasio em que parecia qui
prematura a reunio de uma Constituinte, por no terem as
Cortes de Lisboa cumprido ainda integralmente sua misso, a
saber, elaborado a Constituio do Reino Unido que devia
dotar a "rica e vasta" seo americana da monarquia,
"exposta aos males da anarquia e da guerra civil", de um
centro de unio e de fora.
J era porm mais que tempo para um corpo
como esse, cujas atribuies comportariam aconselhar o
prncipe regente, a mandado deste, nos negcios mais
importantes e difceis; examinar os grandes projetos de
reforma submetidos sua apreciao geral; propor ao governo
as medidas e planos que considerasse mais urgentes e
vantajosos ao bem da Monarquia e prosperidade do Brasil;
zelar cada um dos seus membros pelas utilidades da sua
provncia respectiva. Era um verdadeiro conselho de Estado,
destinado a futuro instrumento de preparao e interpretao
de leis dentro do sistema constitucional.
Sua organizao obedecia ao seguinte
critrio: as provncias que tinham quatro deputados nas
Cortes escolhiam por meio dos eleitores de parquia reunidos
nas cabeas de comarca um procurador; as que tinham entre
quatro e oito deputados, dois procuradores, e as que tinham
mais de oito, trs procuradores. A apurao cabia cmara
municipal da capital da provncia, regulando-se pela maioria
de votos e sorteio em caso de empate; podendo contudo os
referidos procuradores gerais ser destitudos, por falta de
cumprimento das suas obrigaes, mediante petio de dois
teros das cmaras municipais em vereao geral e
extraordinria e procedendo-se em tal caso nomeao de
outros.
Sua convocao em sesso tinha lugar por
ordem do prncipe regente, ou por deliberao do prprio
conselho quando lhe parecesse que assim o exigia a urgncia
dos negcios pblicos. O prncipe presidia o conselho, havia
um vice-presidente eleito mensalmente dentre os seus membros
e os ministros tinham nele assento e voto. Os conselheiros
gozavam do tratamento de Excelncias, enquanto exercessem
seu mandato, e o conselho tinha precedncia nas funes
publicas sobre todas as outras corporaes do Estado, sendo
seus privilgios e honras iguais aos dos conselheiros de
Estado de Portugal.
A representao em favor da fundao
deste conselho partiu do senado da cmara fluminense,
apoiado pela junta de Minas, e o baro do Rio Branco, numa
das suas notas Histria da Independncia de Porto
Seguro, atribui mais circunstanciadamente a iniciativa ao
grupo avanado de Ledo, Janurio, Nbrega e Jos Clemente
Pereira, os quais resolveram no clube de que faziam parte
que o senado fluminense propusesse tal criao ao regente. O
alvitre foi aceito pela cmara em sesso publica de 8 de
fevereiro e aprovados os termos da representao a subir
augusta presena do prncipe juntamente com a de Minas
Gerais, para onde aqueles patriotas tinham escrito
solicitando apoio.
No se falou em escrever igualmente para
So Paulo pela razo muito simples que dai fora donde
realmente procedera a idia, conforme aponta Melo Moraes
ainda que sem dar suas razes. Na fala de Jos Bonifcio de
26 de janeiro, como orador da deputao da sua provncia,
fala de largo flego que j viera de certo redigida de So
Paulo, trata-se porm desta matria em termos inequvocos.
Dirigindo-se ao "Anjo tutelar" do Brasil
para que o fosse de "ambos os mundos", Jos Bonifcio,
ministro havia nove dias, dedica ao assunto sua perorao:
"digne-se pois V. A. Real declarar francamente face do
Universo...; que para reunir todas as provncias deste reino
em um centro comum de unio e de interesses recprocos,
convocar uma junta de procuradores gerais, ou
representantes, legalmente nomeados... para que nesta corte,
e perante V A. Real aconselhem e advoguem a causa das suas
respectivas provncias;... Deste modo, alm dos
representantes nas Cortes Gerais, que advoguem e defendam os
direitos da nao em geral, haver no Rio de Janeiro uma
deputao Braslica, que aconselhe e faa tomar aquelas
medidas urgentes e necessrias, a bem do Brasil, e de cada
uma de suas provncias, que no podem esperar por decises
longnquas e demoradas".
O decreto respectivo de 16 de fevereiro
e foi referendado pelo prprio Jos Bonifcio. No parece
portanto exato o que diz Porto Seguro, a saber, que a idia
no agradou muito ao ministrio por no ser de sua
iniciativa. Jos Bonifcio no desprezava, sobretudo nessa
ocasio, coisa alguma que fosse de natureza a favorecer
laos que convinha apertar e que andavam reconhecidamente
frouxos; por isso precisamente nas provncias em geral no
despertou entusiasmo, antes provocou oposio a idia.
Na capital gazetas houve tambm que a
atacaram se bem que menos sensivelmente, prestando-se ela
com efeito a crticas. Para os conservadores instituio
semelhante era uma excrescncia intil, seno perturbadora
da simplicidade do maquinismo governamental. Os liberais de
preferncia a consideravam andina no seu papel consultivo,
parecendo primeira vista tratar-se at da reproduo de um
projeto dos ministros de Dom Joo VI, o que bastaria alis
para tornar difcil concili-la com os projetos da gente de
opinies avanadas que a preconizava.
Foi na verdade o Reverbero que,
perfilhando-a, ps a idia na circulao jornalstica, antes
mesmo da partida da Diviso Auxiliadora, com ardor tal que
mais se diria tratar-se de um produto do prprio seio, no
querendo visivelmente Ledo e Janurio deixar exclusivamente
nas mos do prncipe e do seu absorvente ministro a
organizao do pas, mesmo sobre a base autonmica que
precederia a independente. O que para So Paulo e seus
espritos dirigentes constitua um processo de coeso,
representava para eles um meio de predomnio, e tanto assim
era que tendo sido adiadas as eleies dos procuradores,
marcadas para 18 de abril, por motivo da oposio levantada
na capital contra o ministrio "paulista", o qual respondeu
com vigor provocao, o senado fluminense foi alm na sua
pretenso de organizao constitucional e no seu af por um
regime representativo nacional.
Jos Bonifcio tampouco dispensava o
regime representativo para dentro dele colocar as provncias
dispersas e encaminh-las juntas para uma existncia
distinta da portuguesa, para o que era no seu conceito
primordial estabelecer sobre elas uma autoridade nica e
respeitada. Foi este fortalecimento do poder executivo
central brasileiro o que Jos Bonifcio principalmente
enxergou no conselho de Estado que Mareschal tinha todavia
razo em qualificar de criao amorfa porque, para ser um
cenculo de luzes imparcialmente congregado com o fim de
ilustrar e esclarecer o prncipe regente, trazia ele no bojo
os defeitos inerentes ao seu modo de recrutamento por meio
do voto popular com a renovao do mandato. Sua origem
eleitoral dava-lhe assim, pelo apelo que se tornava preciso
exercer sobre o sufrgio, acompanhado necessariamente de
subterfgios polticos, um cunho considerado pouco
compatvel com a sua estabilidade e conseguintemente com a
gravidade, a proficincia e o prestgio que caracterizavam o
conselho de Estado do Imprio.
Essa origem eleitoral equivalia a um
pecado original para o diplomata austraco, aos olhos de
quem o conselho dos procuradores no passava no fundo de uma
armadilha montada pelo governo para inspirar confiana e
alcanar popularidade, graas a tal arremedo de participao
da nao na responsabilidade dos seus destinos. Nestes
tinham que colaborar o trono, que figurava de sol em torno
do qual giravam os planetas, e os prprios planetas. O
Brasil j nascia para a vida independente como uma federao
que a coroa salvava da dissoluo. Repetia-se na Amrica do
Sul o que pouco antes se dera na do Norte com os Estados
Unidos: a nao que se organizava tinha uma dupla e mesmo
tripla ordem de interesses, como o esboara Jos Bonifcio
nas instrues expedidas aos deputados paulistas s Cortes.
Harmonizar esses interesses variados, que num dado momento
podiam entrar em conflito com resultados fatais, era a
tarefa construtora que se apresentava aos fundadores da nova
nacionalidade.
Para o prncipe pessoalmente fora o
Fico um desafogo contra influncias que tendiam a pe-lo
e ao mesmo tempo uma lio prtica de governo, de que as
Cortes queriam que ele fosse aprender, viajando, a teoria.
Sua energia sobreps-se espontaneamente aos obstculos
erguidos contra a sua ao, mostrando que esta tinha que ser
direta e resoluta para ser eficaz e fecunda.
CAPTULO XI
O REFLEXO DO "FICO" EM LISBOA E A
TENTATIVA DE SUPREMACIA COMERCIAL
O primeiro efeito sobre as Cortes da
agitao provocada no Rio de Janeiro, So Paulo e Minas
Gerais pelo conhecimento do teor dos decretos 124 e 125, foi
de conciliao. O deputado portugus Pereira do Carmo props
e foi adotada a criao de uma comisso permanente, composta
de 6 portugueses e 6 brasileiros, qual fosse confiado o
estudo das questes relativas ao reino americano e dos meios
de resolv-las. Era simplesmente e avisadamente o meio de
remover a matria poltica candente da atmosfera carregada
da sala das sesses para a atmosfera mais serena de uma sala
de comisso.
Pareciam muitos compreender a gravidade
da situao: Borges Carneiro no trepidou em exclamar que a
corda no se deve apertar at que estale, e que entretanto
outro no havia sido o processo seguido at ento pelas
Cortes. A comisso ficou organizada em maro com os
portugueses Pereira do Carmo, Trigoso, Guerreiro, Borges
Carneiro, Moura e Annes de Carvalho e os brasileiros Antnio
Carlos (So Paulo), Ledo (Rio de Janeiro), Pinto da Frana
(Bahia), Almeida e Castro (Pernambuco), Belford (Maranho) e
Grangeiro (Alagoas). As disposies dos trs primeiros
membros portugueses, pelo menos, eram notoriamente
simpticas ao Brasil.
Do amplo inqurito e cotejo a que se
entregou a comisso, resultou uma srie de transaes da
natureza das que no Congresso Americano se denominam
compromises, foram continuas para impedir que a questo
servil originasse uma guerra de separao e do
freqentemente boa sada s dificuldades supervenientes das
questes embrulhadas. Obtiveram os brasileiros a
subordinao dos comandos de armas e mesas de fazenda s
juntas provinciais; o estabelecimento no reino americano de
uma ou duas delegaes executivas exercendo a regncia em
nome do rei e exercendo tambm as prerrogativas da coroa,
permanecendo contudo Dom Pedro no seu posto at se organizar
definitivamente a Monarquia e ficando - este era o ponto
ganho pelos portugueses - as tropas l estacionadas
dependentes do alvedrio do governo de Lisboa. Outro ganho
importante dos brasileiros era a regulao da condio
precria do Banco do Brasil, sendo considerados divida
pblica os adiantamentos feitos ao tesouro por esse
estabelecimento e providenciando-se para seu pagamento e
liquidao.
Ainda o relatrio da comisso no fora
porm apresentado, quando chegou ao conhecimento das Cortes
a representao da provncia de So Paulo aconselhando em
termos acrimoniosos a repulsa de uma poltica que a sua
junta antevia fatal ao Imprio. A linguagem empregada que
era julgada ofensiva e no foi alis defendida pelos
deputados brasileiros, embora contrrios idia de serem
processados os signatrios do documento, a saber, o governo
provisrio de So Paulo. O fundo, a substncia do ofcio no
oferecia em si agravo.
A fragmentao administrativa do Brasil
"cortado em retalhos" no intuito de assegurar a autoridade
suprema e exclusiva do governo de Lisboa; a abolio dos
tribunais superiores; a adoo de legislao americana sem a
participao nos debates da respectiva representao, para
este fim eleita e tendo para o mesmo fim empreendido uma
longa travessia que seria dispensvel se bastasse o
juramento prvio no Brasil, quando em contraste com este
havia o artigo 21. das Bases; a privao de um centro de
ao executiva no reino ultramarino - eram outros tantos
tpicos em torno dos quais tinha girado a discusso nas
Cortes.
Podia condensar-se o antagonismo nos
termos seguintes: Se as provncias brasileiras eram de fato
e de direito provncias de Portugal, aos deputados
portugueses era lcito assumirem sua funo geral e
legislarem por maioria para a seo que previamente se
conformara com o resultado dos trabalhos legislativos. Se os
brasileiros se colocavam porm no terreno da celebrao de
um pacto constitucional entre duas sees de um Estado e
entravam no ajuste como elementos autnomos e no
dependentes, cabia-lhes necessariamente voz ativa nas
negociaes e no lhes assentava receberem submissos o que
lhes fosse arbitrado como favores polticos e civis.
Em Portugal ressoou o manifesto paulista
como o primeiro toque de rebate dando aviso da catstrofe
que se aproximava. Quiseram alguns duvidar de que fosse ele
a expresso genuna do sentir pblico; outros, mais sagazes
na interpretao e mais imprudentes no tratamento, falavam
em sedio: a maioria compreendia que a ocasio era mais de
acomodao do que de punio e reputava de mais vantagem
para o bem pblico fechar ento os olhos insolncia para
s os reabrir quando ela pudesse ser rebatida, uma vez
consolidada a unio.
No foi este o alvitre dos intitulados
corifeus da regenerao. Apelaram para a desafronta da
dignidade nacional ultrajada, para todas as expresses que
sempre ferem e exaltam a imaginao popular. Os "treze
infames de So Paulo", exclamou o orador Moura, como se se
tratasse de criminosos da pior espcie. Manuel Fernandes
Toms, o responsvel pela perturbao como diz Gomes de
Carvalho, foi tambm o que maior perspiccia mostrou na
emergncia, pretendendo transferir o conflito para o campo
econmico, a ver se encontrava nele meio menos irritante
ainda que mais substancial de firmar o interesse da antiga
metrpole, sem protesto da ex-colnia.
A supremacia poltica poderia em rigor
ser imolada comercial, mesmo porque era esta em suma a que
se perseguia atravs dos princpios e das frmulas. Essa
supremacia adviria naturalmente a Portugal com o ter o
mercado brasileiro como prolongamento ultramarino do
portugus, enxotando-se a indstria estrangeira por meio da
aplicao de um protecionismo que s aproveitava no entanto
a Portugal, porque no Brasil seu efeito nico era encarecer
a vida e restringir a escolha dos artigos de consumo.
Se o Brasil aceitasse o sacrifcio,
Portugal estava salvo porque lhe voltaria automaticamente a
prosperidade financeira; se rejeitasse, era prefervel
recorrer-se logo ao desquite, porquanto a vida em comum
nunca mais seria agradvel nem proveitosa. O mal est
contudo em que se no chegou a semelhante resultado sem
afrontar o volume dos sentimentos opostos e suportar o ardor
dos despeitos insofridos. Tantos economistas, agricultores e
comerciantes reunidos, gente de teoria e gente de prtica,
esqueceram o que ao prncipe acudia nas simples e sensatas
palavras da sua carta de 19 de junho - "que os Estados
independentes, a saber, os que de nada carecem, como o
Brasil, nunca so os que se unem aos necessitados e
dependentes; Portugal hoje em dia um Estado de quarta
ordem, e necessitado, por conseqncia dependente; o Brasil
de primeira e independente", pelo que a Portugal competia
procurar a unio e ciment-la.
Como ousava a democracia constitucional
arriscar o sofrer uma mutilao territorial, poltica e
econmica dessa magnitude, que a monarquia absoluta tudo
prevenira para que no ocorresse? Os deputados brasileiros
entretanto cobravam coragem e os menos atrevidos deles
articulavam recriminaes. O prudente Arajo Lima
aconselhava as Cortes a que no pensassem em castigos para a
junta paulista porque se sairiam mal da aventura, no
conseguindo dominar qualquer exploso revolucionria que se
desse por esse motivo.
As sesses de 22 e 23 de maro de 1822
assinalaram um torneio apaixonado e no entanto ainda
circunspecto, o que no tanto de surpreender porque a
atmosfera poltica s entrou a ser borrascosa com as
notcias chegadas do Rio sobre os episdios do Fico e
da retirada da Diviso Auxiliadora. O ms de abril foi o dos
combates azedos, j quase odientos, quando por um lado
Fernandes Toms comeou a querer levar por diante o seu
plano de reabsoro econmica do Brasil e por outro lado os
deputados brasileiros entraram a ser alvo dos doestos dos
seus colegas e dos apupos das galerias, a que dava francas
ensanchas a indulgncia da mesa, melhor respeitadora das ms
maneiras demaggicas que do justo ressentimento dos
coloniais, que no mais o queriam ser.
O desabrimento chegou ao ponto de serem
tratados de "depravados e ladres" os partidrios de Dom
Pedro, entre os quais se incluam o patriarca e seus colegas
de gabinete. Pronunciou tais palavras Borges Carneiro, que
se deixava por vezes arrastar a tais excessos pela febre
oratria, esquecido de que poucos dias antes sugerira para
com o Brasil um proceder mais generoso, sem o qual se
desenvolveria "naqueles povos um esprito de reao, e
chegaremos aos termos em que est a Espanha a respeito da
sua Amrica".
Antnio Carlos levantou o insulto,
castigando a calnia e desafiando que pudesse esta
concretizar-se e comprovar o menor deslize da reconhecida
probidade daqueles cidados conspcuos. O Andrada
manifestou-se resolvido a renunciar o mandato vista dos
apodos populares e sobretudo da impassibilidade dos seus
colegas europeus, a qual constitua um apoio indireta e
aleivosamente prestado insubordinao das tribunas. Outros
representantes brasileiros deixaram at de freqentar o
Congresso, solicitando para isto autorizao, por no
sentirem suficientemente protegida sua liberdade de palavra.
Queixavam-se tambm alguns de serem moralmente forados a
intervir nos debates, que se iam convertendo em retaliaes,
carregando desse modo achas para a fogueira.
Os remoques como que esvoaavam em redor
dos oradores de alm-mar, sados dos lbios dos seus irmos
portugueses e dos seus entusiastas. A permisso de no
comparecimento s sesses, solicitada por vrios, e a
renncia de Antnio Carlos foram ambas negadas, protestando
Feij, que pela primeira vez falava (165) porque
desde sua chegada avaliara perfeitamente a situao como um
beco sem sada, contra a acusao de medo que lhes era
vibrada, advertindo com a autoridade de um moralista
impregnado de estoicismo e a rudez de um patriota ignorante
dos requebros palacianos que "o valor e a coragem consistem
em vencer o temor quando convm encarar o perigo".
O futuro regente e consolidador do Brasil
desunido pelas tendncias federalistas apresentou por essa
ocasio um projeto de lei de sabor original para o gosto de
uma assemblia que s tratava muito empiricamente de soldar
e desoldar duas metades. Consistia tal projeto em serem
reconhecidas independentes, como de fato o eram merc dos
movimentos revolucionrios a que tinham obedecido suas
respectivas organizaes provisrias, as capitanias
brasileiras, ligando-se entre si por fora do pacto
constitucional, uma vez elaborado, apenas aquelas que neste
sentido se pronunciassem por maioria de votos. Era o
princpio da self-determination que fizera um sculo
antes sua apario.
* * *
A leitura do Dirio das Cortes Gerais
da Nao Portuguesa nos anos de 1821 e 1822 fornece a
histria mais documentada, mais interessante e mais lgica
da independncia brasileira. A evoluo rpida, mas est
perfeitamente desenhada, que vai do esprito de unio
voluntria e consciente ao esprito de excluso radical e
refletida. Deputados mesmo que chegavam cheios de
disposies benvolas, inclinados boa harmonia entre os
dois reinos, achavam-se aps alguns meses a presa de amargo
pessimismo, no enxergando outra soluo seno a dos campos
rivais. Ningum, por exemplo, poderia haver preconizado mais
sinceramente o dualismo do que Vilela Barbosa, a ponto de o
incriminarem seus inimigos como um portugus renitente:
entretanto a 18 de abril de 1822 era a sua uma das vozes
mais enrgicas no captulo das recriminaes contra os
atropelos de que estavam sendo vtimas os deputados
brasileiros.
A participao da representao americana
nesses debates memorveis no s honra sobremaneira a
cultura colonial seu esprito clssico e sua educao
jurdica, como o seu tino poltico, sua aptido organizadora
e sua capacidade construtora. Ao mesmo tempo que em Portugal
se ia comprometendo a solidez do edifcio nacional e o
prprio futuro da monarquia, melhor dito da nao, com a
ciznia introduzida entre os elementos chamados a pactuar e
unir-se, no Brasil vingava a concepo constitucional entre
os que se dispunham a modelar a nova nacionalidade.
O sentimento nacional brasileiro era um
sentimento em via de formao, que se estava manifestando no
Brasil do mesmo modo que nas colnias espanholas. Se viesse
a subsistir o antigo vnculo entre metrpole e colnias, que
na Amrica Portuguesa j fora substitudo pelo lao ligando
duas sees iguais pelos direitos e regalias, conquanto
separadas pela imensidade do oceano, seria com a condio de
coexistir com a soberania popular, regendo cada colnia ou
reino seus prprios destinos e constituindo a liberdade
civil a base de uma constituio nacional.
Vimos que Martinez de Rosas, desde que em
1811 se abrira a assemblia representativa chilena,
estabelecera a distino entre a ptria europia,
representada pelo Rei, e a ptria americana, representada
pelo congresso. Egaa fora mesmo mais longe e j cogitava de
uma confederao dos pases hispano-americanos, para a qual
redigira um projeto em 254 artigos, dando bases sociais
construo poltica e combinando os princpios
revolucionrios antigos e modernos com as prticas e mesmo
as utopias democrticas (166).
Era a aplicao j internacional do
federalismo, que no Brasil constituiu tambm ideal dos mais
avanados entre os partidrios da independncia, e que na
sua forma negativa e dissolvente foi evitado pela
concentrao monrquica. O federalismo era avesso simples
autonomia do bloco ou dos fragmentos deste bloco com relao
me-ptria, porquanto representava uma unio de soberanias
prprias e distintas.
Em fevereiro de 1822 o Sul do Brasil j
quase formava um bloco poltico, havendo verdadeiro
entusiasmo pela pessoa do prncipe no Rio de Janeiro e em
So Paulo, anuncia tcita em Santa Catarina e So Pedro do
Sul e concordncia pode dizer-se ativa em Minas Gerais, pois
que, no obstante certa discrepncia domstica, se revelava
at pela remessa de foras para a capital brasileira. Minas
constitua o fiel da balana e sua viva oposio poltica
interesseira das Cortes a faria, mesmo sem querer, pender
para o lado nacional. A prpria Cisplatina aderira a causa
brasileira, continuando a guarnio de Montevidu, com seus
elevados soldos, a velar contra as tentativas de
incorporao da Banda Oriental nas Provncias Unidas do
Prata.
Pelas singularidades de opinio e pelas
distncias enormes, com tardias e mui escassas comunicaes
entre os ncleos de povoamento e de cultura, bem como pelo
desconhecimento em que estes centros uns dos outros se
conservavam, a perspectiva no podia deixar de ser de uma
associao de esforos federativos. Desde o primeiro contato
de vistas entre Dom Pedro e Jos Bonifcio se pensou alis
em conceder s administraes provinciais uma ampla esfera
de ao, confinando as lutas partidrias locais ao seu
terreno peculiar e mais acanhado cenrio e facultando a
operao das largas correntes de opinio.
Antes mesmo do Fico, portanto
antes de se terem avistado prncipe e ministro, numa das
cartas da princesa Leopoldina ao major Schffer (167)
escrita na vspera daquele episdio, se diz que os ministros
da regncia iam ser substitudos por filhos do pas que
fossem capazes, e que o governo seria administrado de um
modo anlogo ao dos Estados Unidos da Amrica do Norte.
Frei Staaten (Estados Livres) reza a carta, assim
significando que se pensava numa confederao de Estados
autnomos: nem podia o otimismo oficial ir ento alm desta
concepo adiantadssima, a que o Brasil s chegou em 1889
ainda sem o necessrio preparo.
Mareschal confirmava pouco depois
(168) estas palavras, ao dizer que a tendncia se
tornava cada dia mais americana. No s se falava
abertamente em Cortes no Brasil; "Monsieur d'Andrada
vai mesmo mais longe - escrevia o austraco - e ouvi-o ontem
na corte, perante vinte pessoas, todas estrangeiras, dizer
que era mister a grande aliana ou federao americana, com
plena liberdade de comrcio; que se a Europa se recusasse a
admitir isso, fechar-se-iam os portos e adotar-se-ia o
sistema da China, e que se quisesse atac-los, as matas e
montanhas lhes serviriam de fortalezas, perdendo os outros
mais do que eles, numa guerra martima. O tempo e o espao
eram as melhores armas do governo, como eram as da
natureza".
Blaine no poderia imaginar um
pan-americanismo mais completo. Ajuntava Mareschal que o
programa de Jos Bonifcio comportava melhoramentos
materiais, a saber, a construo de estradas e canais, uma
administrao imparcial da justia, a abolio do trfico
negreiro, boas escolas e o melhoramento da raa por meio da
ginstica e dos jogos atlticos para formao fsica da
mocidade. o que se pode chamar o programa de um homem
viajado, que ele saberia expor com os dons ditos e as
risadas com que, segundo Drummond, costumava animar sua
conversao, sendo que as risadas tinham, no seu dizer, por
fim sacudirem o diafragma.
A orientao de um governo assim em
processo de organizao mal poderia ser definida com
preciso: o pendor era porm para favorecer as idias que os
absolutistas tratavam de subversivas, autorizando para isto
uma franca liberdade de imprensa com que muito padecia o
crdito da Santa Aliana, porque eram reeditadas nas gazetas
do Rio as mais virulentas catilinrias contra ela dirigidas
pelas folhas portuguesas e espanholas, e contra a qual j
protestava o senado fluminense, reclamando o juzo de
jurados para seus excessos e delitos.
A meio disso a corte tinha-se ido
despindo de rigores aristocrticos, assumindo os
guarda-roupas as funes dos camaristas que se tinham ido
ausentando para Lisboa, porque evidente que a velha
nobreza da metrpole estava no seu papel, cultivando e
honrando o antigo regime e tomando partido contra quanto
favorecesse a separao. Neste ponto concordavam a burguesia
e a fidalguia do reino europeu.
* * *
Um dos corolrios da proposta do padre
Feij em Lisboa era a proibio s Cortes de despacharem
tropas para o reino americano sem requerimento das juntas
locais, competindo a estas o direito de removerem as foras
portuguesas cuja presena se lhes afigurasse prejudicial e
carecendo da sua sano, para vigorarem dentro dos limites
das suas jurisdies, as resolues do governo de Lisboa.
Era praticamente a independncia, uma independncia muito
embora de partes desligadas, a que assim se aventava, mas
estava de acordo com a vontade das Cortes, que tinham
reconhecido as provncias medida que estas se iam
emancipando do antigo regime e adotando o constitucionalismo
e que as tinham animado a assim viverem separadamente.
Entendia Feij que desse modo, sem a
ameaa de um Brasil unido que roubava o sono ao Congresso, a
marcha dos negcios pblicos poderia prosseguir sem os
atritos que estava levantando. A situao de alm-mar
apavorava tanto o Congresso, onde nesse ms de abril de 1822
aumentou a representao americana com a chegada dos
deputados de mais trs provncias (169), que foi
mandado vedar pelo governo de Lisboa ao cnsul portugus em
Londres o visar manifestos de cargas de armas e munies
para o Brasil, ao que Vergueiro chamava com esprito um
comeo de bloqueio. Frustrou-se alis essa ordem, dada a 7
de maro, com a segurana que, segundo nos informa Cairu, o
secretrio de Estado dos negcios estrangeiros no Rio de
Janeiro deu oficialmente a 14 de junho ao cnsul britnico,
encarregado de negcios, "de que as embarcaes inglesas que
chegassem aos portos do Brasil seriam admitidas nas
alfndegas independente de despacho do consulado portugus
em Londres e no seriam apreendidos os petrechos militares e
navais que nelas se transportassem pela simples falta de
licena do cnsul do governo de Portugal".
Efeito porventura de semelhante receio,
as Cortes acabaram por aprovar por uma grande maioria, de 92
votos contra 22, a moo apresentada pela comisso
luso-brasileira para ser adiado o parecer concernente s
relaes entre os dois reinos para quando se recebessem
notcias mais circunstanciadas do Brasil e melhor se
conhecesse o estado de alma da populao em geral. A palavra
moderada de Pereira do Carmo prevaleceu sobre as
objurgatrias frementes de Moura, sobre o que Cairu
qualifica de supra summum da malignidade dos
espritos infernais, de Pessanha, confiando nos pretos como
"os instrumentos da vingana da f ultrajada", e sobre o
despeito explosivo de Fernandes Toms vaticinando que o
Brasil se separaria, restando apenas saber quando, e
exclamando entre chamados ordem: "A minha opinio
que o Brasil desde j se desligue e que fiquemos ss; venho
a dizer que, se o Brasil se quiser separar, que o faa;
ningum o pode embaraar, pois que um direito, que tem
todo o povo de escolher a forma de governo que melhor lhe
convier; mas que se os seus povos se querem ligar a
Portugal, se sujeitem s deliberaes que o Congresso
determinar; e se no quiserem estar por isso, que se
desliguem e tirem da o sentido".
Os atritos que surgiam, mesmo
inopinadamente, eram de toda ordem: quando no polticos,
econmicos. A discusso sobre as relaes comerciais entre
os dois reinos acabou por provar uma vez mais e farta que
no havia terreno verdadeiramente slido para um acordo
estvel, menos ainda do que qualquer outro o mercantil. A
industria portuguesa no tinha elementos para afastar a
concorrncia da inglesa, francesa ou americana a que j se
habituara, o gosto ultramarino, nem a sua marinha mercante
contava unidades bastantes para suprir o trfico entre os
dois continentes. Entretanto o projeto das Cortes de 15 de
maro pretendia, pelo fato de serem portuguesas as
provncias do Brasil, considerar de cabotagem esse trfico
transatlntico, a fim de dar aos navios do reino europeu o
exclusivo do transporte. Uma navegao de monoplio oferece
sempre lucros fabulosos mas custa de fretes onerosos que
pesam sobre agricultores e consumidores, pelo menos
dificultando a vida pelos preos caros, quando no
estiolando a produo sob os encargos.
O que bem mostra a sinceridade que at
certo tempo reinou nos desejos de unio entre as duas sees
da Monarquia, os quais naturalmente assim prosseguiam em
Lisboa j quando alm-mar iam mudando inteiramente de
aspecto e de inteno, que a deputao brasileira se fora
conformando com a regulao das relaes mercantis pela
orientao lusitana e achava mesmo razovel que Portugal
promovesse seus interesses e proventos; e se o no achava,
resignava-se em todo o caso inferioridade do seu fado, que
tais prejuzos lhe acarretava.
Havia tambm que levar em conta a
diferena entre o tamanho e a populao dos dois reinos:
assim, ao passo que Portugal apenas consumia 8% do acar
brasileiro (16.000 caixas em 200.000), o Brasil absorvia
metade da exportao dos vinhos portugueses (170).
O regime visado pela maioria portuguesa
das Cortes era de absoluto monoplio, no se permitindo
concorrncia estrangeira romper a proteo aduaneira nem
mesmo para suprir as deficincias da produo nacional. Ora
os direitos cobrados nas alfndegas brasileiras forneciam o
melhor da receita do reino americano, acrescendo que os
impostos indiretos so sempre os que melhor se recebem e
menos protestos levantam. Neste caso seria preciso esperar
pela expirao do leonino tratado de 1810 com a Gr-Bretanha
para que os artigos portugueses pudessem entrar num regime
de favor que ao mesmo tempo no desfalcasse as rendas
aduaneiras. Era justo que a produo portuguesa pagasse
taxas menores de entrada no Brasil, mas no o era que tal
tratamento do mais favorecido se estendesse a outros pases
ou que Portugal se locupletasse com os ganhos da pauta
aduaneira.
No intuito de restituir marinha
nacional o seu antigo papel de distribuidora dos gneros
coloniais, a comisso das Cortes imps um direito
proporcional de 1% para a exportao ultramarina feita em
navios portugueses e de 6% para a que se utilizasse dos
navios estrangeiros, exceo feita do algodo, cujo imposto
era de 10%. No contente com isso, por uma disposio que j
era efeito de pura ganncia em detrimento da economia
brasileira, aquelas taxas de 6% e de 10% ficariam reduzidas
a 2% se as embarcaes estrangeiras fossem carregar nos
portos portugueses o que as embarcaes nacionais -
nacionais europias - tivessem transportado de alm-mar.
Desertaria portanto a navegao
estrangeira os portos brasileiros que a sbia resoluo de
Dom Joo VI de 28 de janeiro de 1808 abrira ao
comrcio universal. O fito era palpvel: fazer reviver as
frotas de comercio portuguesas, pelo menos entre as duas
sees da monarquia, posto que com sacrifcio de uma das
sees. Gomes de Carvalho observa inteligentemente que os
portos da seo americana se fechariam por si, pois que os
navios que deixassem de l ir prover-se, deixariam ipso
facto de l ir abastec-los, fazendo a mais longa
viagem, entre o Brasil e Portugal, em lastro.
A grita foi geral entre a deputao
brasileira, to bem disposta a princpio mesmo a admitir a
iniqidade do tratamento: o conselho de Borges Carneiro no
foi seguido e a corda esticou-se em demasia. Ao pernambucano
Zeferino dos Santos, que se ocupou de todas estas questes
econmicas com af e proficincia juntou-se o verbo irritado
de Antnio Carlos para bradar que os seus patrcios no eram
selvagens e compreendiam onde queriam chegar seus irmos de
aqum-mar, Era o restabelecimento inequvoco do antigo
emprio - a colnia explorada pela metrpole - e valia
incomparavelmente mais essa corretagem do que qualquer
atividade fabril a que se entregasse o reino europeu.
A emenda leal e conciliadora de Zeferino
dos Santos era para que a taxa de navegao fosse igual para
os gneros expedidos do Brasil ou reexpedidos de Portugal
para o estrangeiro. A questo ficou suspensa j no ms de
julho, alis para nunca receber uma soluo.
CAPTULO XII
A QUESTO DA CISPLATINA
Empenhadas as Cortes em minguar em tudo e
por tudo o prestgio do estado ultramarino como reino
autnomo, no se contentaram com as medidas j adotadas nem
com os planos, uns maquinados, outros a caminho de execuo,
para a recolonizao dessa seo da Monarquia. Entenderam
privar o Brasil da conquista de Dom Joo VI, que tanto se
desvanecia de haver dotado o imenso domnio com sua
fronteira natural ao sul. Chegaram a pensar em trocar a
Banda Oriental, torro fertilssimo, favorecido pelo clima e
por todas as circunstncias naturais, pela cidade de
Olivena, com que ficara a Espanha na curta campanha de
1801.
Dom Pedro declarou um dia em conversa a
Mareschal171 que quando mesmo lhe mandassem ordem
de evacuar a Banda Oriental, o no faria; "teria sido talvez
melhor no a ter tomado, mas abandon-la depois do que
custou, seria rematada loucura. Nem havia a quem entreg-la,
pois que os espanhis se no achavam em condies de
reocupar essa sua antiga colnia".
Pensaram por fim as Cortes em aproveitar
contra o prprio Brasil o escol do exrcito lusitano,
veteranos das campanhas peninsulares, com que os generais de
Dom Joo VI se tinham assenhoreado desse territrio que os
portugueses nunca se tinham resignado a sacrificar em
proveito de outrem, embora com violao da partilha
geogrfica estipulada. Eram 5.000 os voluntrios reais de
que se compunha a expedio: com as baixas estavam reduzidos
a 3.500, que tantos eram os que ocupavam Montevidu.
Alm das dificuldades domsticas com que
lutava, ao Brasil da regncia fora pois tambm legada uma
questo externa. E sinal certo de soberania o ter destas
questes, e o Brasil jactava-se de soberano depois que nas
festas da elevao da sua categoria poltica, por ocasio da
aclamao de Dom Joo VI, o ndio simblico da pea
principal dos fogos de artifcio se cingira do manto real e
da coroa sobre o saiote e o cocar de penas.
curioso que a incorporao legal da
provncia cisplatina, para anexar a qual o monarca portugus
emigrado para o solo americano se valera da anarquia em que
se debatiam os platinos, tivesse sido levada a efeito em
plena crise da nacionalidade brasileira, quando a desunio
prevalecia ainda entre a maior parte das provncias
ultramarinas e a regncia estava longe de contar com uma
adeso unnime.
A 20 de maro de 1821 a oficialidade da
Diviso dos Voluntrios de El-Rei, abstrao feita do seu
comandante tenente-general Lecor (depois baro e visconde da
Laguna), fizera um manifesto aderindo Constituio
Portuguesa, protestando contra o decreto que a desligara do
exrcito de Portugal, do qual se considerava um
destacamento, reputando qualquer deliberao em contrrio
uma falta s reais promessas, solicitando sua rendio e
reclamando a organizao de um conselho militar de oficiais
com o general Lecor como presidente.
A deciso do congresso extraordinrio,
ratificando a 18 de julho de 1821 o voto vrias vezes
expresso pelo cabildo de Montevidu e preferindo federar-se
com o Brasil a formar um estado independente, foi uma
contribuio poderosa trazida causa nacional, mas tambm
foi um dos muitos atentados contra o direito pblico e
contra o princpio das raas que a histria registra,
cometido pelo suborno do general Lecor e sob a intimidao
dos seus voluntrios reais.
A ocupao da Banda Oriental fora um ato
de pura e franca conquista estrangeira, pondo remate a uma
luta civil que reduzira a populao de Montevidu a um tero
e assolara uma regio feracssima (172). O
governo portugus escudara-se com a argumentao capciosa de
que se no apoderava de provncia alguma alheia: apenas
protegia seus interesses num territrio que j se declarara
independente e sobre o qual lhe dava direitos sua vitria de
Tacuaremb. A administrao aplicada a esse territrio desde
1817, no intuito de assegurar a continuidade da sua posse,
foi porm de carter militar.
A oposio armada de Artigas e da grande
maioria da populao sujeio ao domnio portugus
constitua uma manifestao bastante da vontade popular; mas
para que esta se convertesse em vontade nacional, seria
mister subtrair os representantes congregados s influncias
de ordem diversa que sobre eles agiram, levando-os a
declararem que a Banda Oriental no oferecia condies para
ser por si uma nao, faltando-lhe recursos e meios para
garantir sua independncia. De fato a resistncia durante
quatro anos dos montoneros uruguaios, estendendo suas
depredaes desde o Rio Grande at Buenos Aires, Entre Rios
e Paraguai, arruinara e esgotara esse fragmento do
vice-reinado platino.
To prolongado estado de guerra
dissolvia, no conceito de um dos oradores do congresso
extraordinrio, todo convnio, todo pacto, toda liga
anterior. No o entendiam contudo assim as Provncias Unidas
do Prata, invocando um passado prvio muito mais dilatado e
muito mais honroso. O governo de Buenos Aires fez
formalmente conhecer seu desgnio de reaver o territrio
perdido. Por sua vez reclamava a Espanha aquilo que fazia
parte integrante dos seus domnios: somente a Espanha
constitucional tinha a pesarem sobre sua organizao
problemas mais urgentes de resolver. Alm disso sua poltica
exterior assentava sobre a confraternidade com Portugal,
igualmente constitucional muito por obra e graa dela.
A atitude das Cortes com relao
Provncia Cisplatina do Brasil estava pois de antemo
traada, desde que por um lado essa provncia seguia o
destino do Brasil unido, sua adeso reforando o reino
americano sem proveito para Portugal, e por outro lado havia
que corresponder aquele sentimento de cordialidade
internacional, precioso para a garantia das instituies
democrticas dos dois pases ibricos, surdamente minadas
pelas foras da reao. Nessas condies fcil era, mesmo
porque era lgico, proclamar que a conquista efetuada pela
monarquia absoluta de Dom Joo VI ofendia as bases da
justia que a regenerao viera firmar.
Pensou-se ento primeiro na troca por
Olivena, praa de 5.000 habitantes, cuja transferncia de
soberania fora sancionada pelo tratado de Badajoz, de 1801,
no ocorrendo a retrocesso nem mesmo por virtude da
recomendao obtida pelos plenipotencirios portugueses ao
congresso de Viena, o qual obrigara a corte do Rio de
Janeiro a restituir sem compensao a Guiana Francesa. Esse
tratado de Badajoz era precisamente aduzido no Brasil como
anulando o de 1777, o qual reconhecera o domnio espanhol
nas duas margens do Prata, mas no chegara a ser posto em
prtica por falta da respectiva demarcao.
A incorporao efetuada aps o regresso
de Dom Joo VI para Lisboa e em virtude das ltimas
determinaes por ele deixadas a respeito, efetuara-se com
todas as aparncias de liberdade e de legalidade. No regime
de autonomia que devia ser o do dualismo, ao Brasil
interessava principalmente o caso: se na ocupao de
Montevidu se achavam empregadas tropas portuguesas, eram
tropas brasileiras as que guarneciam a fronteira do Rio
Grande, cuja salvaguarda fora o pretexto da expedio do
general Lecor.
Da guarnio de Montevidu fazia tambm
parte o batalho de Pernambuco, embarcado para o sul depois
de debelado o movimento de 1817. O estado do tesouro
brasileiro, exangue na expresso de Cairu, determinou atraso
grande no pagamento dos soldos, e esse batalho e o
regimento de infantaria ensaiaram a 30 de dezembro de 1821
um pronunciamento que o general Lecor prudentemente evitou
se consumasse. Outras tropas, porm, acantonadas fora da
praa seguiram-lhes o mau exemplo com "urgncia mais
peremptria" (173) e o general-comandante teve de
recorrer aos meios de guerra, exigindo dos habitantes, de
acordo com a junta de naturais do pas, a quantia de 300.000
pesos com que fazer frente dificuldade.
A Provncia Cisplatina chegou a eleger um
deputado s Cortes de Lisboa, o Dr. Lucas Jos Obes, o qual
veio porm consignado ao prncipe regente para que dele
fizesse o que lhe aprouvesse. Escrevia Dom Pedro ao pai
(174) que "este D. Lucas" partira com as instrues
seguintes: "V representar nas Cortes a provncia de
Montevidu, e saiba o que querem l dispor dela, mas em
primeiro lugar v ao Rio, e faa tudo que o Prncipe Regente
do Reino do Brasil, de quem esta provncia parte
componente, lhe mandar, se o mandar ficar fique, se
continuar, execute". Dom Pedro ajuntava que o mandara ficar
no conselho de procuradores, que se ia eleger, "por ele me
dizer que antes queria os remdios do Rio, do que de duas
mil lguas, e era a razo de se terem separado da Espanha".
D. Lucas Jos Obes no fazia sacrifcio,
nem mesmo poltico, deixando de continuar sua rota. Os
interesses do seu Estado achavam-se ligados aos do Brasil. A
Cisplatina nunca poderia ficar unida a Portugal se uma vez o
Brasil se separasse deste e, a darmos crdito ao
representante uruguaio, era pelo contrrio suscetvel o
Brasil de dilatar seu poderio na Amrica Meridional. "Deu-me
a entender - escrevia o prncipe (175) - que
Entre Rios tambm se queria unir, e Buenos Aires confederar,
por conhecer que ns somos os aliados que lhes fomos dados
pela Providncia, assim como eles para ns".
Era plausvel que alguns assim
entrevissem o futuro, desde que a anarquia se implantara no
Rio da Prata por forma tal que se tornara lcito descrer de
que ali pudesse jamais voltar a ordem, a no ser pela unio
e sob a influncia de um fator que representasse legalidade
e cultura. Da Cisplatina pelo menos, nem o governo da
regncia, nem depois o do imprio quis absolutamente abrir
mo, referindo-se Melo Moraes ao ofcio secreto de 2 de
maro de 1822 em que Jos Bonifcio "instrui o baro da
Laguna sobre o modo de se conduzir com as autoridades
(locais) em proveito da unio".
Se tivesse alcanado Lisboa, teria D.
Lucas Jos Obes ensejo de participar com autoridade nica no
debate que em abril se travou nas Cortes sobre a evacuao
de Montevidu e em que se fizeram ouvir do lado brasileiro
Fernandes Pinheiro, Antnio Carlos, Borges de Barros, padre
Marcos Antnio de Sousa (depois bispo do Maranho) e Muniz
Tavares. Infligindo solene reprovao ao ato internacional
que se seguira organizao do Reino-Unido, a comisso de
negcios diplomticos do Congresso apresentara uma moo
para a retirada das tropas portuguesas da Banda Oriental, em
nome dos princpios polticos superiores que tinham dirigido
a revoluo de 1820 e animavam a nao lusitana, ''j que
por ser zelosa defensora da prpria independncia se achava
moralmente obrigada a respeitar a alheia, e j que
desaparecida a anarquia, tinham desaparecido os motivos do
proceder de 1816". O exrcito de ocupao ficaria
disposio do poder executivo portugus "para lhe dar o
ulterior destino que julgasse conveniente".
O melhor, no entender de muitos em
Portugal, seria reforar na Bahia o baluarte levantado pelo
general Madeira e donde se contava que partiria a
reconquista colonial que estava falhando pelos meios
parlamentares e administrativos. No Brasil, por causa
seguramente dessa possibilidade, foi o parecer da comisso
das Cortes mal recebido: independente mesmo disso, o
sentimento pblico no Rio de Janeiro, principalmente entre
os realistas, repelia qualquer intento de imolar a
Cisplatina a quaisquer outras combinaes mais favorveis a
Portugal (176).
A Colnia do Sacramento fora um ninho de
contrabandistas, donde se fazia com Buenos Aires um escambo
altamente frutuoso. Agora Montevidu representava a chave do
intercurso mercantil com o Uruguai e o Paran e as relaes
de interesse assim criadas com o Rio da Prata de certo
influram naquela opinio hostil renncia, pelo receio de
ver cerrar-se ao intercmbio estrangeiro posio to
importante do ponto de vista econmico, o que no deixaria
de acontecer no caso de restituio soberania espanhola.
A conservao da Banda Oriental
representava para o Brasil uma vantagem mercantil, poltica
e estratgica de que ele seguramente se no quereria
despojar. Se entre as provncias do norte a impresso era
menos marcada e mais frouxo o apego conquista de Dom Joo
VI era porque a distncia e o alheamento em que viviam as
provncias no permitiam que se concebesse tal interesse
como sendo de ordem vital para o conjunto. Com a
independncia que viriam uma maior uniformidade de juzos
e uma maior conformidade de sentimentos.
A moo de retirada caiu nas Cortes, na
sesso de 2 de maio de 1822, por 84 votos contra 28,
influindo seguramente para tal resultado o empenho que todo
povo mostra em conservar aquilo de que uma vez se apossou.
Bastantes membros do Congresso estimavam sinceramente o rei
e no queriam contrari-lo desmanchando um cometimento que
fora tanto do seu peito. A popularidade de Dom Joo VI
indiscutvel apesar da sua fraqueza, antes fsica que moral:
o encarregado de negcios de Frana no Rio de Janeiro
observava na sua correspondncia oficial que nas verrinas
sadas dos prelos libertados do Rio de Janeiro o monarca era
sempre pessoalmente respeitado.
Entre a representao brasileira, mesmo a
que se no deixava levar pela considerao de que abandonar
a Cisplatina ao seu destino era alienar os benefcios de um
trfico altamente prometedor, havia o temor, que para os
portugueses constitua pelo contrrio um incentivo, de que a
continuao da ocupao pudesse servir para futuras
transaes com espanhis ou com outro povo. Terras do Brasil
no eram o mesmo que as terras patrimoniais de Portugal:
eram terras de ndios, sem tradies e sem histria, que
tanto fazia atribuir a este ou aquele. Barbacena escrevia de
Londres a Jos Bonifcio (177): "No possvel
que V. Exa. saiba at aonde chega o dio, e sinistras
intenes das Cortes de Lisboa sobre o Brasil. Quiseram
primeiramente ceder aos franceses a margem esquerda do
Amazonas a troco de Tropas que fossem subjugar o Brasil, mas
o Governo Francs repeliu toda e qualquer negociao.
Quiseram depois renovar o tratado de comrcio com a
Inglaterra, garantindo esta o atual sistema do Governo de
Portugal, e todas as alteraes que ele fizesse no Brasil,
mas esta proposio ainda foi repelida com mais desprezo do
que fizera o Governo Francs. Projetam agora abandonar
Montevidu, ocupar Santa Catarina, revolucionar as
Provncias do Norte, e chegam mesmo a execrao de lembrar o
levantamento dos negros".
CAPTULO XIII
OS GRAVES PROBLEMAS POLTICOS DE MINAS
GERAIS, BAHIA E PERNAMBUCO
No mesmo dia da partida da Diviso
Auxiliadora para Portugal (15 de fevereiro) recebia o
prncipe regente no Pao da Cidade a deputao de Minas
Gerais que vinha, tendo sua frente o vice-presidente da
junta mineira, desembargador Jos Teixeira de Vasconcelos,
manifestar ainda que com alguma tardana os sentimentos da
provncia com relao aos famosos decretos de 29 de setembro
de 1821. A aludida demora fora o efeito de rumores de
agitao contrria ao movimento nacionalista local, os quais
vieram alis a confirmar-se.
A deputao no ocultava sua animada
verso atitude das Cortes para com o reino americano e
fazia votos pela reunio no Brasil de outra assemblia
representativa que elaborasse sua legislao particular e
adequada s condies do Brasil, tendo em vista o que
representara o povo fluminense quando com grande acerto
lembrara ao prncipe que "h uma distncia mui considervel
entre o meio-dia da Europa e o meio-dia da Amrica: a
natureza humana aqui experimenta uma mudana sensvel, um
novo cu, e por isso mesmo uma nova influncia sobre o
carter de seus indivduos; impossvel que povos
classificados em oposio fsica se possam reunir debaixo do
mesmo sistema de governo; a indstria, a agricultura, as
artes em geral exigem no Brasil uma legislao particular, e
as bases deste novo cdigo devem ser esboadas sobre os
locais onde depois ho de ir ter sua execuo".
Tambm a deputao mineira entendia que
em cada provncia se organizassem todos os tribunais
indispensveis s necessidades da sua populao. No havia
necessidade de serem de acordo com os modelos obsoletos cuja
abolio as Cortes justificavam pela sua disparidade com o
meio constitucional. A comisso especial dos negcios do
Brasil assim se referia ao assunto, como que respondendo s
crticas formuladas: " pasmoso sobremaneira que se queira a
conservao de Tribunais que tanto peso fazem nao e que
esto em perfeita contradio com o sistema representativo
por ela admitido. Uma representao formada da flor da
nao, no mister escorar-se nas frmulas decrpitas de
corporaes permanentes, para quem o dia de hoje como o de
ontem. Semelhantes estabelecimentos so o luxo da ordem
social, que a poltica reforma, todas as vezes que na
organizao de um pas se olha para a utilidade e no para o
aparato".
A junta mineira resolvera que os
deputados eleitos da provncia, em nmero de treze, no
seguissem para Lisboa "sem Minas saber a deciso de tudo" -
escrevia o prncipe a seu pai (178) - e declarava
mais "que seja qual for a deciso sobre a minha retirada,
ela sempre se opor a que eu regresse a Portugal, custe-lhe
o que custar. Estimarei que V. M. faa constar isto tudo ao
soberano Congresso para que ele assim como ia por uma
precipitada deliberao acabando a Monarquia, tome em
considerao as representaes justssimas feitas, e
agradea a salvao da nao aos briosos paulistas,
fluminenses e mineiros".
No seu discurso o desembargador Teixeira
de Vasconcelos, falando pela junta, recordou quanto Portugal
era devedor capitania de Minas Gerais, antes de juntar os
rogos desta provncia para que Dom Pedro ficasse e
aguardasse a resposta das Cortes. Nos cento e dezenove anos
que decorrem de 1700 a 1819, o quinto do ouro subira a 553
1/2 milhes de cruzados, calculando em 1.200 ris a oitava e
no falando na quantidade de ouro que no era manifestado
nas casas de fundio e que por essa forma se subtraia
cobrana da porcentagem real. Todo esse metal precioso ia
para Portugal.
O desembargador Teixeira de Vasconcelos
era o porta-voz da maioria apenas da junta, cuja minoria no
aprovava, nem a homenagem ao prncipe que equivalia ao mais
formal reconhecimento da sua autoridade de regente, nem a
suspenso da viagem dos representantes s Cortes. Com
efeito, enquanto a deputao vinda de Vila Rica assim fazia
ato de adeso ao governo central brasileiro e a cidade do
Rio de Janeiro punha luminrias por esse motivo e pelo da
partida de Jorge de Avilez e da sua tropa, estalava na
capital de Minas um pronunciamento s ordens do
tenente-coronel portugus da cavalaria de linha Pinto
Peixoto, revolucionariamente aclamado brigadeiro. Esse
movimento, favorecido pela atitude dissidente e a breve
trecho rebelde, de dois membros da junta, obedecia a
inspirao do juiz de fora Cassiano Espiridio de Melo Matos
e tendia a colocar de novo a provncia dentro da rbita da
influncia portuguesa, no se pode dizer na sua dependncia,
porquanto o novo governo avocava atribuies ilimitadas e
tomava providncias sobre todas as matrias, quando o
governador legal, que era D. Manuel de Portugal e Castro,
no queria mais do que retirar-se deixando em funes uma
junta provisria prestando obedincia s Cortes. Ele repelia
a idia de ver suceder-lhe a luta armada que a resoluo do
prncipe regente frustou.
Chegada a informao ao Rio de Janeiro,
no se limitou Dom Pedro a esperar o desenrolar dos
acontecimentos para assumir uma atitude. Decidiu ir em
pessoa providenciar sobre o seguimento dos sucessos
polticos e, sem anunciar previamente sua viagem, partiu a
25 de maro, apenas acompanhado do desembargador Estevo
Ribeiro de Rezende (futuro marqus de Valena) e de dois
criados, deixando Jos Bonifcio praticamente na qualidade
de regente, pois que lhe confiava a presidncia do conselho
de ministros para o despacho do expediente das secretarias
do Estado e reparties pblicas.
O governo anrquico de Minas no tinha
elementos para firmar-se, apesar de ter chamado a si o
direito das nomeaes: com a presena de Dom Pedro logo ruiu
do seu frgil pedestal. Recebido com entusiasmo em
Barbacena, So Joo d'EI Rei, So Jos e Queluz, o prncipe
parou a trs lguas de Vila Rica, no capo de Lana, e mandou
Estevo Ribeiro de Resende, nomeado interinamente secretrio
de Estado, cominar o governo provisrio, perguntando-lhe se
o reconhecia ou no como regente do Brasil, pois no queria
empregar a fora armada, nem expor o povo e a tropa de Vila
Rica a serem imolados por esses facciosos de cuja existncia
lhe chegara a notcia, tanto assim que ordenava ao
tenente-coronel, comandante da cavalaria de linha de Minas
Gerais, Jos da Silva Brando e ao coronel de milcias Sousa
Guerra Godinho, que prendessem Pinto Peixoto e o conduzissem
ao Capo de Lana, onde pernoitava e para onde convocava toda
a guarnio de Vila Rica a fim de fazer sua entrada na
capital mineira, "acompanhado de grande guarda, como
convinha ao decoro de sua real pessoa". Igual ordem de
priso de Pinto Peixoto era dirigida ao governo provisrio,
do qual dois membros, desembargador Manuel Incio de Melo e
Sousa e coronel Jos Ferreira Pacheco, tinham ido ao seu
encontro a fazenda de Cataguases, respondendo-lhes Dom Pedro
que "j era tarde", embora lhes permitisse acompanharem a
comitiva.
Constam estes pormenores do
ofcio-relatrio que dos incidentes da sua viagem mandou o
prncipe dirigir por Estevo Ribeiro de Resende ao
ministrio no Rio, dele constando tambm o que as outras
narrativas do episdio no geral referem - que em Vila Rica,
em oposio ao sentimento dominante, estava preparada a
resistncia contra a entrada do prncipe como regente,
desobedecendo a junta s suas ordens e simulando at a
princpio ignorar sua entrada na provncia. Entretanto essa
entrada fora mais do que ruidosa, fora triunfal.
Dom Pedro teve a felicidade, que foi uma
habilidade, de se no deixar intimidar nessa emergncia
pelas conseqncias do seu ato, e pelas vilas por onde ia
passando e onde lhe chegavam os ofcios de adeso e
reconhecimento das cmaras das Vilas pelas quais no
passava, tinha ido mandando os comandantes da pouca tropa de
linha fazerem marchar seus esquadres, os da milcia fazerem
mover seus batalhes e os capites-mores congregarem suas
ordenanas, formando-se para a eventualidade da resistncia
manter-se outros corpos, de voluntrios, sendo o prazo dado
no Capo de Lana.
Relata porm uma verso que Pinto Peixoto
por si se dirigiu at o local onde parara o prncipe, a fim
de beijar-lhe a mo e dar garantias da segurana e sossego
da cidade. Segundo outra verso, que a verdadeira pois que
se acha, ainda que no terminantemente, assaz claramente
corroborada pelo ofcio - relatrio de Estevo Ribeiro de
Resende (179), a ordem de priso foi cumprida e o
oficial revoltoso assim trazido presena de Dom Pedro, que
"depois de o ouvir, conhecendo a sem razo com que fora
denunciado, generosamente lhe mandou entregar a espada".
Melo Moraes de conta prpria refere, e sua narrativa pode
afinal casar-se com a de Estevo Ribeiro de Resende, posto
que esta mais diplomtica por ser oficial, que Pinto Peixoto
caiu aos ps do prncipe, o qual o rebaixou do posto de
brigadeiro, ilicitamente grangeado, e o responsabilizou pela
manuteno da ordem por ocasio da sua joyeuse entre,
mas no dia imediato o promoveu efetivamente por merc
sua e em virtude dos poderes que lhe andavam delegados.
Ainsi se vengent les rois... se
que o futuro imperador, a quem no faltava o senso das
realidades e que temperava o seu quixotismo com o sal do bom
senso, no procedeu desse modo para evitar de se indispor
com a tropa, entre a qual era Pinto Peixoto popular, e ter
talvez que voltar atrs sob coao. O comandante do novo
corpo de caadores criado pela junta provisria e que,
juntamente com Pinto Peixoto e o juiz de fora presidente da
cmara, eram os espritos dirigentes do motim abortado, foi
despachado para o Rio, para onde resolveu o prncipe que
fosse tambm o batalho de caadores a render o esquadro de
cavalaria mineira mandado como reforo.
Para o Rio de Janeiro levou o prncipe
consigo Pinto Peixoto, apresentando-se com ele no teatro em
delrio. Antes disso, escrevia Estevo Ribeiro de Resende
que em Vila Rica mesmo o prncipe o incorporara no seu
squito como comandante das armas interino, uma vez que ele
veio render-lhe preito logo depois da junta, qual fora
intimado o comparecimento e o conseqente reconhecimento do
carter poltico do prncipe regente. Alis em rigor esse
reconhecimento era exigido antes para impressionar a
populao e desprestigiar de todo o governo rebelde, j pelo
prncipe declarado cassado, antes de partir, pelo decreto de
23 de maro, no qual faz sobressair que a junta agora
dissolvida e que fora aprovada por efeito "da sua bondade
paternal, apesar de uma parte dos membros dela ter sido
eleita por subornos e conluios, havia reunido em si no s o
poder executivo e econmico, mas at o legislativo e
judicirio, com manifesta rebeldia s Cortes, a El-Rei e ao
seu delegado".
Com o ofcio-relatrio de Resende
concordam todas as descries da efuso do acolhimento
dispensado por Vila Rica, excedendo toda a expectativa e
encantando os que assistiram a semelhante espetculo, que
foi no entanto igualado pela recepo brilhante de Mariana,
onde entre outros dsticos festivos se lia o seguinte:
Consigo no traz Pedro Marte irado;
Traz a filha de Themis ao lado.
Nessas vilas, como nas outras, foram
tocantes as demonstraes em honra do prncipe. Eram Te
Deums solenes, cortejos de carter a um tempo religioso,
civil e militar imponentes, arcos ornamentais, festes de
seda e colchas de damasco nas frontarias das casas, crianas
simbolicamente vestidas, chuva de flores, girndolas de
fogo, bombas e roqueiras, msicas, nuvens odorferas de
blsamos e aromas que se queimavam. Tem-se a impresso de
que foi uma manifestao espontnea, a que no presidiria
talvez um gosto discreto mas da qual trasbordava genuna
simpatia, com muito gasto de galo de ouro, muita lhama de
prata, muita figura emblemtica e muita alegria.
No pode haver dvida da sinceridade do
jbilo que reinava na grande provncia, nem da dita que ao
prncipe se deparou e que lhe permitiu dessa vez abafar a
discrdia das faces e sobrepor-lhes, depois de eliminado o
governo anrquico sem derramamento de sangue, a frmula
amvel da concrdia juntamente com o rgido princpio da
autoridade. No descurou Dom Pedro o organizar a reao e o
seu pao provisrio de Capo de Lana esteve por um triz a
converter-se num acampamento para debelar "os malvados", mas
o seu corao estimou que se lhe oferecesse ensejo de
aplicar as nobres e humanitrias palavras dirigidas pelo
regente aos fluminenses depois da partida da Diviso
Auxiliadora: "Eu teria visto com viva mgoa frustrados todos
os meus votos a favor da humanidade, acesa a guerra civil, e
vtima de seus horrores povos inocentes, que anelam viver
livres e tranqilos debaixo do imprio das leis. No s
com as armas tintas de sangue e em campos juncados de
cadveres que se alcana honrada fama; com a vossa judiciosa
moderao, e segura confiana em meus paternais cuidados, e
ordens do governo, foi mais belo e honroso o vosso triunfo
do que se o conseguisses em combates, ainda com assinalada
derrota dos inimigos".
O regresso foi feliz como o fora a ida e
nele ps Dom Pedro toda a alacridade, ento juvenil, do seu
temperamento. Anos depois seria ele, como imperador,
recebido nos mesmos stios com dobres a finados, pelo
assassinato em So Paulo do jornalista Badar. Ento fora
tudo como que um sonho que se concretizasse, por um lado na
consolidao da sua autoridade executiva sobre uma frao
importantssima do territrio brasileiro; por outro lado na
sua definitiva incorporao na ptria nova que se formava.
Essa viagem foi denominada sua verdadeira nacionalizao e o
visconde de Porto Seguro pensa que deve ter sido um poderoso
incentivo para ela o efeito da natureza mineira, selvtica e
majestosa. fato que Dom Pedro nada conhecia do Brasil alm
de Santa Cruz e, por mais bela que seja a Baa de Guanabara,
o espetculo das montanhas e dos rios donde tinha sido
canalizado para Portugal o jorro de ouro e de diamantes do
sculo XVIII, era certamente prprio a exaltar uma
imaginao como a sua que, se se no deixava porventura
seduzir pelas paisagens pitorescas, sempre se mostrou
disposta a deixar-se empolgar pelas perspectivas de grandeza
moral e poltica.
Comeou logo em Minas a frase de
apaziguamento. As foras com ordem de avanar foram mandadas
sustar, soltos os presos polticos, suspenso o juiz de fora
Melo Matos, abrindo-se sumrio de culpa sobre sua tentativa
de rebelio e violncias por ocasio da entrada do prncipe,
disperso o ncleo de discolos e dadas as ordens para se
proceder eleio de uma nova junta provisria e dos
procuradores ao conselho de Estado. A proclamao de
retirada dizia na linguagem empolada, prpria do gnero: "Se
entre vs alguns quiserem (o que eu no espero) empreender
novas coisas que sejam contra o sistema da unio braslica,
reputai-os imediatamente terrveis inimigos, amaldioai-os e
acusai-os perante a justia que ser pronta a descarregar
tremendo golpe sobre monstros, que horrorizam aos mesmos
monstros... Vs amais a liberdade, eu adoro-a... Uni-vos
comigo, e desta unio vireis a conhecer os bens que resultam
ao Brasil, e ouvireis a Europa dizer: o Brasil que
grande e rico; e os brasileiros que souberam conhecer os
seus verdadeiros direitos e interesses. Quem assim vos fala
deseja a vossa fortuna, e os que isto contradisserem amam s
o vil interesse pessoal, sacrificando-lhe o bem geral. Se me
acreditardes seremos felizes, quando no grandes males nos
ameaam. Sirva-nos de exemplo a Bahia".
Partiu Dom Pedro de Vila Rica a 20 de
abril e a 25 recebia, ao declarar da tribuna real no teatro
que deixara Minas em paz, uma das ovaes mais estrondosas
da sua vida, na qual alternaram as aclamaes e as pateadas.
Porto Seguro qualifica o seu ato de "um lampejo de gnio" e
relembra a este propsito o artigo, ora ditirmbico, ora
pindrico de Janurio e Ledo no Reverbero, em que se
dizia: "O Deus dos Cristos, a constituio braslica e
Pedro, eis os nossos votos, eis os votos de todos os
brasileiros. Prncipe, no desprezes a glria de ser o
fundador de um novo Imprio. O Brasil de joelhos te mostra o
peito, e nele, gravado em letras de diamante, o teu nome...
Prncipe, as naes todas tm um momento nico, que no
torna quando escapa, para estabelecerem os seus governos. O
Rubicon passou-se; atrs fica o inferno; adiante est o
templo da imortalidade".
Pelo que toca ao prncipe, penhor dos
sentimentos que trazia na alma a carta que cinco dias depois
de chegado, a 30 de abril, escrevia para Lisboa a Antnio
Carlos, tratando-o de "meu amigo e do meu amigo Brasil" e do
"mais digno deputado americano", pedindo-lhe para tornar
pblicas todas as cartas por ele escritas a Dom Joo VI,
orgulhando-se de ser o "maior brasileiro e que pelo Brasil
dar a ltima gota de sangue" e dizendo-lhe que, "se l no
o apoiarem, em lugar de se cansar com debates, volte, que os
brasileiros o desejam c para as suas cortes municipais".
O processo da sua nacionalizao estava
de fato terminado.
* * *
Minas estava conquistada pelo afeto, mas
havia outros lances a ganhar, pelas armas ou pela astcia.
Para o lado do Norte os horizontes permaneciam carregados,
quando no tempestuosos. A 22 de junho escrevia o prncipe a
El-Rei: "O Madeira na Bahia tem feito tiranias, mas eu vou
j p-lo fora, ou por bem, ou a fora de misria, fome, e
mortes feitas de todo o modo possvel, para salvar a
inocente Bahia". O que se passara para justificar semelhante
linguagem?
A vida da primitiva junta no fora de
rosas, andando o sentimento brasileiro sobressaltado com a
presso portuguesa, e o pronunciamento dos tenentes-coronis
Jos Egdio Gordilho de Barbuda (futuro marqus de
Jacarepagu) e Felisberto Gomes Caldeira, com uma poro
mais de oficiais, quase lhe cortou a existncia a 3 de
novembro de 1821. Na sua proclamao aos habitantes da Bahia
essa junta, presidida por Moura Cabral, conta que, "aqueles
perdidos na opinio pblica, e todos inimigos parciais do
governo, por lhes no haver fartado a insacivel sede de
torpes lucros e tresloucados despachos, se arrojaram a
perpetrar o horrvel crime de atentar tumultuariamente
contra a existncia deste mesmo governo, que, com tanto
risco e tamanho denodo, foi levantado por vs sobre as
runas do antigo despotismo, e percorrendo as ruas com
alaridos, apresentaram-se nos paos do conselho,
acompanhados de alguma gente da plebe, raros oficiais de
linha e pouqussimos paisanos, sem representao civil,
arrombaram com suas espadas a caixa em que se guardava o
estandarte, arrancaram-no daquele depsito, foraram alguns
dos membros do corpo do nobilssimo senado, que ento ali se
achavam, a atravessar a praa e, violando o respeito devido
ao palcio do governo, invadiram-no armados com punhais e
pistolas, que bem se viam escondidos por entre seus
vestidos, e quiseram obrigar a junta provisional a
demitir-se e (o que mais ) a autoriz-los para a seu sabor
estabelecerem um novo governo, que fartando-lhes sua
venenosa ambio, vos lanaria sem dvida no plago da
anarquia" (180).
A tentativa falhou porque, enquanto
confabulavam e discutiam rebeldes e autoridades, as tropas
fiis formaram no largo e ocuparam o palcio e imediaes e
a junta teve esprito para dominar a situao. O desfecho
foi a priso de uns tantos oficiais e a deportao de outros
para Lisboa, onde foram soltos em abril de 1822. A
tranqilidade nem por isso porm se restabeleceu.
junta aclamada sucedeu ajunta eleita em
1. e empossada a 2 de fevereiro de 1822, tendo por
presidente o velho Dr. Francisco Vicente Viana que, segundo
relata Drummond, tinha o sestro de responder s dificuldades
com um suspiro e uma histria do tempo do marqus de Pombal,
e por secretrio o desembargador Francisco Carneiro de
Campos. Todos os membros (181) eram brasileiros,
menos um, e esta circunstncia era de natureza a emprestar
um aspecto favorvel causa da regncia que j ento se
tornara a causa nacional. De fato, ao participar sua
instalao, o novo pessoal governativo, se fez seu protesto
solene de adeso ao rei e constituio, reservou suas
palavras mais carinhosas para o prncipe real.
Uma questo de precedncia entre oficiais
superiores, redundando num conflito de jurisdio militar,
gerou porm uma condio tal de antagonismo entre os
interesses em presena que a Bahia se converteu no principal
centro armado, no bastio da resistncia portuguesa
supresso do seu predomnio.
Dos fatores da primeira hora
constitucional um conservara ntegra sua popularidade, que
era o brigadeiro, por aclamao popular, Manuel Pedro de
Freitas Guimares, brasileiro, mas "pedreiro livre" como
escreve Cairu, como tal ligado "cabala manica" formada
pelos clubes jacobinicos e partidrio intransigente do
regime liberal, ocupando o governo das armas como o oficial
de maior patente da guarnio. A promoo regular a
brigadeiro do coronel Incio Lus Madeira de Melo,
comandante do regimento 12 de infantaria, justificava no
entanto sua preferncia para aquele governo, pela escolha
feita em Lisboa a 9 de dezembro de 1821 (dia em que foram
nomeados os vrios comandantes de armas, de acordo com a
nova organizao ultramarina), tanto mais quanto sua
antigidade era mandada contar desde 18 de dezembro de 1820.
O sucedido indicava contudo claramente
que nunca uma nomeao anloga recairia num brasileiro.
Nenhum se podia encontrar mais fiel adepto da regenerao do
que o tenente-coronel Manuel Pedro, declarado benemrito e
honrado pelas Cortes de Lisboa: a merc recairia sempre
naquele que dispusesse, como era o caso com Madeira, das
simpatias da legio constitucional lusitana e fosse de
tmpera a sustentar a preservao da unio sui generis,
que Portugal concebera. Madeira no entanto fora um
revolucionrio fora. Conta-se182 que no
pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821 ele no tomou
parte; seu regimento foi porm seduzido pelo tenente-coronel
e Madeira compareceu na refrega, humilhado por lhe ver
escapar pela primeira vez o comando da sua gente. Seus
soldados, ao v-lo, aclamaram-no e fizeram-no assim
participar do movimento.
Chegou a carta rgia de nomeao, mas
faltavam-lhe certas e importantes formalidades: no estava
registrada na contadoria da corte, nem fora referendada pelo
ministro competente, nem sequer era comunicada junta de
governo local. Nem esta nem a cmara quis determinar o
registro para a posse, embora a junta admitisse a validade
da carta rgia tal como se encontrava. A atitude de ambas as
corporaes permitia entretanto que fosse a mesma discutida
e at recusada para fazer valer um direito. Formaram-se a
respeito discrepncias de opinio; uma representao com
mais de 400 assinaturas subiu cmara municipal para que se
aguardasse a deciso das Cortes; cada parcialidade seguiu
desde 15 de fevereiro argumentando a seu modo e jeito.
De tudo isso resultou a congregao
extraordinria de um grande conselho composto do senado da
cmara, das corporaes de justia, fazenda e marinha e dos
notveis da cidade - pessoas condecoradas, como as qualifica
Cairu - o qual adotou (19 de fevereiro) o recurso esdrxulo
de ser o governo das armas exercido at nova ordem por uma
junta militar de 7 membros, entre eles os dois brigadeiros,
Madeira em todo caso como presidente. Anuiu este se o
consentisse a oficialidade portuguesa entre a qual, desde
comeo, lavravam protestos que determinaram uma tenso
difcil de remediar e que o prolongamento da sesso at o
nascer do sol no conseguiu dissipar.
A declarao alis do brigadeiro
portugus de que avocaria a autoridade plena se corresse
risco a Constituio, causou sensao e preludiou o
rompimento do mesmo dia 19. Madeira, cada vez mais metido em
brios, assumiu de fato o comando e ps em armas no s seus
soldados como os marujos dos navios surtos no porto. A
antinomia degenerou assim fatalmente em conflito sangrento
entre as foras portuguesas e brasileiras, o qual durou at
a tarde de 20, mais de 100 mortos caindo varados pelas balas
e praticando-se de ambos os lados deplorveis atentados,
figurando no nmero como o pior o brbaro assassinato por
mos portuguesas da abadessa do convento da Lapa,
acompanhado do espancamento do velho capelo da casa.
Madeira d nos seus informes
circunstanciada relao das peripcias dessa luta a que os
brasileiros se afoitaram sem chefes, recolhendo-se afinal no
forte de So Pedro. Cairu assim resume a situao: "Tudo
anunciava grande catstrofe, por no cederem os sitiados do
forte, e parecerem resolutos defesa, no obstante as
intimaes de Madeira para se renderem. Mas as tropas ali
encurraladas, e sem preparativos, nem recursos, por fim
reconhecendo a impossibilidade de resistncia decisiva
fora superior, e perdendo toda a confiana no seu chefe,
evacuaram em 21 do ms de noite o forte da parte do baluarte
martimo. Da resultou entrar nele Madeira com sua tropa,
achando-o vazio de defensores, apenas, existindo a
solitrio, com alguns oficiais e cadetes, o seu rival, a
quem logo prendeu".
Prendeu-o e deportou-o para Lisboa, aps
cassar-lhe as patentes de promoo a coronel e brigadeiro
por acesso revolucionrio, que ainda no tinha tido a
confirmao real. As circunstncias converteram em ditador
militar o transmontano espadado e guapo, cuja voz sonora se
ouvia de um extremo a outro do regimento (183).
Por seu lado Manuel Pedro, no primeiro aniversrio do
pronunciamento de 10 de fevereiro de 1821, concedera de sua
alta merc um posto de acesso a todos os oficiais do seu
regimento de artilharia de linha, que tinha sido pars
magna do acontecimento, e mandara decorar-lhe a bandeira
com um dstico em letras de ouro.
Como natural, Madeira conta nos seus
ofcios as coisas muito pormenorizadas, sua feio,
querendo provar "que no fez mais do que o que foi
absolutamente necessrio para se defenderem as tropas do seu
comando". Nem desmerece o valor do adversrio, antes o
encarece, para mostrar que, se no fosse socorrido, a
situao podia tornar-se crtica. Para justificao do
ataque, que vem sempre no se sabe como, seus soldados
propalaram - o que em ocasies idnticas corrente - que do
interior do convento da Lapa tinham atirado contra eles.
Abriu-se uma devassa, de ordem da junta ao juiz do crime da
cidade, a qual resultou contrria a Madeira e seus
batalhes, pronunciados por autoria de guerra civil. O
ofcio da junta baiana para Lisboa estigmatiza o proceder da
legio lusitana, "cujos louros ali se manchariam do sangue
dos seus irmos" (184).
Nesse ofcio declara a junta no ter at
ento cumprido as ordens do prncipe regente, mas que "no
podia dissimular que, afora uma frao, s numerosa na
classe mercantil desta cidade, a maioria da provncia sem
dvida deseja reunir-se aquele augusto centro da famlia
brasileira". ningum porm compreendeu e descreveu melhor a
situao dos partidos do que o brigadeiro Madeira; no pode
haver sido um tarimbeiro bronco, como o descrevem os
inimigos, quem assim se expressava (185): "Trs
so os partidos que existem nesta cidade: dos naturais de
Portugal o partido quase geral puramente constitucional e
a este alguns h dos naturais do pas que se unem; dois so
os partidos que estes seguem, a saber: os mais poderosos, j
em posses e j em empregos de representao, ligados aos
togados do Rio de Janeiro, querem uma constituio, em que
como lords figurem independente do governo de Portugal, e
por isso trabalham para a separao; este o motivo por que
o poder legislativo de V. M. ali atacado nos papis
pblicos com o maior vilipndio. Os que pelas suas posses ou
empregos no ombreiam com aqueles, querem uma independncia
republicana em que s figurem os naturais do pas; tm-se
chocado ambos estes partidos at aqui, tendo sido o
resultado favorvel ao primeiro constitucional; porm agora,
julgando-se ofendidos ambos os corpos por ser notado o geral
americano por fraco e rebelde, trabalham a reunir-se, e se o
conseguem, como de esperar, necessrio grande fora para
o rebater, e por isso quanta maior brevidade houver em
prestar novas providncias e virem mais foras, maior ser o
resultado ao bem da nao e dos do partido constitucional,
que alis ser sacrificado".
Sobre a cabea de Madeira, como sobre a
de Lus do Rego, tm sido atirados inmeros apodos. So eles
os dois grandes verdugos da histria brasileira a soldo da
tirania portuguesa. Um e outro eram militares briosos, com
os defeitos inerentes educao de quartel - a prepotncia
e a arrogncia dos que esto habituados a mandar para serem
obedecidos - mas aditos s suas obrigaes disciplinares e
patriticas, no merecendo condenao por sab-las executar
com observncia e at com severidade. Madeira achava-se ali
representando o governo vigente em Portugal, que era o das
Cortes, que o prprio rei declarava acatar: no lhe seria
honroso, nem digno, deixar-se suplantar na sua autoridade.
Entre a junta abertamente simptica regncia brasileira e
o general leal e incorruptvel que desprezou todas as
tentativas de suborno, cavou-se um fosso impossvel mais de
ser transposto.
Drummond veio de Pernambuco a Bahia no
ms de julho, numa barca vela, das que transportavam
farinha de trigo dos Estados Unidos, com o fim de ajudar o
trabalho dos patriotas e aproveitou-se das suas antigas
relaes em Santa Catarina com o general Madeira, que ali
servira, para levar a Jos Bonifcio todas as informaes
que pde colher numa inteligente espiagem pela qual se
preparava para ulteriores funes no exterior. Saiu para o
Rio quando fez escndalo com um artigo publicado no
Constitucional - nico jornal que defendia a causa
nacional num meio terrificado pelos contrrios e que, j
ento forado a renunciar pena hbil e veemente de
Francisco G Acaiaba de Montezuma (depois visconde de
Jequitinhonha), sado para o Recncavo, seria pouco depois
empastelado por oficiais portugueses - convidando a junta a
dissolver-se pela passividade a que se achava reduzida sob a
coao da autoridade militar.
Nas anotaes sua biografia, onde
relata estes fatos, conta Drummond que por mais de uma vez
foram feitas a Madeira propostas de transao extremamente
vantajosas para ele, pois que lhe permitiriam permanecer no
Brasil elevado a tenente-general e com meios de fortuna, as
quais invariavelmente repeliu, no com atitudes de teatro,
mas com a convico serena de que devia cumprir o seu dever,
embora a causa estivesse perdida. Madeira no se iludia
quanto ao desenlace dessa contenda "entre pai e filho, que
se no queriam" como ele dizia, e na qual lhe caberia
infalivelmente o papel de vtima expiatria. Sua honra de
militar vedava-lhe porm proceder diverso desse, em que a
Drummond se depara mais curteza de inteligncia do que
nobreza. O soldado desconhecia o ponto do discernimento, que
existia para o diplomata, onde cessa a honradez e se
desobriga o juramento.
Do Rio de Janeiro animavam evidentemente
as disposies da junta da Bahia por meio de Cartas,
ofcios, intimaes de retirada a Madeira e proclamaes aos
baianos, tudo em linguagem muito pattica e muito recheada
de tropos; porm a resistncia seguia sempre, apoiada na
guarnio, na sua grande maioria portuguesa. A situao de
complicada passou a ser insustentvel para um governo de
eleio popular, que desde a nascena tinha os seus
movimentos tolhidos e que pela falta de exerccio, conquanto
constitudo de bons brasileiros, apresentava no dizer de
Drummond o defeito da fraqueza. Sobre ela pesava um Csar
constitucional, garantido no seu comando at por uma
esquadra, pois que os portugueses tinham, na frase de
Drummond, "o mar livre, uma esquadra sua, muitos navios
mercantes, uma cidade abastada e um comrcio rico em seu
favor".
Seus recursos militares no eram todavia
de tamanha superioridade que permitissem a Madeira prover-se
francamente do Recncavo, para onde desde maro se dirigia a
emigrao de So Salvador e donde lhe foi interceptado o
abastecimento, do que ele fazia responsvel a junta. Menos
ainda lhe permitiriam ir desalojar o governo revolucionrio
brasileiro que, "com as pessoas mais gradas da provncia",
se formou pelo esforo bem acolhido do ouvidor de Santo
Amaro Arajo Gondim, de Rebouas e outros.
A vila de So Francisco da Barra foi a
primeira a pronunciar-se contra a ditadura militar
(186) e as vilas do Recncavo foram-se-lhe seguindo
uma aps outra com fulminante rapidez, cabendo a palma da
Cachoeira por ter tido que lutar e t-lo feito com xito num
combate de trs horas com uma canhoneira mandada postar por
Madeira para bloquear esse centro importante de trfico do
interior com a capital e paralisar seu comrcio. Passava-se
isto a 25 de junho. Na Cachoeira se constituiu uma junta
interina de "conciliao e defesa" e em setembro tornou-se
ela a sede da junta de procuradores que assumiu o governo
local da Bahia (187). Desde comeos de julho que
se achava insurgido o interior contra a capital, faltando
por sua vez aos revoltosos da Cachoeira, cuja cmara se
proclamava composta de "sditos devotados do prncipe
regente", os meios de expulsar a guarnio portuguesa de So
Salvador, e desde maio que Borges Carneiro pedia nas Cortes
de Lisboa, na sesso de 23, que fossem despachados para a
Bahia 2.600 homens para, juntos com os 1.400 que l havia,
perfazerem uma fora de 4.000 homens, que ele reputava capaz
de arcar com a situao.
Nesse debate e a esse propsito dizia
Muniz Tavares que as tropas portuguesas tinham sido a causa
de todos os conflitos ocorridos no Brasil e que, se se
exasperassem os brasileiros com outras remessas, corria-se o
risco deles "declararem, por uma vez a sua independncia".
Do centro o prncipe regente estimulava os da sua grei. Data
de 15 de junho a platnica ordem de retirada a Madeira, da
qual Dom Pedro assumia a responsabilidade para com el-rei,
"no podendo restabelecer-se a paz, o bem e alegria dos
habitantes dessa provncia, nem a minha prpria alegria,
enquanto no se praticar na Bahia o mesmo que felizmente se
executou nesta corte e em Pernambuco, sendo at necessrio,
para tranqilidade de todas as provncias e para se
apertarem de novo os relaxados vnculos de amizade entre os
dois reinos, que o Brasil fique s entregue ao amor e
fidelidade dos seus naturais defensores".
Na mesma data uma carta rgia junta da
Bahia recomendava-lhe quanto fosse necessrio "para o cmodo
regresso da tropa", fazendo constar em toda a provncia o
"muito que o tinham magoado as suas desgraas, bem como os
ardentssimos desejos que tinha de remedi-las e de cooperar
com todas as suas foras para que este to rico to grande e
abenoado reino do Brasil (conhecido s nas Cartas
geogrficas por alguns que sobre ele legislaram!) venha a
ser em breve tempo um dos reinos constitucionais mais
felizes do mundo". A 17 era redigida a proclamao aos
baianos: "Vs vedes a marcha gloriosa das provncias
coligadas; vs querereis tomar parte nela, mas estais
aterrados pelos invasores: recobrai nimo. Sabei que as
tropas comandadas pelo infame Madeira so susceptveis de
igual terror: haja coragem e haja valor. Os honrados
brasileiros preferem a morte escravido; vs no sois
menos; tambm o deveis fazer para conosco, entoardes vivas -
independncia moderada do Brasil - ao nosso bom e amvel
monarca el-rei o Sr. Dom Joo VI e nossa assemblia geral
constituinte e legislativa do reino do Brasil".
Todos estes documentos e outros da mesma
poca traem a autoria direta de Dom Pedro: so
inquestionavelmente da sua lavra, pela impetuosidade e
desassombro, pelo torneio da frase, pelas incorrees
gramaticais, pela peculiaridade de certas locues, no raro
familiares, de que fazem repetido uso. S do Rio podiam
porm vir, alm das frases de alentar, os reforos
terrestres e martimos que podiam facultar causa nacional
a vitria, com tanto mais certeza quanto no s a sublevao
se generalizara fora do foco de oposio lusitana, como o
comando portugus havia cometido o erro inicial de no
conservar a posio de Itaparica, a qual no pde depois
recobrar (188).
A prpria junta de So Salvador
manifestava-se ostensiva e clandestinamente, oficial e
particularmente, em favor do prncipe regente, sustentando
esta poltica o Constitucional, impvido na brecha,
mesmo depois de Montezuma no Recncavo, at o atentado de
que foi alvo a sua tipografia. Quanto ao senado da cmara,
mandou registrar o decreto relativo s eleies para o
conselho de procuradores e desde 12 de junho que quisera
pronunciar-se pela conservao de Dom Pedro como centro da
unidade brasileira, pelo que o governador das armas mandou
rondar o pao do conselho e evitar com ameaas de priso que
a vereao se efetuasse, do que esta se queixava para Lisboa
a 26 do mesmo ms.
Socorros mesmo no faltaram a nenhuma das
duas parcialidades, com a diferena que os de Portugal foram
mais prontos, mais abundantes e aparentemente mais eficazes.
Para os que sustentavam a unio das provncias como
preliminar da dos reinos, os auxlios de gente e de dinheiro
no foram intencionalmente mesquinhos: vieram para a Bahia
os auxlios possveis e continuaram vindo, de maneira que
chegou o momento em que as foras independentes sobrepujaram
as da antiga metrpole e levaram a melhor, no s em terra
como no mar. O que o governo do Rio menos tinha para dar era
dinheiro e ainda assim contraiu para ajudar a libertao da
Bahia um emprstimo de 400 contos. Nem foi de desprezar-se,
muito longe disso, o esforo local, se bem que o governo
provisrio lutasse com dificuldades crescentes medida que
aumentavam as foras, s tardiamente podendo satisfazer as
requisies. As comisses ou caixas militares adrede
estabelecidas desenvolveram grande atividade para fornecer
pr e etapa, recebendo para isto donativos particulares, nos
pontos ocupados (189).
Em meados de julho saiu do Rio de Janeiro
uma esquadrilha comandada por de Lamare e composta de uma
fragata, duas corvetas e um brigue, transportando o general
Labatut, nomeado comandante das foras de ataque, 34
oficiais para servio, 260 praas, 6 canhes de campanha e
bastante armamento e munies. A escolha de Labatut parece
ter sido de Jos Bonifcio. Era um oficial francs que
servira na guerra peninsular e estivera depois um ano (1812
a 1813) ao servio dos libertadores da Colmbia, no se
entendendo porm com Bolvar e sendo, ao que se diz pelas
suas arbitrariedades, expulso do pas. Assim foi que das
Antilhas passou Guiana Francesa e da ao Rio de Janeiro,
onde foi admitido no exrcito como brigadeiro (190).
Labatut parece por tudo ter sido um homem
difcil de lidar-se com ele. Facilmente brigava: verdade
que pelo fato de ser estrangeiro e em posio de destaque,
tinha tambm que lutar contra os inevitveis preconceitos
nativistas dos oficiais a quem comandava. J antes de deixar
o Rio a expedio, - refere Accioli - urdira-se contra ele
uma conspirao para priv-lo do comando, pelo que mandou
prender vrios dos seus subalternos.
A pequena expedio no pde desembarcar
em ponto algum da costa da Bahia por causa da esquadra de
cruzeiros, para a qual foi nomeado em Lisboa comandante, a
31 de agosto, Joo Flix Pereira de Campos. A de Lamare
tinha sido recomendado que evitasse combate por causa da
muita carga que levava. Labatut foi desembarcar em Macei a
21 de agosto, dali seguindo, a solicitar reforos, para
Pernambuco, onde chegou a 27 e obteve as foras comandadas
pelo major Jos de Barros Falco de Lacerda. De regresso a
Alagoas, continuou por terra at a Bahia com toda sua gente,
passando por Penedo a 28 de setembro. Sua passagem por
Alagoas e Sergipe, caracterizada muito embora por tal
presteza de movimentos, foi til causa nacional. Na
primeira provncia os portugueses fiis ao reino europeu
tinham-se acantonado em Vila Nova para organizar
resistncia, e em Sergipe dominava Pedro Vieira, partidrio
de Madeira. Animado pela presena da tropa, o povo resolveu
essas situaes.
A diviso naval com que Madeira comeou a
patrulha da costa era formada por 4 corvetas, 2 brigues e 1
sumaca, mas logo se viu aumentada de mais 2 corvetas e 1
navio armado, vindos de Lisboa com tropas (192).
O navio So Jos Americano, da frota que transportava
a Diviso Auxiliadora, arribado a Bahia a 18 de maro por
escassez de provises, como consta das suas declaraes,
forneceu a Madeira 206 homens mais, mas as tropas chegadas
de Lisboa em princpios de agosto somavam 1.200 homens e
pouco tempo depois, a 30 de outubro, vieram com uma forte
esquadra de 10 vasos, da qual fazia parte a nau Dom Joo
VI dois batalhes de infantaria, um corpo de artilharia
e soldados avulsos para preencherem vagas. Robusteceram-se
assim consideravelmente os contingentes naval e militar,
aumentando tambm por isso e pelas medidas tomadas por
Labatut do ponto de vista estratgico, a falta e portanto a
carestia de vveres na capital. Nazareth foi o ltimo ponto
donde veio farinha para seu suprimento.
A 1. de abril de 1823 uma nova expedio
viria ancorar no porto de So Salvador, elevando todas as
foras de que para o combate supremo podia dispor Portugal,
graas ao esforo admirvel que realizara para no ceder sem
honra. Com o seu esprito de detalhe refere o baro do Rio
Branco que o poder naval portugus ficou dispondo de
embarcaes montando 438 canhes: s a nau Dom Joo VI
era armada com 74 canhes e as fragatas Constituio
e Prola, uma com 54 e outra com 46, devendo
agregar-se aos 15 navios maiores, as charruas e transportes
e a flotilha do Recncavo.
Em novembro de 1822, por ocasio do
ataque s posies de Piraj, Madeira tinha s suas ordens -
ainda segundo os clculos de Rio Branco - 8.621 homens. Suas
foras, includas as milcias, subiam em abril de 1823 a um
efetivo de 9 a 10.000 homens, mais de metade de soldados
aguerridos nas campanhas peninsulares, a opor ao total de
13.405 homens das tropas brasileiras no mesmo ms e ano -
11.000 combatentes, descontado o pessoal de comissariado e
dos hospitais.
Pernambuco uniu-se ao centro pelo tempo
em que se declarava aguda a crise baiana, extremando-se os
dois campos e abrindo-se a guerra civil. Sua atitude chegou
porm a preocupar seriamente o governo da regncia ao ponto
que Dom Pedro, depois de receber no Pao da Cidade a
deputao que lhe foi tributar homenagem, no se conteve que
no assomasse radiante janela e bradasse para o povo
aglomerado em baixo e assim participando diretamente da vida
poltica: "Pernambuco nosso!". No o era at ento, apesar
das mensagens dos pernambucanos residentes no Rio e
redigidas por Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque, em
que se diz que "o rasgo do Fico colocou o prncipe
acima de todos os outros do universo, deu ao Brasil o
impulso capaz de elev-lo a um grau superior na escala das
primeiras potncias do mundo, forneceu casa de Bragana um
assento indestrutvel e ensinara aos reis a consultarem o
corao humano e a pesquisarem a origem e a necessidade do
pacto social".
No custara pouco obter o resultado que
justamente alegrava Dom Pedro. Tivera-se antes como certo,
desde que se instalara a junta eleita de Pernambuco, que ela
no acompanharia as Cortes. Era demasiado fresca e demasiado
viva a recordao de 1817 para qualquer aproximao ntima
de Portugal, mesmo no terreno constitucional, e o que maior
temor inspirava era seu possvel republicanismo, com a
sugesto da confederao esboada pelos precursores e que
no tardaria a ser a do Equador. Manuel de Carvalho,
intendente da marinha em 1822, j exercia bastante
influncia nas coisas pblicas e estava a caminho de ser o
dolo da classe popular.
Gervsio Pires Ferreira, o presidente da
junta, era uma esfinge, cujas boas graas era foroso ao
governo da regncia alcanar, embora violentando o fado.
Pernambuco optando pela causa comum, era a Bahia colocada
entre dois fogos e o esprito reputado belicoso da populao
pernambucana alistado em prol do ideal de independncia
ligado ao de unio nacional.
A junta nunca foi incondicional na sua
sujeio voluntria s Cortes. Sua repugnncia a assumir
compromissos definitivos, quer com o Soberano Congresso de
Lisboa, quer com a regncia do Rio, provinha em grande parte
de um mais pronunciado sentimento democrtico, que era j
uma tradio poltica filha dos acontecimentos e que
emprestava fortaleza ao particularismo, em obedincia ao
qual o governo do Recife procurava suas vantagens. Aquela
repugnncia provinha tambm da idiossincrasia de Gervsio
Pires Ferreira, que desde sua priso na Bahia, onde se conta
que simulou durante anos perfeita nudez para escapar aos
interrogatrios, ficara sendo um enfermo da vontade. O
visconde de Cairu escreve menos caridosamente que era "um
carter anfbio".
Sua afonia pode mesmo ter sido um
fenmeno nervoso. Nesse estado doentio, depois que,
recuperada a voz, j no carecia de valer-se do papel ou da
pedra para escrever as respostas, valia-se de subterfgios
para no agir e s cedia sob presso, parecendo ento que
nada lhe era custoso sacrificar. At l sua indeciso se
comprazia em suscitar problemas de casustica
constitucional: estava na alada de el-rei delegar sua
autoridade executiva no seu filho como regente, quando j
reconhecera a soberania das Cortes? e outros que tais, que
para alguns dissimulavam um profundo clculo poltico.
Dizia-se que o rico negociante pretendia
aproveitar-se do prestgio moral que o circundava e com que
subira ao poder, para conduzir entre escolhos mil o barco do
Estado ao porto feliz da independncia com a Repblica, onde
a provncia no conseguira fundear em 1817. Porto Seguro,
que no acredita na genial velhacaria com que se quis dotar
Gervsio Pires, aponta sem as explicar diversas
incongruncias nos seus atos: ter feito embarcar sem
promover reao o batalho dos Algarves em janeiro de 1822 e
entretanto consentir em perseguies contra os portugueses
domiciliados em Pernambuco; aplaudir o Fico e
vangloriar-se junto s Cortes de continuar afastado da
regncia; alcanar com refinada ttica, como confessa o
autor da Histria Geral, que das tropas transportadas
de Portugal pela esquadra de Francisco Maximiliano de Sousa
nenhuma ficasse no Recife e resistir aos emissrios do
prncipe para esposar-lhe o partido, furtando-se at a
mandar pr em execuo o decreto de eleio dos procuradores
ao conselho a reunir-se no Rio de Janeiro.
Explicava-se sua hostilidade a esse
conselho de Estado por entender que semelhante criao
invadia as atribuies das Cortes e do soberano e poderia
converter-se num instrumento do governo central do Rio de
Janeiro para dilatar e ao mesmo tempo robustecer sua
autoridade sobre todo o Brasil, ao que Gervsio Pires era
infenso como representante da autonomia pernambucana. Jos
Bonifcio respondeu a tais objees dizendo tratar-se de um
conselho consultivo, para julgar da aplicao ao Brasil das
leis votadas em Portugal e nem sempre adaptadas ao reino
americano, assim cuidando do levantamento nacional, ouvindo
os ministros sobre seus projetos e com eles discutindo a
oportunidade dos mesmos (193).
No Rio tinham corrido notcias de que a
tropa portuguesa chegada em dezembro a Pernambuco a
encontrara boa acolhida e boa camaradagem, e com isto no s
se impressionaram os dirigentes como os agentes do movimento
de emancipao. Foi por estes decidida a ida ao Recife de um
dos 9 iniciadores do clube da resistncia, que se
transformou depois no clube da independncia, compreendendo
entre outros Jos Mariano de Azeredo Coutinho, Nbrega, Jos
Joaquim da Rocha, os dois Drummonds (194). A
escolha recaiu precisamente em Antnio de Meneses de
Vasconcelos Drummond, que de fevereiro a junho fez o seu
trabalho de sapa.
A 1. de junho, reunidos no pao
municipal de Recife o senado da cmara com o juiz de fora
como presidente, o procurador do povo Baslio Quaresma
Torreo, representantes militares de cada um dos batalhes
de linha - um de artilharia, dois de caadores - e do
esquadro de cavalaria e representante do clero, declararam
ser vontade unnime do povo e das sobreditas corporaes que
fosse reconhecido regente do Brasil, com o poder executivo
inerente ao cargo, o prncipe Dom Pedro, independente do
executivo de Portugal, se bem que sujeito s Cortes e ao rei
e em unio com os irmos de Portugal e dos Algarves, "em
tudo o que se no encontrar com os nossos direitos".
A junta relutou bastante em aceder a essa
intimao, negando-se o membro que estava presidindo
interinamente a sesso, cnego Manuel Incio de Carvalho, a
dar andamento ao reconhecimento e juramento reclamados. Foi
quando, depois de trocadas vrias explicaes e no poucas
falas, o presidente Gervsio Pires interveio com a sua
casustica: "Ou isto representao, ou consulta, ou
resoluo j tomada; se representao o governo tomar o
seu acordo e a deferir; se consulta ser preciso convocar
as autoridades para se discutir. Se porm, acudiu o Mayer e
o Meneses, resoluo que o povo j decidiu? Ao que disse o
presidente: Para que esto os senhores abusando da inocente
credulidade deste povo? Repetindo porm os mesmos
perturbadores: Sim, senhor, o povo que assim o quer. Ento
respondeu o presidente: Se resoluo, sou um paisano fraco
e desarmado; assino de cruz; venha o livro da ata da cmara,
que eu e o governo assinaremos dez vezes, se preciso"
(195).
A esta sesso compareceram pessoas
estranhas s corporaes e at provncia: o bacharel
Mayer, "que tinha sido nomeado pela cmara para ir ao Rio de
Janeiro beijar a mo a S. A. Real por ter tido a bondade de
ficar no Brasil"; Drummond, apelidado na ata Meneses,
chamado ao fazer-se mais embrulhado o transe e, aps algumas
negaas mais da junta, um terceiro "partidista da
assinatura, um sr. Joo Estanislau de Figueiredo Lobo,
desconhecido por todos, chegado a esta terra oito dias
antes, talvez como emissrio de algum partido
desorganizador, o qual disse: O povo tem assumido os seus
direitos, o povo quer; preciso obedecer. Ento saiu o
Mayer da sala; demorou-se um pouco fora, e quando entrou
corriam alguns homens, dizendo: O povo est em comoo,
porque lhe foram dizer que o governo no quer reconhecer o
prncipe, e o corpo de artilharia correu para os quartis, e
muita gente com eles, para virem atacar o governo".
O elemento decisivo foi com efeito o
militar, como soe em casos tais. O elemento decisivo foi
ento encarnado pelo tenente de artilharia Wenceslau Miguel
Soares, que representava seu batalho. Saiu dizendo que ia
apazigu-lo, j que o motim roncava fora e voltou para
avisar que a artilharia no se moveria se a junta assinasse.
Entretanto Drummond e o desconhecido discutiam insistindo no
argumento de que o prncipe real "j tinha descido da
qualidade de delegado de S. M. uma vez que el-rei tinha
assinado o decreto da sua retirada para Lisboa, e que por
conseqncia o poder executivo que hoje exercia era o que as
provncias do sul lhe tinham conferido". O prncipe regente
representava portanto uma autoridade revolucionria. O
cnego Manuel Incio, que era forte discutidor, pediu vnia
para responder, ponderando que "para podermos admitir essa
proposio, era preciso que argssemos a S. A. Real do
crime de dspota e de usurpador de jurisdio, pois que ele
tem continuado a exercer o poder executivo sobre esta
provncia sem que ns lhe tenhamos conferido, nem nos
julguemos autorizados para lhe conferir".
O fato mais positivo que a junta estava
coata, segundo observou Filipe Neri Ferreira; o que os trs
de fora negavam fazendo notar que o povo apenas queria o
prncipe com o poder executivo sem restrio, como ele o
exercia no Rio de Janeiro e el-rei em Portugal. Acudiu o
cnego que o poder do prncipe constitua uma mera delegao
para o Brasil, parte do reino unido; mas concordava em que
se ajuntasse - "do modo que o mesmo real senhor se reconhece
delegado". A j os outros queriam que se acrescentasse
hoje, querendo referir-se investidura do Sul.
A discusso era puramente
tcnico-constitucional, das que agradavam a Gervsio Pires,
mas no podia eternizar-se, embora faltasse, na opinio da
junta, para se poder aquiescer com o que se estava chamando
vontade popular, que esta se manifestasse pelos seus rgos
legtimos, que eram as cmaras municipais. Gervsio Pires
acabou por ir "refrigerar-se" como reza a ata, isto , tomou
um copo d'gua e diante de outro apelo, de um moo do Cear
Grande, para que no corresse o sangue, pediu o livro e
assinou. Assinaram todos, conforme testemunha o secretrio
que redigiu a ata, padre Laurentino, Gervsio Pires no
entanto protestando no ser perjuro e continuar obedecendo
s Cortes e a el-rei. O trio interventor no achava dvida
em que se obedecesse s Cortes, "mas h de ser no que no se
opuser aos decretos do prncipe".
As tergiversaes da junta no cessaram
depois de nomeada a deputao que devia ir ao Rio participar
to grata notcia ao chefe do poder executivo do Brasil
autnomo, e da qual era o membro mais conspcuo Filipe Nri
Ferreira, personagem igualmente da revoluo de 1817 e
parente de Gervsio. Ora era um dos trs deputados que no
estava pronto, ora era a escuna, e Manoel de Carvalho,
frente do arsenal, entrava no jogo ao que diz Drummond, para
agravar a demora. Por fim como os dias passavam e nada
acontecia de contrrio resoluo foradamente tomada pela
junta ou de fagueiro aos instintos republicanos de alguns,
l se foi a embarcao a 2 de julho, chegando no Rio a 19,
alegrar o corao dos que na capital suspiravam pela adeso
de algumas unidades, mais do Brasil desunido.
Foi na verdade um dia de festa e tanta
era a excitao, que observa Drummond que ningum reparou
quanto o discurso de Filipe Nri Ferreira era plido e baldo
de entusiasmo. A crtica de Drummond carece neste como em
outros pontos de eqidade. O discurso podia no ser sincero,
mas salvava esplendidamente as aparncias; tratando o
prncipe ora de "anjo tutelar que Dom Joo VI por sua
bondade, suma perspiccia e previso do futuro, se dignou
deixar como penhor da sua ternura e amor", ora de "jovem
heri que, qual outro Tito, vai j fazendo as delcias deste
vastssimo reino". Desculpava-se at o orador de no ter ido
antes a deputao por causa das vicissitudes provenientes do
estado do reino unido e da "natureza das grandes mudanas,
que no tinha dado tempo a que se pudessem gozar frutos
sazonados".
Drummond era pois por demais exigente na
eloqncia que reclamava de Filipe Nri Ferreira, o qual no
entanto, pela dubiedade do seu proceder, dava razo s
tramas que por esse tempo estava tecendo no Recife Bernardo
Jos da Gama, para acabar com a prpria junta e substitu-la
por outra de carter mais francamente unionista que ele
dirigisse ou inspirasse. Esse desembargador e futuro
visconde de Goinia fora a Pernambuco, despachado do Rio
pelo elemento mais poderoso da maonaria, que era a faco
avanada, com os mesmos intuitos que Drummond, com uma
misso todavia mais radical pela gente que a instigava,
visando a derrubar quando a ditada por Jos Bonifcio se
contentava com atrair. J encontrou porm consumada a adeso
e prestes a partir a deputao.
Gama era adversrio de Jos Bonifcio e
no atendeu ao pedido de Drummond de no promover a
dissoluo da junta: verdade que Gervsio Pires continuava
irremediavelmente a tergiversar, valendo-se da cmara de
Olinda e pretextando agora ter que consultar as cmaras
municipais e proceder primeiro ao recenseamento da
populao, antes de fazer eleger os deputados Constituinte
brasileira, no que foi novamente contrariado e compelido a
agir diferentemente pelo povo e tropa (3 de agosto). Diz Rio
Branco (197) que auxiliava grandemente Gervsio
Pires nessa poltica que at o fim seguiu, o padre Venncio
Henriques de Resende, republicano separatista que fez parte
da Assemblia Constituinte de 1823.
Logo que Bernardo Jos da Gama pde
faz-lo, realizou seu intento: ajudado pelo capito Pedroso
da revoluo de 1817, de regresso do calabouo de Lisboa com
o indulto das Cortes, levou a cabo a 16 de setembro um
pronunciamento que lhe no aproveitou diretamente, porquanto
no figurou nem no governo temporrio formado a 17, nem na
junta nomeada a 23 pelos eleitores do Recife e Olinda
(198).
Num tpico sobretudo agiu Filipe Nri
Ferreira no Rio de Janeiro com hipocrisia e foi na questo
do tratamento dos oficiais, que ele alis apodava de
facciosos no ofcio de 28 de junho ao prncipe regente, em
que historiava o reconhecimento do executivo brasileiro.
Esses oficiais eram os da promoo da junta de Goinia.
Havia contudo outros, promovidos por Lus do Rgo e que eram
os que se lhe tinham conservado fiis, cuja lista fora para
ser confirmada em Lisboa. Os primeiros recebiam entretanto
desde a deposio do capito-general o soldo dos seus novos
postos e todos usavam as respectivas insgnias. Naturalmente
os da promoo nacionalista eram pela causa do prncipe,
porque esta encarnava a independncia na qual, segundo de l
mandava dizer Drummond para o Rio desde sua chegada, se
consubstanciava o sentimento da terra, "precisando os
pernambucanos mais de quem os contivesse do que de quem os
animasse a marchar", sendo natural que assim fosse num meio
como o que produziu o movimento de 1817.
Por sugesto de Filipe Nri Ferreira ao
ministro da guerra, que desde 27 de julho era Nbregai
(99), ficou a sorte das duas promoes entregue ao
arbtrio da junta pernambucana, a qual no deixaria de
vingar-se daqueles que a tinham forado a submeter-se se
Drummond no fizesse revogar a ordem ou melhor... se a junta
no tivesse deixado de existir.
A mudana de poltica em Pernambuco foi
proveitosa prpria provncia porque sua condio estava
deslizando rapidamente para a anarquia sob pretexto de
conquistar a liberdade. As notcias trazidas de Pernambuco
pelo cnsul geral ingls Chamberlam, quando por l passou em
maio de 1822, eram que os portugueses se viam perseguidos,
correndo o risco de s-lo no s os Outros europeus como
toda a populao branca (200). Poucos dias depois
(201) escrevia o encarregado de negcios da ustria
que a junta de Pernambuco, "justamente alarmada depois da
expulso das tropas portuguesas e atemorizada pelo esprito
da populao negra, rogara a S. A. Real que lhe enviasse
tropas brasileiras".
A mudana foi tambm eficaz na esfera de
influncia pernambucana que se exercia ento de Alagoas
(202) ao Cear, podendo dizer-se que, afora a Bahia,
s restava o Par-Maranho para ligar sua sorte do Brasil
unido. Este trabalho estava reservado ao sea-power
criado pela jovem nacionalidade e cuja direo foi confiada
a lord Cochrane, que se sabia andar pouco satisfeito com os
que o tinham convidado a prestar seus servios causa da
emancipao das colnias espanholas do pacfico.
Escreveu-lhe naquele sentido, a mandado de Jos Bonifcio
(setembro de 1822), o cnsul brasileiro em Buenos Aires,
Manuel Correia da Cmara; sua carta foi de 4 de novembro e o
almirante respondia a 29, aceitando. Segundo Cairu, o
prprio Dom Pedro escreveu diretamente e do seu punho.
Cochrane era um valente marinheiro, mas
um esprito srdido. Nessa poca em que lutar e morrer pela
liberdade dos outros povos no era coisa rara, ele sara da
Inglaterra, mas no impelido pelo romantismo de Byron e
muito mais lhe assentaria do que a este bardo expirar nos
lugares em que os aronautas foram arrebatar o velocino de
ouro. A sua preocupao como almirante dos pases exticos
sul-americanos cifrou-se nas presas. O lado moral da luta em
que andava envolto escapava-lhe inteiramente. Sua reputao
de aventureiro corria alis mundo. Mareschal, escrevendo a
Metternich (203), dele dizia que era "um bandido
audaz, capaz de tudo, s conhecendo um fito e um desejo, o
ouro; pronto igualmente a praticar um grande atentado e uma
misria por um escudo, contando-se a esse respeito os atos
mais extraordinrios".
CAPTULO XIV
O TRABALHO DAS LOJAS MANICAS
O PRNCIPE DEFENSOR PERPTUO E A CONVOCAO DA CONSTITUINTE
O autor da Exposio histrica da
maonaria no Brasil (204) escreve que as
lojas manicas no Brasil datam dos ltimos tempos do regime
colonial e precederam mesmo a trasladao da corte
portuguesa para o Rio de Janeiro. Umas tinham-se instalado
sob os auspcios do Grande Oriente Lusitano, outras do de
Frana e algumas como independentes, todas do rito
adonhiramita, fundado pelo baro de Tschudi e compreendendo
13 graus, correspondendo o ltimo ao 21 do rito escocs.
Antes pois da famosa loja Comrcio e Artes, que data
de 24 de junho de 1815, teriam existido outras no Rio, Bahia
e Pernambuco, que continuaram sob o governo de Dom Joo VI a
desenvolver sua atividade silenciosa, fundando-se mesmo uma
composta em parte de empregados do pao com conhecimento do
ento prncipe regente, cujo fervor religioso nunca foi
grande e menos ainda de carter ultramontano.
Drummond contesta normalmente que Dom
Joo VI tivesse cincia dessa loja, mas o fato dela
denominar-se, como ele prprio escreve, S. Joo de
Bragana, depe contra a sua negativa. A perseguio s
lojas manicas s ocorreu em todo o caso quando a revoluo
pernambucana de 1817 patenteou seu carter poltico
anti-monrquico. O alvar de penas foi at mandado transitar
pela chancelaria do reino, o que escreve Drummond que j
cara em desuso. Houve por algum tempo o pnico da
maonaria, alimentado por espias e delatores, e no s as
lojas foram mandadas Jissolver, como se criou um juzo da
inconfidncia que cometeu arbitrariedades.
A loja Comrcio e Artes adiara sua
incorporao ao Grande Oriente Lusitano, ao qual se tinham
unido as que anteriormente funcionavam no Rio de Janeiro,
porque j aspiravam os seus membros instalao de um
supremo poder manico brasileiro - manifestao entre
tantas da formao de um sentimento particularista,
destinado em breve trecho a ser nacional. As lojas que se
tinham ido espalhando - em Pernambuco havia mesmo um
captulo - sofreram tanto na sua prosperidade com a reao
oficial que quase todas tiveram que se dispersar. A
revoluo portuguesa de 1820, seguida do movimento
constitucional no reino-unido do Brasil, foi que determinou
sua reapario, reinstalando-se a loja Comrcio e Artes
a 2 de junho de 1821 na casa ocupada pelo capito de
fragata Moncorvo, na rua de So Joaquim, esquina da do Fogo.
Entre os fins da organizao manica
contam-se a prtica da filantropia, o aperfeioamento da
moral, a cultura cientfica e artstica e o estmulo do
comrcio livre e da produo agrcola, isto , o
aproveitamento das fontes de riqueza das naes sob o
funcionamento de um regime liberal. Este regime liberal
podia na Europa contentar-se com ser a consagrao dos
direitos do homem, isto , da igualdade dos direitos civis e
polticos para todos os membros da comunidade. Na Amrica
porm tinha o mesmo regime que possuir um duplo aspecto,
juntando igualdade dos cidados a independncia da nao.
O nmero dos iniciados, que eram portanto
outros tantos aderentes da causa do Brasil, cresceu tanto
que a 28 de maio de 1822 a loja Comrcio e Artes teve
que se dividir em trs e fundar-se o Grande Oriente do
Brasil, continuando a loja me com o seu nome primitivo, que
significava a "idade de ouro", e sendo dados s outras duas
em que se desdobrou os ttulos de Unio e Tranqilidade,
palavras atribudas ao prncipe para sossegar o povo no
dia 9 de janeiro, e Esperana de Niteri, designao
simblica da projetada emancipao do reino americano.
A participao manica no Fico j
fora notvel, mas onde ela aparece verdadeiramente conspcua
a 13 de maio de 1822 quando, por ocasio de celebrar-se o
aniversrio natalcio de elrei, Dom Pedro recebeu a
honrosssima investidura de defensor perptuo do Brasil,
ttulo lembrado pelo brigadeiro Domingos Alves Branco Muniz
Barreto para que dignidade de regente, outorgada pelo
monarca, correspondesse outra dignidade emanao
democrtica, outorgada pelo povo. Com o aumento de
atribuies que acarretava a investidura, o prncipe regente
poderia, no dizer de Armitage, com as aparncias da
legalidade conceder ao Brasil sua legislatura, que era a
meta dos esforos do momento.
O Grande Oriente Brasileiro teve por
primeiro gro-mestre Jos Bonifcio de Andrada e Silva,
ento no apogeu do seu prestgio, secundando-o como adjunto
o marechal Joaquim de Oliveira lvares. Participada sua
criao, que teve lugar verdadeiramente a 24 de junho,
quando se procedeu com a maior regularidade ao sorteio dos
operrios e eleio dos oficiais das lojas metropolitanas,
foi a nova organizao imediatamente reconhecida pelos
Grandes Orientes da Frana, Inglaterra e Estados Unidos
(205).
Dessas lojas metropolitanas faziam tambm
parte os antagonistas da primeira hora de Jos Bonifcio,
logo depois seus acrrimos inimigos polticos, os quais,
para grangearem seu objetivo de afastar o ministro paulista
do poder, tinham que comear por chamar a si as boas graas
do prncipe, trilhando para isto o caminho da lisonja, que
o que quase infalivelmente conduz ao favor dos poderosos.
Melo Moraes inclui nessa conspirao
contnua da adulao o pedido feito por Jos Clemente
Pereira, frente do senado fluminense, para que Dom Pedro
aceitasse o ttulo, no s de defensor perptuo como de
protetor perptuo do Brasil. Esta reencarnao de Cromwel
sorriu porm pouco ao regente, que com esprito e bom gosto
retorquiu, segundo ele prprio conta ao pai (206):
"Honro-me e me orgulho do ttulo que me confere este povo
leal e generoso; mas no o posso aceitar tal como se me
oferece. O Brasil no precisa da proteo de ningum;
protege-se a si mesmo. Aceito porm o ttulo de Defensor
Perptuo e juro mostrar-me digno dele enquanto uma gota de
sangue correr nas minhas veias". Foi logo assinada ata de
aceitao e outra ata do reconhecimento do ttulo pela
municipalidade, corporaes, cidados recomendveis
presentes e comandantes e oficiais da 1. e 2. linha da
tropa.
Jos Bonifcio nada teria mesmo que opor
a qualquer demonstrao posto que mais lata do sentimento
nacional, pois que tanto o esposara que como gro-mestre
aceitara - segundo consta das atas originais que Melo Moraes
diz ter tido em seu poder - os planos de independncia que
desde algum tempo andava elaborando a loja Comrcio e
Artes (207). Acompanhou-o nesta aceitao seu
irmo Martim Francisco e, como natural, aumentou com isto
o nmero das adeses e iniciaes.
No fiava contudo Jos Bonifcio somente
da atividade das lojas a realizao das suas vistas e talvez
mesmo no concedesse instituio manica todo o crdito
que esta pretendia, preferindo-lhe o Apostolado, que era
inequivocamente monrquico-constitucional, quando a outra
pendia para a pura democracia. Seguramente no concedeu Jos
Bonifcio maonaria ateno idntica dispensada pelos
seus desafetos: o banquete de instalao do Grande Oriente
do Brasil foi presidido por Ledo, na ausncia do gro-mestre
e do seu adjunto. Jos Bonifcio sentia-se pelo contrrio
onipotente, na expresso de Rio Branco, na outra sociedade
secreta organizada quase simultaneamente. Do livro de atas
da "Nobre Ordem dos Cavalheiros de Santa Cruz, denominada
Apostolado" (208) se colige que as suas sesses
comearam a 2 de junho de 1822 e se estenderam at 15 de
maio de 1823, figurando entre os associados Ledo, Nbrega e
outros dos adversrios de Jos Bonifcio. Dom Pedro era o
arconte-rei e a sociedade dividia-se em palestras e
decrias. Seus membros apelidavam-se colunas do trono.
As figuras salientes da maonaria eram
justamente as que no estavam de corao com o ministro da
regncia e lhe preparavam a queda, minando o seu valimento.
O encarregado de negcios da ustria j no seu ofcio de 11
de abril previa distrbios por ocasio das eleies para o
conselho dos procuradores. O prncipe achara-se em Minas
numa viagem de xito problemtico e a sorte do seu conselho
de Estado estava por assim dizer ligada com a sua. Os
inimigos de Jos Bonifcio aproveitaram o momento para
demonstrar seu descontentamento contra o ministro
discricionrio e bairrista - tais eram as acusaes que
contra ele se formulavam - espalhando-se mesmo o rumor de
que havia o projeto de for-lo a resignar e aclamar-se uma
junta, moda constitucional.
Segundo Mareschal (209), os
autores do projeto pertenciam faco portuguesa e
faltavam-lhes os elementos para levarem a melhor o seu
intento. O domnio militar lusitano perdera suas
possibilidades agressivas: seria lcito ao general Madeira,
com os recursos de que dispunha, defender-se e defender a
Bahia, mas no lhe era dado conceber ataque algum vitorioso
para o lado do sul. Mesmo que se lhe juntassem as tropas de
Lecor e que se fizesse assim possvel alguma surpresa, esta
teria que se desmanchar e dar lugar a uma reao feliz.
possvel que dos brasileiros exaltados alguns prestassem seu
concurso socapa contra Jos Bonifcio. Entre eles e os
portugueses existia vivo o elo de Jos Clemente Pereira. Os
partidos extremos costumam sempre aproximar-se quando fazem
oposio ordem de coisas estabelecida e os portugueses do
Brasil no podiam ser adversos ao regime constitucional,
pois que esse regime servia de instrumento recolonizao.
No podia portanto haver no Brasil
verdadeiros "corcundas" ou reacionrios, visto que do seu
lado os nacionais o menos que queriam era autonomia, donde
provinha um desacordo mais acentuado com os regeneradores
pela maneira diversa por que uns e outros compreendiam a
aplicao da liberdade. A circular da Santa Aliana expedida
no Congresso de Verona em 14 de dezembro de 1822 - o
congresso em que Chateaubriand obteve a interveno na
Espanha - dizia que "ricas colnias justificam a sua
separao exatamente pelas mesmas mximas com que a
me-ptria fundou seu direito pblico e que ela quer, mas em
vo, condenar no outro hemisfrio".
Jos Bonifcio nunca pecou por ter a mo
leve nesses casos. Tendo sido descobertos os cartazes
hostis, adiou sine die as eleies dos procuradores
por um edital do ouvidor da comarca, sem apontar motivo
determinado; prendeu e deportou com aparato uns tantos
implicados, todos portugueses, e espalhou patrulhas e
destacamentos montados pela cidade, ao ponto de Mareschal
(210) achar exagerado o alarme, porquanto o nico
apoio para um motim dessa natureza se encontraria nos
soldados portugueses da esquadra, aos quais tinha sido dada
baixa e que estavam distribudos pelos diferentes corpos da
guarnio. "As deportaes sem justificao, escrevia o
diplomata austraco, desagradam geralmente; este pas nunca
foi afeito s medidas rigorosas: o governo do rei era
absoluto, mas pecava pelo excesso oposto", Mareschal
referia-se ao ramerro quotidiano, esquecendo ou calando a
represso cruel do movimento pernambucano.
* * *
As primeiras notcias chegadas a 3 de
maio, pela ilha da Madeira, do resultado dos trabalhos da
comisso do Brasil nas Cortes de Lisboa agradaram a opinio
pblica e o prncipe, que a 5 regressou de Minas, at se
mostrou altamente satisfeito com a atitude mais cordata que
as Cortes pareciam querer adotar para com sua lealdade e
franqueza (211). O poder da imprensa foi-se porm
depressa revelando na desfigurao poltica a que procedeu,
mostrando nas suas crticas que as anunciadas concesses no
eram afinal consistentes, nem muito menos completas; e que o
projeto das relaes comerciais envolvia a ameaa de um
logro formidvel. Persistia evidente a inteno de privar o
Brasil de um nico centro executivo nacional, assim como de
tribunais e institutos superiores (212), e a
reciprocidade mercantil em perspectiva no passava de uma
miragem enganadora desde que os gneros coloniais do Brasil
no sofriam concorrncia em Portugal, tendo os gneros
similares das possesses inglesas e francesas mercado
obrigado nas suas respectivas metrpoles, ao passo que o
Brasil teria que se contentar com os artigos manufaturados
portugueses com a excluso desvantajosa dos produtos
anlogos das outras indstrias estrangeiras, mais
aperfeioadas e cata de consumidores.
O remdio estava naturalmente indicado:
era a convocao de uma constituinte brasileira. O movimento
para a sua reunio partiu das lojas manicas, verdadeiros
clubes polticos que no possuam ainda a vlvula de uma
assemblia que eles dominassem e inspirassem. Deixar o
Brasil sem representao nacional quando no Congresso de
Lisboa as vozes da sua deputao eram abafadas pelas da
maioria portuguesa, maioria que somava o duplo, era deixar
sua administrao sem fiscalizao e sem freio, permitir que
se prolongasse a condio colonial pela virtual
irresponsabilidade do seu executivo, no escolhido pelo
pas, mas composto de delegados da autoridade metropolitana.
O status do Brasil no diferiria assim do de qualquer
possesso portuguesa da frica ou da sia se o prncipe
regente, mandando submeter os decretos das Cortes sua
sano aps parecer do conselho dos procuradores, no
houvesse colocado de algum modo a autoridade do executivo
brasileiro acima da soberania nacional representada pelas
Cortes.
Com a volta do prncipe capital
recomeou a propaganda de cartazes para sua ligao com o
Brasil por meio de um lao indissolvel, que s podia ser em
boa lgica a sua aclamao como soberano, independente de
Portugal. A maonaria achou para comear o meio termo do
defensor perptuo, mais que regente e menos que rei. Comeou
desde a Jos Bonifcio a ser sobrepujado pelo grupo
avanado que, uma vez ganho aquele ponto, pensou em disputar
outro.
O Conselho de Estado, com suas
Excelncias, no agradara geralmente quando proposto por
cerimonioso, antiquado e sobretudo pouco definido; um
verdadeiro Congresso, uma cmara de deputados, parecia coisa
mais adequada e mais vivel. Jos Bonifcio no era
absolutamente infenso ao sistema parlamentar, mas entendia
que a obra do conselho dos procuradores precedesse a da
Assemblia Constituinte, que por assim dizer a preparasse,
antes de introduzir-se um sistema eleitoral baseado sobre a
propriedade e organizar-se uma ou mesmo duas cmaras
moderadas. Queria tambm ver que espcie de gente saa das
urnas eleitorais depois de mais de um ano de agitao
constitucional: o resultado em So Paulo e Minas veio a ser
considerado satisfatrio, mas no Rio o lema eleitoral seria
- nada de desembargadores, isto , nada de
conservadores. Era uma tendncia radical que se anunciava,
artificialmente estimulada pela j9vern imprensa, sem contudo
chegar a afetar a calma geral, muito pela pouca inclinao
que o elemento rural dos fazendeiros eleitores mostrava
ainda pela efervescncia partidria.
Ledo e Janurio redigiram a representao
que Jos Clemente Pereira se encarregou de fazer perfilhar
pelo senado da cmara e que apresentou ao prncipe regente
no dia 23 de maio, levando consigo, como por ocasio do
Fico, emissrios de outras provncias. Desta vez
acompanharam-no dois de So Pedro do Sul e um do Cear, que
foi Pedro Jos da Costa Barros. O intuito oculto dessa
manifestao era, ao que parece, obviar a outorga de uma
Carta, processo poltico que estaria mais de harmonia com as
idias de Dom Pedro e at com o teor do seu decreto de
convocao do conselho de procuradores quando se referia ao
sistema constitucional que, dizia, "Eu jurei dar-lhe" (ao
Brasil) o que de resto no era historicamente de uma
rigorosa exatido, pois que ele apenas jurara em nome de
el-rei aceitar a constituio, que as Cortes de Lisboa
elaborassem, como lei orgnica tambm do reino americano.
Ao apresentar a representao Jos
Clemente Pereira fez um dos seus discursos j habituais,
dando como razo para a Assemblia Constituinte a mesma que
j dera para o Fico; a lei suprema de salvao
pblica consoante a mxima romana - Salus populi suprema
lex. Tal assemblia era necessria para emprestar
direo, confiana e garantia unio das provncias e para
regular o estado de unio com Portugal, no qual imperava -
declarava-o sem ambages - a traio portuguesa. Na opinio
de Cairu, a fala do presidente do senado da cmara pecava
por quase cominatria, pois "instava para deferimento
peremptrio", julgando ocioso "produzir motivos para
persuadir, aonde o rbitro na escolha falta".
Jos Clemente Pereira enumera as
vantagens de uma legislatura: o impulso que daria ao
executiva, peada pela falta do "poder de fazer leis", sem
lograr soltar as velas sua energia e patriotismo; o atraso
dos negcios pblicos se perdurasse semelhante situao; a
liberalizao e proteo a serem dispensadas a todas as
"alavancas poderosas da grandeza nacional", desde a
agricultura e comrcio at as cincias e artes; os meios que
facultaria para o aumento da marinha e o preparo do
exrcito; o aproveitamento condigno dos recursos do pas,
abolindo-se os erros do antigo sistema; a consolidao
finalmente da unio.
Na perorao exclamou o orador "estar
escrito no livro das Leis Eternas que o Brasil devia passar
naquele dia lista das naes livres: era decreto do
rbitro do Universo, havia de cumprir-se quisessem ou no
quisessem os mortais, que impedir a sua marcha a nenhum era
dado. Obedecei, Senhor, a esta lei eterna...". Na
representao da lavra de Ledo e Janurio o imperativo ainda
era interrogativo, mas Cairu escreve que foi "objeto de
pblica censura a frase compulsria e ditatorial do final do
requerimento, o qual rezava assim: "Tu j conheces os bens e
os males que Te esperam e a Tua Posteridade... Queres? ou
no queres? Resolve, Senhor!".
A representao um libelo antilusitano.
Trata Portugal de potncia "inimiga da glria e zelosa da
grandeza do Brasil, pois que queria firmar sua ressurreio
poltica sobre a morte do nascente imprio luso-brasileiro".
Chama ao passado colonial do Brasil "a cadeia tenebrosa dos
seus males". Portugal no lhe deu mais do que escravido, e
s escravido; retribuiu o seu ouro e os seus diamantes com
"opresso e vilipndio"; queimou-lhe os teares, negou-lhe a
luz das cincias, acanhou-lhe a indstria, para que do
Universo conhecesse apenas o pequeno terreno ocupado pela
me-ptria, donde vinham "os tiranos indomveis que o
laceravam". "Agora tempo de reimpossar-me da minha
liberdade; basta de oferecer-me em sacrifcio s tuas
interessadas vistas: assaz te conheci, demasiado te servi"
A obra das Cortes flagelada com
linguagem incisiva como tendo faltado aos princpios
universais que proclamara, perjurando as bases que
estabelecera, traindo os direitos da natureza e das gentes,
lanando no Brasil "os ferros que o Soberano Congresso
pendurava no altar da liberdade" - tudo isto em negao da
"maior, da nica idia verdadeiramente sublime que um
europeu tem concebido das colnias da sua ptria", que foi a
elevao do Brasil a reino por Dom Joo VI.
Agira Portugal contra todos os seus
interesses, esquecido de que a grandeza do Brasil era a sua
ncora de salvao. Seu proceder foi inbil tanto quanto
odioso: Ledo e Janurio dizem-no, por vezes com um vigor e
amplido de frase que os pem ao nvel dos publicistas
polticos que deixaram nome nessa poca de romantismo das
idias. Outras vezes, contudo, descaem numa nfase e num
exagero a que dificilmente pode escapar um documento
poltico dessa natureza. Lus do Rego e Avilez so por
exemplo "os monstros que dilaceravam as provncias"; as
tropas lusitanas remetidas para ultramar so "cortes
pretorianas"; o decreto que sancionou a diviso "da tnica
inconstil do Brasil prometeu o ttulo de benemritos aos
que melhor assanhassem as serpes na cabea da fria".
O Soberano Congresso faltou para com o
Brasil aos princpios da moral, e da igualdade, e da
natureza, e da poltica e da razo, "deixando o esqueleto do
Brasil reduzido deplorvel sorte da sia Menor". A
preferncia ntima dos dois redatores da representao por
uma forma mais adiantada de governo acha-se cuidadosamente
dissimulada, dizendo-se at que o Brasil mostrou "a
prescincia poltica dos seus verdadeiros interesses, porque
abraou desde j o sistema que h de um dia dominar em toda
a Amrica; por ora, em muitos lugares encantada com os
prestgios da democracia".
A situao exigia uma soluo e esta no
podia ser outra seno reempossar-se o reino americano,
reconhecido por todas as potncias e com todas as
formalidades que fazem o direito pblico da Europa, da
poro de soberania que lhe competia. Talvez o Congresso "no
devaneio da sua fria" considerasse isso rebelio, quando na
verdade era um "passo herico". Para tal inconseqncia
seria mister primeiro declarar rebelde a razo, que
prescreve aos homens no se deixarem esmagar uns por outros;
rebelde a natureza, que ensinou aos filhos a separarem-se
dos pais quando atingem a virilidade; rebelde a justia, que
no autoriza usurpaes nem perfdias; rebelde Portugal, que
encetou a marcha; rebelde o Congresso mesmo, porque seu
proceder acelerou a poca da futura desunio prometida pela
fora irresistvel das coisas, mas fatal para a parte que
visava engrandecer-se.
A concluso positiva e prtica era que o
Brasil, composto de elementos muito diversos dos de
Portugal, "carecia de uma administrao prpria, de uma
legislao bebida na natureza de suas necessidades e
circunstncias, e no de uma legislao verstil, sem base e
sem interesse, como so todas aquelas que se operam de
longe, e debaixo da inspirao poderosa de legisladores
parciais, sem adeso ao lugar para que legislam, e sem medo
do raio vingador da pblica opinio, que daqui no pode
feri-los seno frio e sem vigor".
A primeira faina da Assemblia
Constituinte Brasileira seria examinar, rever, emendar e
alterar a Constituio Portuguesa, adaptando-a seo
americana da Monarquia. A unio ainda era respeitada nessa
representao, contanto que no envolvesse sacrifcio de
independncia. "A independncia, senhor, no sentir dos mais
abalizados polticos, inata nas colnias, como a separao
das famlias o na humanidade; e a independncia assim
modificada de honra ao Brasil, de utilidade a Portugal,
e de eterno vnculo para a Monarquia em geral. A natureza
no formou satlites maiores que os seus planetas. A Amrica
deve pertencer Amrica, a Europa Europa; porque no
debalde o Grande Arquiteto do Universo meteu entre elas o
espao imenso que as separa. O momento para estabelecer-se
um perdurvel sistema, e ligar todas as partes do nosso
grande todo este, desprez-lo insultar a divindade, em
cujos decretos ele foi marcado, e por cuja lei ele apareceu
na cadeia do presente. O Brasil no meio de naes
independentes e que lhe falam com o exemplo da felicidade,
exemplo irresistvel porque tem por si o brado da natureza,
no pode conservar-se colonialmente sujeito a uma nao
remota e pequena, sem foras para defend-lo, e ainda menos
para conquist-lo. As naes do Universo tm sobre ns, e
sobre ti os olhos: ou cumpre aparecer entre elas como
rebeldes, ou como homens livres e dignos de o ser".
Diz Porto Seguro que pelo exerccio desse
direito constitucional de petio que as bases tinham
consagrado, o governo se isentava da responsabilidade de
certas medidas de maior alcance no que tocava sua
iniciativa; mas caso foi este em que o pedido foi alm do
que Jos Bonifcio, pelo menos, desejaria conceder. Afora os
inconvenientes mencionados, achava ele prematura a
convocao de uma constituinte nacional antes de assegurada
a unio para a qual, se todos tendiam - o que no era certo
em absoluto -, no era com igual af, havendo obstculos a
superar e resistncias a vencer. Insinuou portanto o
ministro ao regente uma resposta evasiva: que ia apelar para
o Conselho de Estado, prestes a reunir-se, e cujo parecer
carecia de ouvir, bem como o das outras cmaras municipais,
antes de dar um passo to importante.
Para o no retardar contudo, fixava o
prncipe - estava-se a 23 de maio - a eleio dos dois
procuradores fluminenses para 1" de junho e a abertura do
conselho para o dia imediato, com os procuradores presentes,
no mais se esperando pelos de trs provncias. Foram
eleitos o velho Jos Mariano de Azeredo Coutinho e Joaquim
Gonalves Ledo: com estes e o procurador do Estado
Cisplatino, Lucas Obes, se fez a instalao, dizendo porm
Porto Seguro, que chegaram a ser dez os procuradores que
trabalharam em conselho (213).
Na proclamao que lanou no dia 2 de
junho o prncipe precavia os brasileiros contra os perigos
que os rodeavam e os "terrveis monstros que por todas as
vossas provncias esto semeados" e que atraioavam o
Brasil, porque "quem diz brasileiro diz portugus, mas
provera a Deus que quem dissesse portugus dissera
brasileiro". O conselho dos trs julgou que os monstros,
se combatiam com uma legislatura e no prprio dia da sua
instalao assinaram a representao redigida por Ledo, em
que se dizia que "a salvao pblica, a integridade da
nao, o decoro do Brasil e a glria de S. A. Real instavam,
urgiam e imperiosamente comandavam a convocao com a maior
brevidade possvel de uma assemblia geral de representantes
das provncias do Brasil".
Das mesmas premissas postas dias antes e
auridas em Jean Jacques Rousseau, a saber, no desejo de ser
feliz, "que o princpio de toda sociabilidade, bebido na
natureza e na razo imutveis", deduziu logicamente o
inesgotvel panfletrio que Ledo era sempre, mesmo nas suas
splicas ou nos seus manifestos, uma concluso idntica da
representao popular, posto que porventura em termos mais
confiantes. Se no fosse a personalidade do prncipe "que o
pas adora e serve ainda mais por amor e lealdade, do que
por dever e obedincia, o Brasil romperia os vnculos morais
de rito, sangue e costumes, e, quebraria de uma vez a
integridade da nao".
Nem deixava Ledo, como homem pblico que
almeja responsabilidades, de enunciar a frmula poltica do
momento: "O Brasil no quer atentar contra os direitos de
Portugal, mas desadora que Portugal atente contra os seus: o
Brasil quer ter o mesmo Rei, mas no quer senhores nos
deputados do Congresso de Lisboa: o Brasil quer a sua
independncia, mas firmada sobre a unio bem entendida com
Portugal, quer enfim apresentar duas grandes famlias
regidas pelas suas leis, presas pelos seus interesses,
obedientes ao mesmo chefe". Era para ambos os pases o
regime do dualismo levado at sua ltima expresso, at o
ponto mesmo da separao, a qual a pessoa de um soberano
comum unicamente inibia e prevenia, pois que do Congresso
coisa alguma poderia esperar Portugal: "O arrependimento no
entra em coraes que o crime devora", escrevia Ledo. Era
para cada um sua independncia limitada ao mesmo tempo que
fortalecida pelo vnculo pessoal e exclusivo do monarca.
Jos Bonifcio tomara o conselho,
includo na representao dos procuradores, de que "pequenas
consideraes s devem estorvar pequenas almas" e
conformara-se - a expresso oficial exarada no
documento - com a soluo da crise proposta na representao
aludida, a saber, "a convocao de uma assemblia
luso-brasiliense, que, investida daquela poro de soberania
que essencialmente reside no povo deste grande e riqussimo
continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a
sua independncia, que a natureza marcara e de que j estava
de posse, e a sua unio com todas as outras partes
integrantes da Grande Famlia Portuguesa, que cordialmente
deseja" (texto do decreto).
Dias antes j Jos Bonifcio dissera a
Mareschal (214) que era impossvel resistir
corrente: o pas achava-se em estado febril. O que o
preocupava mais, e ele reputava impossvel, era encontrar
100 homens aptos para as funes de legisladores. No era
infelizmente possvel alist-los fora como soldados: estes
podia a regncia engajar na ustria ou na Sua por
intermdio de Schffer (215).
* * *
O decreto de convocao da constituinte
brasileira de 3 de junho e, posto que referendado por Jos
Bonifcio, foi da lavra de Ledo, o que quer dizer que o
acordo entre os dois elementos volvera a fazer-se, pelo
menos para a emergncia. Era cedo para romper, antes de
obtido o resultado essencial. "Nosso inimigo s ser aquele
que ousar atacar a nossa independncia", dizia-se na
representao do senado da cmara solicitando a capacidade
legislativa para a nao ultramarina: fosse ela embora a
expresso da "independncia moderada pela unio nacional" de
que falava a proclamao de Dom Pedro de 2 de junho, o que
tanto valia dizer que o inimigo s podia ser um Portugal com
sanha de recolonizador.
As instrues para as eleies so da
data de 19 de junho e traduzem o mesmo egrgio bom senso que
produziu as instrues aos deputados paulistas s Cortes de
Lisboa. Segundo elas a constituinte seria organizada por
sufrgio indireto, sendo os eleitores de parquia escolhidos
diretamente pelo povo das freguesias, presidindo o ato o
presidente da cmara ou um dos vereadores e assistindo a ele
o proco, espcie de fiador da identidade dos eleitores, que
devia alm disso, no cumprimento das suas obrigaes
religiosas, celebrar antes uma missa do Esprito Santo e
pregar um sermo adequado ocasio. Cada 100 fogos ou
frao acima de 50 dava direito a 1 eleitor de parquia, e
eleitor deste era todo cidado casado e todo solteiro de 20
anos para cima, com um ano de residncia na freguesia,
excludos os religiosos regulares, os estrangeiros no
naturalizados, os criminosos e os assalariados com exceo
dos guarda-livros e primeiros caixeiros, dos criados da casa
real que no fossem de galo branco e dos administradores
das fazendas rurais e fbricas.
Os secretrios e escrutinadores, cujo
nmero variava segundo os fogos da freguesia e que faziam
parte da mesa ou junta paroquial, deviam ser sujeitos pelo
presidente aprovao ou rejeio por aclamao do povo. A
mesa decidiria sobre as denncias de suborno e conluio, com
perda para o incurso no delito, ou para o seu caluniador, do
direito ativo e passivo de voto.
O sufrgio teria lugar por listas
assinadas pelo votante de freguesia, com sua firma ou de
cruz, sendo este analfabeto e escrevendo sua lista o
secretrio da mesa. Para se ser eleitor de parquia era
mister ter 25 anos, ter domiclio certo na provncia desde
quatro anos antes, "ser homem probo e honrado, de bom
entendimento, sem nenhuma sombra de suspeita e inimizade
causa do Brasil e de decente subsistncia por emprego, ou
indstria, ou bens" ( VI do captulo II). "Nenhum cidado
poderia escusar-se da nomeao, nem entrar com armas nos
lugares das eleies".
A provncia que mais deputados dava era
Minas (20) e as que davam menos Mato Grosso, Santa Catarina,
Rio Grande do Norte, Piaui e Rio de Janeiro (1 cada uma):
So Paulo dava 9, Bahia 13 e Pernambuco tambm 13. Os
deputados deviam ser naturais do Brasil ou doutra qualquer
parte da monarquia, mas neste caso com 12 anos de residncia
no Brasil e, sendo estrangeiro, com 12 anos de
estabelecimento com famlia, alm do tempo da naturalizao,
reunindo "a maior instruo reconhecidas virtudes,
verdadeiro patriotismo e decidido zelo pela causa do Brasil"
( II do captulo IV). Receberiam 6.000 cruzados pagos em
mesadas pelo tesouro pblico da sua provncia, sendo
rigorosamente vedadas as acumulaes remuneradas, mesmo
tratando-se de vencimentos de penses. Ao mandato ningum
podia escusar-se. A escolha do presidente do colgio
eleitoral de cada distrito, seria feita dentre os eleitores
em escrutnio secreto e por pluralidade de votos; a eleio
dos deputados pelos eleitores de parquia teria entretanto
lugar por meio de cdulas individuais assinadas pelos
votantes e tantas quantos fossem os deputados da provncia.
* * *
O prncipe no esperara por Jos
Bonifcio para dar razo aos que reclamavam Cortes no Brasil
e no dissimulara seu sentir nas cartas que costumava
escrever a seu pai. J a 28 de abril manifestava ele o
desejo que as Cortes Gerais soubessem que "a opinio
brasileira, e a de todo o homem sensato, que deseja a
segurana e integridade da Monarquia" era essa, que o Brasil
tivesse a sua assemblia legislativa particular, que
elaborasse as suas leis municipais. Estava portanto disposto
a fazer aos brasileiros esta "vontade razovel e til", com
anuncia ou no do Congresso de Lisboa, pois assim que
entendia o ser "defensor dos direitos natos de
povos to livres como os outros, que os querem escravizar".
A expresso defensor parece ter
sido intencionalmente empregada e mostrar que o prncipe no
era estranho ou pelo menos no desconhecia o que se passava
com relao investidura tramada sob o olhar complacente do
Supremo Arquiteto do Universo. "No justo que uns sejam
reputados como filhos e outros como enteados, sendo todos
ns irmos" (216) - nisto estava a justificao
do seu proceder, com o qual se esquivara um pouco
orientao do seu ministro, que aconselhava mais do que
lisonjeava e nesta matria no tinha sofreguides. Cedo
alis recuperou o ministro sua influncia, pondo-se ao
diapaso do regente e dando assim prova de que tambm era
sbio na poltica. O imperador preferiria dentro em breve
ministros mais dceis ainda e menos prestigiosos, mas seria
mister uma mulher - a marquesa de Santos - para fazer
desvanecer um magnetismo que voltou quando ela prpria viu
dissipar-se o seu encanto.
A 21 de maio, dando notcia a el-rei do
que se preparava a favor da convocao de Cortes
Brasileiras, reiterava o prncipe sua assero de que "sem
cortes o Brasil no pode ser feliz. As leis feitas to longe
de ns por homens que no so brasileiros e que no conhecem
as necessidades do Brasil no podero ser boas. O Brasil
um adolescente que diariamente adquire foras. O que hoje
bom amanh no serve ou se torna intil, e uma nova
necessidade se faz sentir; isto prova que o Brasil deve ter
em si tudo quanto lhe necessrio, e que absurdo ret-lo
debaixo da dependncia do velho hemisfrio". J quase um
sculo antes D. Lus da Cunha, citado por Southey,
escrevera, advogando a trasladao da corte para o Brasil,
que "o Rei no pode manter Portugal sem o Brasil,
entretanto, que, para manter o Brasil, no necessita de
Portugal".
A aspirao do Brasil fundava-se alis
para o prncipe no direito das gentes e constitua um meio
de unio, porque "sem igualdade de direitos, em tudo e por
tudo, no h unio. Ningum se associa para ver piorar a sua
condio, e aquele que o mais forte melhor deve saber
sustentar os seus direitos. Eis porque o Brasil jamais
perder os seus que defenderei com o meu sangue, sangue puro
brasileiro, que no corre seno pela honra, pela nao e por
V. M."
Atente-se bem nesta expresso: sangue
puro brasileiro. No discurso de abertura do conselho dos
procuradores, repetiu Dom Pedro a referncia "ao Grande
Brasil de quem sou filho". H nessas palavras como que o
repdio da sua filiao portuguesa e a afirmao orgulhosa
de uma nova e poderosa nacionalidade que se estava moldando
nas suas mos e que ele ia libertar politicamente. Aquele
ttulo mesmo de defensor perptuo "que me ofereceu o Brasil
agradecido" poucos dias havia, tinha o sabor acre e
excitante de uma aclamao popular. Lembrava a sagrao
nacional do Mestre d'Aviz diante da invaso castelhana.
'Ora, uma vez postas em movimento as suas faculdades, Dom
Pedro, como escrevia Mareschal; "n'agit jamais mieux que
dans un moment de crise".
A todas estas comunicaes fogosas,
desdenhoso de atitudes picas, o rei respondia na sua
placidez, sem desmanchar sua bonacheirice esperta: "Guia-te
pelas circunstncias com prudncia e cautela" - o que o A
B C do oportunismo.
Em todas as suas cartas a el-rei, o
prncipe abstrai sempre da Santa Aliana: como se no
existisse essa sociedade protetora da legitimidade dos
tronos. Nunca faz meno dela; nunca mostra temer-lhe o
desagrado e prossegue na sua marcha em suma revolucionria e
duplamente revolucionria, contra o pai, soberano legitimo,
e contra a me-ptria. De certo contava Dom Pedro com a
simpatia do sogro, o imperador da ustria, com quem a
princesa Leopoldina estava em correspondncia constante e
que era um homem de grande ternura de corao. Um deputado
brasileiro s Cortes de Lisboa houve at, Cipriano Barata,
que para meter medo aos colegas portugueses, que
repetidamente taxavam o prncipe de desobediente, imaginou a
hiptese de acudirem em sua desafronta os regimentos
austracos, suscitando com esta lembrana uma assuada
tremenda do povo das galerias.
A facilidade com que foi reconhecido o
ttulo imperial de Dom Pedro, contrasta com a dificuldade
que experimentou Pedro, o Grande, da Rssia, recorda Cairu,
estribando-se em Vattel. Na benevolncia com que a Santa
Aliana distinguiu o Brasil no entrou somente a
circunstncia da colnia continuar monarquia em vez de
tornar-se repblica. O princpio da legitimidade nem por
isso deixava de padecer. Tambm no basta a preocupao
comercial, que para a ustria e a Rssia era nesse caso de
somenos valores. A ao da princesa Leopoldina no passava
de pessoal, mas como dizia h pouco no seu discurso de
recepo na Academia Francesa um conhecido diplomata, o sr.
Jules Cambon, graas a Deus a ao dos indivduos no
desapareceu da histria: o jogo poltico ficaria reduzido a
uma rida troca de notas e perderia seu carter humano, se
dele fosse excludo o elemento das paixes.
Mareschal, testemunha presencial, relata
(217) que, ao chegar ao pao para o beija-mo de 13 de
maio, findo o qual o senado da cmara apresentou sua
splica, viu desfilar a tropa, de uniformes novos, uns 4.000
homens com muito bom aspecto (ayant une trs bonne
tenue), e que teve a surpresa da guarda de honra, que se
formara de voluntrios oficiais de milcias e que sua
Custa se fardara, escolhendo para modelo o traje da guarda
bomia do imperador da ustria. Ao saber-se do fato em
Lisboa, a escolha do figurino escandalizou enormemente as
Cortes, que j viam o reino americano indulgentemente aberto
aos janzaros da Santa Aliana. Constituindo uma homenagem
arquiduquesa Leopoldina, a lembrana tambm prova da sua
popularidade, portanto de ser conhecida sua simpatia pela
causa brasileira. Drummond, escrevendo 40 anos depois destes
sucessos, em 1861, dizia: "Fui testemunha ocular e posso
asseverar aos contemporneos que a princesa Leopoldina
cooperou vivamente dentro e fora do pas para a
independncia do Brasil. Debaixo deste ponto de vista o
Brasil deve sua memria gratido eterna".
Na carta de 19 de junho, do prncipe a
el-rei, que surgem seus primeiros virulentos protestos
contra as Cortes, que ele apelida de "facciosas, horrorosas
e pestferas", antecipando-se fraseologia de Rosas e
restaurando a do Terror francs. Seus membros so
"constitucionais in nomine", de fato "infames
dspotas lusos-espanhis, a quem o Brasil abomina e detesta
e no obedecer mais porque de todo no querem seno as leis
da sua assemblia". O prncipe considerava precisamente a
situao como uma "quase separao", da qual dizia chegado o
momento, tendo ele "marchado adiante do Brasil" consoante a
recomendao paterna de antes do embarque no Rio de Janeiro.
A frmula do momento era Dom Joo VI
imperador do Reino Unido e Dom Pedro rei do Brasil. "Se isto
acontecer, comentava o prncipe, receberei as aclamaes,
porque me no hei de opor vontade do povo a ponto de
retrogradar; mas sempre se me deixarem, hei de pedir licena
a V. M. para aceitar, porque eu sou bom filho, e fiel
sdito".
CAPTULO XV
IRRITAO CRESCENTE DAS CORTES
A IMPOSSIBILIDADE DE UM ACORDO
O drama da independncia, que mais
rigorosamente foi o que se chama na linguagem teatral
francesa uma alta comdia, porque do drama teve as paixes,
mas quase no teve felizmente as violncias, no poderia
entrar no rol das peas clssicas. Falta-lhe, para a lei das
trs unidades, a unidade de lugar. A ao passa-se
simultaneamente nos dois hemisfrios e as fases da sua
evoluo s logram ser bem compreendidas e formar cadeia
quando se lhes acompanha o desenrolar das peripcias nos
dois cenrios - o portugus e o brasileiro.
Tinham as Cortes razo em descobrir
crescente hostilidade nos atos do governo da regncia
brasileira para com sua poltica: desde que Jos Bonifcio
entrara para o ministrio, essa hostilidade acentuara-se e
externara-se mesmo. A 17 de fevereiro foi expedida pela
secretaria da guerra do Rio de Janeiro uma portaria ao
governo provisrio de Pernambuco, mandando que no caso de
ali aportar por qualquer motivo tropa de Portugal destinada
a conter as provncias brasileiras, essa junta lhe intimasse
ordem de regresso, fornecendo-lhe contudo amplamente os
mantimentos e refrescos de que carecesse. Isto porque o povo
fluminense no mais consentiria no desembarque de foras
lusitanas, capazes de renovar os passados atentados contra a
segurana pblica e individual; tambm porque os gastos
tinham sido muito considerveis com a repatriao recente da
Diviso Auxiliadora, e finalmente porque a presena de
semelhante elemento era perigosa "a conservao da Unio e
integridade do Reino Unido".
Uma e outra coisa descansavam sobre uma
frgil base desde que na composio desta e1~travam
tantas opinies diferentes. A argumentao oferecida desde o
princpio pelos partidrios de um dualismo eqitativo era
que o povo brasileiro usava dos seus novos direitos, "quando
fazia ver ao Soberano Congresso os inconvenientes que podiam
resultar de qualquer providncia por ele expedida, a qual
encontrasse no local da sua execuo obstculos ao fito de
prosperidade pblica que o mesmo Congresso anunciara como
seu e que justificava a adeso ultramarina aos princpios
constitucionais".
E como o caso podia repetir-se e os
protestos serem mal-acolhidos ou mal-interpretados, o
decreto de 21 de fevereiro (218), referendado por
Jos Bonifcio, mandava prevenir o chanceler-mor do reino,
desembargador do pao, que todas as leis vindas de Portugal
deviam ser primeiro submetidas ao conhecimento do prncipe
regente, o qual, achando-as anlogas s circunstncias do
Brasil, ordenaria ento sua devida execuo. O cumpra-se,
isto , o beneplcito do executivo central brasileiro
tornava-se assim indispensvel validade das leis, ordens e
resolues do governo de Portugal.
De certo tempo em diante cada navio s
trazia do Brasil notcias desagradveis para os
regeneradores no poder. Era a criao de um conselho de
procuradores para estender a autoridade da regncia sobre
todo o Brasil. Eram as Foras Caudinas por que tinha passado
a Diviso Auxiliadora. Era o "desgraado comportamento" da
expedio de Francisco Maximiliano de Sousa, o qual, dizia
nas Cortes o deputado Giro, "no sei se obrou por malcia,
se por ignorncia, mas que se devera ter lanado no oceano
para sepultar consigo seu desar e sua vergonha". Eram as
novas fardas dos soldados da guarda de honra que, exclamava
o mesmo Giro, j no so portugueses; mas sim austracos".
Era o caso do general Madeira, que at provocou entre dois
deputados baianos, Cipriano Barata e Pinto da Frana, uma
rixa pessoal, sacudindo o primeiro ao segundo de escada a
baixo no Convento das Necessidades, onde funcionavam as
Cortes, porque opinava que se Madeira no era idneo para o
comando das armas, Manuel Pedro no o era mais e faltara
disciplina militar no querendo entregar o governo.
Madeira aparecia aos olhos dos
constitucionais portugueses como um heri salvador, um
Messias. A sua resistncia apaixonava os espritos,
imortalizava-o entre os seus, que lhe teciam coroas de
louro. Era indispensvel socorr-lo, custasse o que
custasse. E assim se fez, mau grado a oposio da
representao brasileira quase toda, exceo feita do
Maranho e Par, o que provava ainda a falta alm-mar de um
esprito de nacionalidade completamente formado, porm com o
acrscimo (maio de 1822) da deputao do Cear, notoriamente
liberal e na qual figuravam os padres Moreira e Alencar, e
Castro e Silva, gente toda impregnada dos princpios de
1817.
A argumentao da representao
brasileira foi a mais simples. O Brasil j tinha dado
mostras inequvocas de no querer no seu solo tropas do
reino europeu: as Cortes entretanto iam mandar mais para a
Bahia a fim de sustentar o oficial portugus num conflito de
competncia em que a ambos tinha faltado a prudncia. No se
tratava de um contenda poltica que afetasse a essncia da
unio, o que justificaria que se despachassem reforos.
Assim faltaram Cipriano Barata e Arajo Lima, respondendo os
portugueses mais com insultos do que com razes.
Moura, por exemplo, disse que era preciso
haver no Brasil, perto das foras da anarquia, um viveiro
militar donde extrair a fora aliengena destinada a chamar
ordem uma populao de cores variadas em que "a
heterogeneidade das castas pe paixes diversas em
efervescncia, que a fora indgena no capaz de conter.
sim antes capaz de promover porque se compe dos mesmos
elementos". Raro o povo no mundo que no seja mestio e,
no entanto, todos se ofendem de que os tratem por tais.
Justamente o tom de superioridade que os portugueses
assumiam no tocante questo de raa tinha o condo de
exacerbar mais que tudo os brasileiros, que no queriam ser
tratados como gente inferior.
O contato de tropas portuguesas e
brasileiras trazia mais esta desvantagem, alm do
inconveniente poltico do momento: estimulava uma rivalidade
latente das mais azedas. Fernandes Toms chegou a dizer no
correr dos debates que no havia oficial portugus que se
submetesse s juntas provinciais brasileiras, assim pouco
inteligentemente fomentando a arrogncia desses militares e
justificando a reao nativista. Borges Carneiro,
constantemente a cortejar como poltico o favor dos seus
correligionrios e ao mesmo tempo esprito inclinado a
deixar-se empolgar pelas consideraes da justia, da qual
era cultor esclarecido, queria que simultaneamente se
mandassem para alm-mar tropas bastantes para manter a paz e
reformas, para que os brasileiros vissem que a energia
portuguesa corria parelhas com o seu liberalismo.
Foi neste discurso que o eminente
constitucional fez sua clebre referncia ao co de fila ou
leo que Portugal soltaria para obrigar a faco nacional
brasileira obedincia s Cortes e s autoridades que no
ultramar as representassem. Lino Coutinho com seu fino
esprito faltou logo em atirar onas e tigres contra esses
ces; Vilela Barbosa advertiu que no Brasil tambm se sabia
aaimar ces e que o sangue portugus que girava nas veias
dos brasileiros os impedia de receberem leis debaixo da
presso do arcabuz; Antnio Carlos tratou de ftuas as
ameaas e que para os ces de fila havia por l em
abundncia "pau, ferro e bala, no podendo assustar aos
brasileiros os referidos ces de fila, aos quais fizeram
fugir dentadas de simples ces gozos". Estes, explica Gomes
de Carvalho, que reedita este incidente, eram os milicianos
mal-armados que fizeram recuar a Diviso Auxiliadora.
Justamente pelo mesmo tempo - na sesso
de 23 de maio, intercalada entre aquelas em que se discutiu
o caso do general Madeira - chegava s Cortes a comunicao
que, com suas congratulaes, lhes mandava o general Jorge
de Avilez, de regresso do Brasil. Queriam no poucos da
maioria que a participao fosse declarada na ata ter sido
recebida "com agrado", ao que se opuseram outros alegando
que, perante as informaes do prncipe regente, no se
achava ainda comprovada a inocncia ou o regular
procedimento do comandante da Diviso Auxiliadora.
Os mais exaltados dentre os
regeneradores, Moura, Giro, Caldeira, sustentavam a
dignidade e o saber daquele "portugus o mais honrado e
brioso", que era Jorge de Avilez; Miranda taxou at de
rebelde o ministrio do Rio de Janeiro; Freire achava que se
Avilez merecia alguma imputao, era a de ter sido to
condescendente. Vilela Barbosa argiu do outro lado com no
se ter concedido a distino agora solicitada ao general
Lus do Rego, embora declarado benemrito. Venceu esta
opinio, ainda neste ponto votando o Par e o Maranho
contra o resto do Brasil, acompanhando os que hoje seriam
chamados chauvinistas ou jingoes portugueses e que
Gomes de Carvalho trata um pouco severamente de energmenos.
O Par-Maranho constitua com efeito um
Estado parte, onde prevalecia decisivamente a influncia
do reino europeu, mesmo porque suas relaes eram mais com
Portugal do que com as outras provncias do Brasil. Em
compensao, alguns deputados portugueses, sete ao que
parece, acompanharam os brasileiros. Suprimiu-se na ocasio
o "agrado" e mandou-se publicar pela Imprensa Rgia a
Exposio de Jorge de Avilez ou conta dos sucessos, como
documento justificativo da sua conduta. A 23 de julho
conseguiu contudo Giro fazer aprovar o recebimento "com
agrado" das felicitaes do general, cuja votao fora
adiada "para se esperarem notcias do Rio para
esclarecimento da sua conduta". Dizia a moo que "elas tm
chegado tantas, e de tal natureza, que sobejam".
Madeira no tivera que esperar pelo favor
do Congresso. Deram-lhe tambm, claro, o privilgio da
impresso; Pessanha intitulou-o o redentor da Bahia, e foi
confirmado no posto como merecendo toda a confiana, no
obstante a lei novssima do Congresso que anulava toda ordem
e carta rgia no referendada pelo ministro respectivo: "o
que, por si s, escreve Cairu, bastava para ser o governador
das armas destitudo e sentenciado em conselho de guerra".
Iam-se assim extremando os campos dentro
das prprias Cortes, visto que a moo apresentada por
Antnio Carlos a 15 de junho e assinada por 17 deputados do
Brasil, era para que o governo "fizesse efetiva a
responsabilidade do ministro da Guerra e do seu subordinado"
comandante das armas da Bahia, o qual, segundo os mesmos
deputados, a praticara desacatos e tropelias que dizia o
cordato Pereira do Carmo no constarem at ento
oficialmente, devendo-se aguardar a devassa mandada tirar
desses sucessos. No entender de Moura, dos ofcios da junta
provisria nem se podia concluir qual dos dois brigadeiros
rompera o fogo. Manuel Pedro, que se achava preso em Lisboa,
foi mandado soltar por essa ocasio e livremente regressar
para a Bahia.
No Brasil os campos no s j se achavam
divididos, como soara o grito de alerta, precursor do de
pegar em armas, o qual encontraria, pelo que parecia, pronta
correspondncia do outro lado do oceano, uma vez a postos os
partidos. "J se no deve hoje tratar de raciocnios, nem de
exortaes, nem de planos conciliatrios, para manter a
legislao da Amrica, exclamava Moura; e s sim dar ao
Grande Partido da Unio, que existe naquele pas, um auxilio
tutelar e protetor, que o vigore, e que o habilite a
combater e aniquilar a Faco..." E o abade de Medres
ajuntava afogueado: "Se faltar capelo, eu j me ofereo".
Parecia tornar-se certo o que afirmava o
povo fluminense na representao em que pedira a permanncia
do prncipe, a saber, que "os polticos da Europa disseram
que o navio que trouxe ao Brasil el-rei Dom Joo VI
alcanaria entre os antigos gregos maiores honras do que
esse que levou Jaso e os Argonautas a Colchos, mas que o
navio que reconduzisse Dom Pedro j apareceria no Tejo com o
pavilho independente do Brasil".
A situao, segundo alguns faziam valer,
estava-se fazendo pior, do ponto de vista das regalias
ultramarinas, do que a colonial, quando nas prprias
capitanias se davam promoes militares at o posto de
major, havia certa latitude para o preenchimento dos cargos
civis e os bispos proviam as parquias e vigararias das suas
dioceses (219).
* * *
A proposta dos deputados baianos para que
a expedio contra a Bahia se no realizasse sem que a
representao brasileira fosse ouvida, teve 80 votos contra
e 44 a favor. A obra de inteno apaziguadora da comisso
luso-brasileira estava pois previamente prejudicada num dos
seus artigos essenciais, que era o que vedava as remessas de
tropas europias sem haver pedido a respeito das juntas
governativas de alm-mar. Como em tais condies e num meio
de crescente irritao, que as notcias chegadas do Rio
faziam cada dia piorar, lograria funcionar com tranqilidade
e com xito outra comisso como a que o Congresso nomeou
para redigir os artigos da Constituio privativos do reino
americano?
A prpria comisso dos negcios
brasileiros, anteriormente organizada, j no sabia como dar
andamento as questes pendentes e aconchegava-se num
silncio que era prudente, porque no havia boa disposio
da parte dos regeneradores portugueses e a desconfiana
lavrava fundo, entre os constitucionais brasileiros.
Chegara-se aos comeos de junho sem que o parecer-transao
de 18 de maro entrasse em discusso e nada mais se agitara
que pudesse conduzir a medidas prticas e construtoras, nem
tampouco se externava juzo definitivo sobre a harmonia ou
desarmonia do sentimento do povo brasileiro com a expresso
que lhe tinha dado o governo provisrio paulista.
As injrias, fossem da junta de So
Paulo, tossem daquele a quem Borges Carneiro tratava
desrespeitosamente de rapaz, eram todavia espinhos
cravados na carne portuguesa e estavam formando abcessos.
Havia que castigar os desaforados, que tinham tratado os
constituintes de "profundamente ignorantes e singularmente
atrevidos", antes do que receber-lhes e porventura atender
as suas peties contra atos do poder legislativo que
encarnava a soberania da nao.
Antnio Carlos concordou para salvar as
aparncias em fazer seus e de colegas seus, numa forma
diferente para com a majestade das Cortes, os votos contidos
na representao paulista, na mesma ocasio em que requeria
que fosse chamado responsabilidade o ministro da Guerra
que deixara de legalizar a carta rgia nomeando o brigadeiro
Madeira comandante das armas, e responsabilizando tambm
este que, sem escrpulo e com desprezo das formalidades
legais, avocara o cargo e tornara efetiva sua autoridade. A
comisso que tinha de dar parecer sobre este requerimento
negou-o, contudo, por falta de documentos que comprovassem a
culpa.
Quando foram apresentados os pareceres da
comisso especial dos negcios do reino americano e da
comisso de constituio para o ultramar - o primeiro, de 10
de junho, especial sobre o incidente paulista - houve
proposta para que fosse dado previamente para a ordem do dia
o que versava sobre a responsabilidade criminal da junta de
So Paulo, no intuito no s de punir os culpados, como de
firmar a doutrina de que o povo brasileiro devia obedincia
s Cortes em vez de a dever ao regente.
A proposta caiu porm, porque pareceu
mais acertado a maioria cuidar de afastar as razes de
descontentamento antes do que castigar as manifestaes
desse descontentamento, numa modalidade que no passava
afinal da aplicao do direito de petio em linguagem
demasiado apaixonada. Agir diversamente seria, na frase de
Gomes de Carvalho, mostrar que as Cortes eram mais solcitas
em atender ao seu amor prprio do que em promover a
tranqilidade da nao.
O pior entretanto que assim se pensou e
agiu judiciosamente num dia para se desmanchar no dia
imediato (27 de junho), quando Moura e Fernandes Toms, dois
dos maiores leaders da regenerao, exigiram a
precedncia do debate irritante. A maioria portuguesa do
Congresso, que ditava a lei, isto , a orientao, era, como
o fora a da Conveno francesa, escrava da opinio facciosa
de fora, a saber, dos seus clubes e das paixes
irresponsveis da populaa das ruas. Da provm a vacilao
e a incoerncia que se notam em muitos dos seus atos.
um ponto ainda a discutir se as Cortes
de Lisboa, antes de desafiadas e contrastadas na sua
autoridade e valia, teriam movido a mesma intransigente
oposio separao do Brasil que moveram aquilo que
chamavam a continuao da supremacia brasileira e que
pretendiam obstar pelos meios constitucionais e
administrativos sua disposio, recorrendo em ltimo caso
fora. A mentalidade poltica da regenerao portuguesa de
1820 era despida de refolhos e ostentava o culto da vontade
popular. Fernandes Toms disse vrias vezes que se a vontade
do Brasil era desligar-se, que o fizesse: ele votava contra
qualquer medida compulsria que fosse de encontro a esse
ideal nacional (sesso de 22 de maro de 1822). Continuando
porm unidos os dois reinos, cumpria ao reino americano
obedecer ao europeu.
A mesma razo de vontade do povo era a
invocada pelos deputados brasileiros que desejavam abandonar
as Cortes pelo fato de considerarem ingrata e intil sua
tarefa; mas nesse caso, alm de contestar a existncia de
uma vontade geral no Brasil pelo fato das provncias
andarem desunidas, a regenerao argumentava em ltima
instncia com o poder das maiorias, que foi o argumento com
que nos Estados Unidos, 40 anos depois, o Norte se ops
secesso do Sul e obrigou este pela guerra a ficar dentro da
Unio.
Depois de proclamada a independncia e da
assemblia legislativa ordinria tomar em Lisboa o lugar do
Congresso Constituinte, certo nmero de deputados
portugueses cogitavam do despacho de "um general de
confiana", com carta branca, para subjugar o reino rebelde;
a maior parte porm favorecia a absteno de luta, isto , a
conformidade com os fatos consumados, havendo mesmo quem
considerasse o melhor partido a seguir entrar logo em
negociaes com o imprio, reconhecendo sua independncia,
para a concluso de um tratado honroso para ambas as partes
e sobretudo vantajoso para o seu comrcio recproco.
Um acordo teria sido porventura fcil
entre as representaes dos dois reinos se no fossem as
influncias extra-parlamentares, mormente da plebe
portuguesa. O programa ideolgico da regenerao era
simptico a todos os espritos liberais, como no geral os de
alm-mar se mostravam, e conforme j houve ensejo de
verificar-se, foram as Cortes invariavelmente dementes em
matria de denncias e sobretudo prontas ao indulto. Os
movimentos revolucionrios do Brasil, mesmo os posteriores
implantao do constitucionalismo, nelas encontraram
indulgncia e at a meio destes incidentes, foram perdoados
e mandados regressar para o Brasil os dois tipos antipticos
do movimento pernambucano de 1817, que tinham podido escapar
ao patbulo: o capito Pedroso e o tenente Jos Mariano,
assassino este ltimo do seu benfeitor, o brigadeiro
portugus Barbosa, soldado o primeiro de ndole grosseira e
sanguinria. A pena de ambos fora a de degredo perptuo na
ilha de Mormugo, na ndia Portuguesa, para onde iam ser
transportados em junho de 1822.
Os acontecimentos velhos e novos
baralhavam-se todos e as Cortes oscilavam, consoante seus
interesses ou por outra os interesses pblicos, entre uma
poltica de amenidade e uma poltica de represso, entre a
separao em nome dos princpios e a unio em nome das
convenincias.
* * *
A questo da modificao das providncias
relativas ao Brasil, isto , da alterao dos decretos de 29
de setembro, que tinham causado tanta celeuma no Rio, em So
Paulo e por fim em Minas, fundira-se de forma tal com a da
representao paulista que no havia mais meio de reduzi-las
a sua primitiva diferenciao. A demora no fizera mais do
que solidificar a fuso, e tivesse, a junta de So Paulo
sido intrprete do seu prprio despeito, ou do despeito
popular, era ela quem carregava a culpa, se culpa havia, da
intitulada rebeldia.
A 10 de junho fora pois afinal
apresentado s Cortes o relatrio da comisso especial, dos
negcios do Brasil, na qual Vergueiro substitura Antnio
Carlos, que se dera por suspeito e, de fora, ficava mais
livre para a apresentao, poucos dias depois, das suas duas
propostas de oposio. O relatrio dava junta paulista a
prioridade e a direo do movimento nacionalista - partindo
desta premissa para tirar concluses em inteira contradio
com as que anteriormente formulara.
A verso agora era que nada havia que
alterar no ultramar porque as prprias provncias
brasileiras tinham feito suas revolues locais, organizado
suas juntas provisrias, proclamado o regime constitucional,
aderido s Cortes e repudiado o regente. A assemblia de
Lisboa homologara, como lhe cumpria o como lhe convinha,
todas essas resolues. O movimento iniciado pela junta de
So Paulo era um movimento portanto subversivo contra as
novas instituies; restando saber e fixar quando um
movimento deixa de ser negativo para tornar-se positivo, uma
aspirao passa realidade e um regime cessa de ser
anrquico para vigorar, ou mais tarde decai de florescente
em caduco. Se a vontade popular que regula essas variaes
faltava s Cortes seno competncia, pelo menos
imparcialidade para estabelecer-lhes a gradao e
reconhecer-lhes a influncia exata.
Na data de 1. de julho de 1822 o
Soberano Congresso adotou trs providncias. Mandou
responder a processo os paulistas signatrios da
representao de 24 de dezembro de 1821, que eram os membros
da junta, e a deputao civil e eclesistica que veio ao Rio
felicitar o prncipe e em nome da qual falou Jos Bonifcio
a 26 de janeiro, "no sendo exeqvel sentena alguma
condenatria sobre o referido objeto, sem prvia deciso das
Cortes". Declarou "nulo, irrito, e de nenhum efeito" o
decreto de convocao do conselho de procuradores, por
exceder as faculdades da regncia e alterar o sistema
constitucional, chamando responsabilidade o ministrio do
Rio de Janeiro no s por esse ato como "por quaisquer
outros atos da sua administrao em que a responsabilidade
possa ter lugar". Determinou a permanncia no Rio de Janeiro
do prncipe real at a publicao iminente da constituio
poltica da Monarquia Portuguesa, governando com sujeio a
el-rei e s Cortes as provncias que lhe obedeciam e tendo
secretrios de Estado nomeados por el-rei (220) e
assinando o ministro competente no s as decises tomadas
em conselho, mas tambm a correspondncia oficial, quer a
dirigida a el-rei, quer a dirigida s Cortes. Em toda a
provncia em que no houvesse ainda junta provisional de
governo, deveria esta ser logo eleita e instalada.
Precedeu animado debate, que comeou a 27
de junho, a votao, a qual foi de 59 votos contra 58,
vencendo portanto por um s voto de maioria, o que abona o
modo de ver daqueles que no enxergam na poltica
anti-brasileira das Cortes um repto de nacionalidades
inimigas, mas to somente uma tentativa malograda de
sobreposio de interesses contrariados e de preocupaes
estreitas ao reconhecimento largo e generoso dos direitos,
embora rivais, de um povo adulto que se tornara consciente
do seu vigor e para o qual deixaram desde esse momento de
ter valor as recriminaes do outro povo, que se sentia
lesado nas suas convenincias.
A mesma poltica egosta, de
inobservncia dos privilgios doados e garantidos, que foi a
da Inglaterra com relao s colnias da Amrica do Norte,
foi a de Portugal com relao ao seu grande domnio da
Amrica do Sul: faltou a ambas o toque de espiritualidade e
de justia que teria prolongado a unio conforme
pretenderam, num caso o Canad e no outro o Par-Maranho.
Os discursos mais notveis pronunciados
no referido debate foram os de Vergueiro, do lado dos
brasileiros, e de Guerreiro, do lado dos portugueses.
Vergueiro na sesso de 1. de julho argumentou sobretudo com
o fato das representaes paulistas no atacarem o princpio
essencial da integridade da monarquia portuguesa, apenas
zelarem os direitos e interesses do reino autnomo do
Brasil, cujos destinos no deviam ser regulados revelia da
sua representao parlamentar. A admisso pelas Cortes de
terem feito poltica errada e a satisfao assim dada s
justas aspiraes do ultramar - no se importando com a
forma apaixonada e mesmo petulante que tais aspiraes
assumiram da parte dos paulistas - evitariam a separao e
cimentariam a unio. Por isso era poltica da melhor pr
fora da pista o partido da independncia absoluta, que era o
extremo oposto e por isto mesmo o correlativo ao partido da
recolonizao.
Se os brasileiros se mostravam
impacientes, os portugueses, mesmo muitos que viviam na
terra irm porquanto outros acompanhavam os brasileiros,
mostravam-se mesquinhos no seu cime. Ferir os responsveis
pelas expresses afrontosas dos documentos era fazer
redobrar as simpatias populares que os cercavam: constitua
portanto um proceder contraproducente. O programa de
Vergueiro, at a constituio entrar em vigor, consistia em
continuar o prncipe herdeiro como regente sem coao e
continuarem as juntas locais responsveis para com as
Cortes, mas tendo sob sua dependncia as autoridades
militares e de fazenda, no recebendo tropas de Portugal
seno a requerimento prprio e ficando os decretos das
Cortes sujeitos ao beneplcito das autoridades ultramarinas.
Na sua qualidade de portugus, Vergueiro
ainda acreditava na possibilidade de "com generosidade e
prudncia" prolongar-se um regime que a outros j deixara de
inspirar confiana. Esta era indispensvel para ser ele
praticado com resultado, porque na sua essncia constitua
uma transao. Num bom redigido manifesto dirigido por esse
tempo pelas Cortes ao povo do Brasil e no qual se justifica
sua ao, encontra-se o seguinte perodo: "Brasileiros, o
ato de adotar, ou de rejeitar um sistema de governo um
compromisso; pesamos inconvenientes; damos, e tomamos;
entregamos uns direitos para melhor podermos gozar outros; e
assim como sacrificamos a liberdade natural, para gozarmos
na associao civil com mais segurana as suas vantagens,
assim devemos sacrificar uma parte das vantagens civis
superior utilidade da unio de um grande imprio... no
to circunscrita a esfera dos inventos humanos, para que a
sabedoria das instituies no possa reunir o que a natureza
separou... As Cortes no pretendem sustentar a unio de
Portugal com o Brasil pelo meio das armas; a fora fraco
instrumento para conter uma conexo subordinada, e
proveitosa a um povo ativo, numeroso, crescente e amigo da
sua liberdade. A nossa unio, brasileiros, depende s das
afeies e do interesse que produzem vantagens recprocas,
nomes comuns, parentes, amigos, leis iguais, igual
proteo".
Infelizmente os atos no correspondiam s
palavras. verdade que Moura explicou sua mudana de
opinio, de maro para julho. Ento as juntas pareciam
obedecer todas s Cortes: no via mal em que lhes ficassem
sujeitas as autoridades militares. Depois disso foi que se
desenvolveu o esprito de rebelio e discrdia entre as
juntas, aconselhando uma mudana de atitude.
O discurso de Moura distanciou-se do
tpico principal em debate e tratou mais que tudo da
aceitao necessria da constituio pelos deputados
brasileiros, uma vez que o povo brasileiro aprovara as bases
que eram o sumrio das disposies da lei orgnica. Mesmo
sendo assim, como pondera Comes de Carvalho, a legislao
ordinria no estava isenta de divergncia e de discusso e,
no caso em questo, faltava s Cortes capacidade judicial
para se ocupar dele e do seu carter criminal. No lhes
competia, na frase de Vergueiro, "qualificar delitos e
designar culpados".
Tornara-se bem patente a m f de
oradores que faziam por assim dizer irresponsvel e
inviolvel o herdeiro presuntivo da Coroa, o qual no
usufrua semelhantes regalias e era na espcie o mais
culpado de desobedincia e de levante, para descarregarem
toda a responsabilidade sobre autoridades que exerciam o seu
mero direito de petio. Segundo Guerreiro, o mais
condescendente dos regeneradores portugueses para com o
Brasil, a junta paulista no se limitara a fazer uso desse
direito, ou antes dele usara com esprito de rebeldia; mas
ento, no dizer de Antnio Carlos, a deputao mineira e a
junta pernambucana deveriam ser igualmente denunciadas, pois
que tinham reproduzido os argumentos da junta paulista.
Guerreiro frisou o ponto de que a
comisso no julgava o caso, apenas o indicava justia,
sem indagar nem da qualificao do delito, nem do castigo
correlativo, atribuio esta do poder judicirio, ao qual
pertence tambm a pronncia dos acusados, assunto em que as
Cortes pretendiam intervir para discriminar. Sujeitando
ainda por cima ao seu beneplcito ou autorizao a aplicao
da pena e mesmo sua qualidade, as Cortes funcionavam
virtualmente como uma suprema corte de justia com faculdade
de reviso.
Sobre o prncipe, que no fora maltratado
no decorrer da discusso, ficava pesando a ameaa de ser
excludo da sucesso no caso de reincidncia ou mesmo no
caso de no tragar as humilhaes que lhe eram infligidas.
Tudo se punha destarte a conspirar para que Dom Pedro
separasse seus interesses dos da monarquia tradicional e
criasse de fato o novo imprio de que tanto se falava.
Segundo a carta a el-rei de 26 de julho, j a disposio do
prncipe regente era de no fazer cumprir "mais nenhum" dos
decretos das Cortes, s os da Assemblia brasileira, e de s
manter com seu pai relaes "familiares porque assim o
esprito pblico do Brasil, sendo um impossvel fsico e
moral Portugal governar o Brasil ou o Brasil ser governado
de Portugal".
Dir-se-ia que neste debate a paixo
esteve muito mais do lado portugus que do brasileiro;
justificando o ditado que mais se irrita o que no tem
razo. Antnio Carlos mesmo, combativo como era, afastou
toda preocupao pessoal e apenas defendeu Jos Bonifcio em
termos despidos de clera e repassados de elevao moral.
Tomou assim para si o conselho que dava a Portugal: de no
aplicar cautrio e sim blsamo s chagas vivas. A convico
ganhara porm terreno entre os brasileiros, pelo menos os
mais conspcuos, da representao nas Cortes, que qualquer
acordo duradouro se tornara impraticvel. O dilema pusera-se
nos termos seguintes: separao definitiva ou subordinao
efetiva.
CAPTULO XVI
A BERNARDA PAULISTA E OUTROS ALVOROOS.
DOM PEDRO MAO E GRO-MESTRE
A chamada bernarda paulista de 23 de maio
de 1822, que foi um pronunciamento a um tempo civil e
militar, deve ser considerado o primeiro ataque srio
vibrado contra a autoridade e influncia de Jos Bonifcio;
mas no passou de fato de uma ocorrncia de carter local,
se bem que, pela situao nacional dos Andradas e pelos
antagonismos j suscitados pelo mais velho nesta esfera mais
larga, pudesse ter tido conseqncias mais relevantes,
desmoralizando-os na sua prpria provncia e tornando assim
real e manifesta a diminuio, seno perda do seu prestgio
geral. O prncipe porm, tomando resolutamente o partido do
seu ministro, manteve-lhe o crdito e sustentou-lhe a
posio no pas.
O pronunciamento foi direta e
nomeadamente contra Martim Francisco, acusado nas atas das
vereaes extraordinrias da cmara de So Paulo de "querer
ser absoluto na cidade e provncia". As representaes
contra ele, alis firmadas por gente da melhor, a comear
pelo bispo, so visivelmente exageradas e a injustia
ressumbra dos seus dizeres, pois que se referem no s s
paixes do indiciado como "aos seus amigos, que
desgraadamente eram o refugo da sociedade, e aos seus
parentes que sempre foram em todos os tempos maus cidados e
pssimos sditos".
Relativamente a Martim Francisco em
pessoa, denunciam os signatrios da maior dessas
representaes (221) "o seu orgulho, o seu
despotismo e as suas arbitrariedades", no que teriam at
certo ponto razo. verdade que Martim Francisco, homem
honradssimo, de uma probidade draconiana que no admitia
desmandos nem Concedia favores, de unia natureza geralmente
taciturna, era um temperamento explosivo, sem certa
maleabilidade que distinguia Jos Bonifcio, de quem escreve
Melo Moraes que era "ao mesmo tempo irascvel e flexvel".
Jos Bonifcio tinha obstinao nas
idias, mas era capaz de tolerncia para com os desvios
humanos: Martim Francisco, severo antes de tudo e exercendo
por isso ao sobre o irmo e sogro, ia at cometer
prepotncias para fazer vingar e respeitar a lei. A
representao aludida fala em autoridades invadidas nas suas
jurisdies, em causas cveis decididas no governo embora j
prevenidas no foro contencioso, em execues de sentenas
suspensas, em presos soltos ainda que com culpa formada, em
cidados presos discricionariamente, em clrigos criminosos
restitudos liberdade.
Tudo isto soa muito como aumentado e
desvirtuado pela paixo poltica, sendo a desavena
proveniente de cimes de poderio. Foi o instrumento
principal da discrdia o presidente do governo local
Oyenhausen, mas agente capital o comandante das milcias
Francisco Incio de Sonsa Queiroz, membro da junta, e
inspirador dela, ao que parece, o ouvidor Jos da Costa
Carvalho (futuro marqus de Montalegre). As discrepncias
tinham sido j muitas, por querer o Andrada fazer prevalecer
suas idias e projetos contra a opinio dos demais membros
da junta, da qual era vice-presidente desde a ida do irmo
para o Rio, quando se deu o motivo imediato da bernarda, que
foi a ordem dada por Jos Bonifcio, em nome do prncipe
regente, a 10 de maio de recolherem-se corte presidente e
ouvidor.
Ficava deste modo frente da junta
Martim Francisco, que nela s contava com o apoio decidido
do brigadeiro Manuel Rodrigues Jordo, tesoureiro da fazenda
pblica. Os outros membros insurgiam-se contra a tutela que
francamente os ameaava, sendo Martim Francisco, no dizer de
Porto Seguro, mais imprudente do que os irmos. Queixas
tinham mesmo sido dirigidas para o governo do Rio, mas Jos
Bonifcio procedera parcial e iniquamente deixando sem
resposta os ofcios da junta, ao ponto desta solicitar
diretamente a ateno do prncipe regente para o fato,
deplorando ser assim tratada, declarando-se pronta a ceder o
lugar a outra junta que fosse eleita e convidando em todo
caso Dom Pedro a ir ele prprio a So Paulo como j fora a
Minas, inteirar-se do ocorrido, antes disso miudamente
exposto numa representao do prelado e de moradores
notveis de So Paulo, militares, civis e eclesisticos.
Porto Seguro insinua que Jos Bonifcio
sonegava s vistas do prncipe os documentos
comprometedores, como era esse: no d contudo as razes
precisas em que se funda para tal increpao. Do que se pode
culp-lo de ter tomado absoluto partido pelo irmo sem
mandar antes abrir uma devassa geral dos sucessos, apenas
ordenando um inqurito especial sobre o motim de 23 de maio,
e de s haver respondido s comunicaes da junta depois da
chegada de Martim Francisco ao Rio de Janeiro (18 de junho),
repreendendo-a ento (25 de junho) bem como o governador
interino das armas marechal Toledo Rendon, tratando de
"miserveis e facciosos" os promotores do motim e lembrando
a obedincia de todos "s ordens do poder competente e
superior", ao mesmo tempo que propalando a simpatia da mesma
junta pelas Cortes de Lisboa e levando o prncipe a
pronunciar uma sentena solene em favor do membro dissidente
e expulso, que foi por ele chamado ao ministrio.
A secretaria da justia foi desligada da
do reino, como j se fizera em Portugal; Caetano Pinto
passou a titular do novo ministrio e Martim Francisco
assumiu a gesto do da fazenda (3 de julho). Para no
descontentar muito a maonaria foi que, segundo Porto
Seguro, se procurou um pretexto para arredar Oliveira
Alvares, sacrificado a Nbrega, o qual foi chamado para a
pasta da Guerra. Porto Seguro assim identifica a maonaria
com o partido nacionalista avanado de Ledo, Janurio e Jos
Clemente.
A forma adotada em So Paulo pelos
amotinadores para dar vazo ao seu descontentamento foi a
clssica: a exigncia pelo pronunciamento da sada dos dois
membros da junta, ao passo que eram conservadas pela vontade
do povo e tropa as duas autoridades chamadas corte. O juiz
de fora de So Paulo, Leite Penteado, amigo dos Andradas,
diz que ao chegar casa da cmara, encontrou "a tropa
formada e uma poro de povo amotinado, angariado e infludo
por alguns indivduos, dominados do esprito da intriga e
inimigos do sossego pblico". Estes dscolos tinham
escolhido o levante no lugar do meio legal da representao,
comentava o juiz de fora.
A representao do povo e tropa como que
respondia de antemo a este tpico no dizer que "representar
era o mais prprio de portugueses; porm a mais pequena
reflexo foi suficientssima para todos verem que baldado
seria este meio, porque acharia invencveis estorvos
preparados pela intriga, em timas circunstncias de se
aproveitar, e que nunca chegariam nossas queixas e suspiros
presena de V. A. Real".
Culpavam igualmente Martim Francisco de
ter tentado por meio de emissrios sublevar o povo paulista
e de vrias cmaras municipais, como a de It, vieram
representaes contrrias ao levante, cuja responsabilidade
o encarregado de negcios da ustria no hesita em atribuir
a Oyenhausen - o conselheiro Joo Carlos como o chamam os
papis do tempo - embora culpando em primeiro lugar ou mais
remotamente do rompimento o que o diplomata qualifica de
indiscrio e nepotismo do ento poderoso ministro.
A segunda expresso deve evidentemente
ser tomada cum grano salis. Indiscrio valia nesse
caso sua acepo comum, significando falta de reserva ou
melhor excesso de comunicabilidade, traduzindo-se por
loquacidade. Sob este ponto de vista Dom Pedro era superior:
"Le prince ne manque point de discretion quand il en sent le
besoin" (222), faltando-lhe embora experincia.
Nepotismo significava porm, no proteo indbita a
interesses ilcitos, privados ou pblicos, de famlia ou do
Estado, mas simplesmente uma unio muito grande entre os
irmos e um sentimento marcado de preferncia na confiana
depositada nos seus parentes prximos. Nos Andradas era to
acentuada a susceptibilidade quanto a probidade.
Foram o comandante das milcias Francisco
Incio e o ouvidor Costa Carvalho os que invadiram a casa do
governo, aconselhando resistncia s ordens do Rio na
questo dos chamados e reclamando em nome da tropa e povo as
demisses, como "perniciosos provncia", de Martim
Francisco e Jordo, dos empregos e funes que exerciam.
vista do pronunciamento foram essas demisses dadas
voluntariamente no intuito de apaziguar a desordem: Martim
Francisco era inspetor das minas e matas.
A junta respondera aos da bernarda que
excedia das suas atribuies deferir a pretenso dos que
reclamavam tais excluses e destituies, mas no se recusou
a anuir ao que era dela reclamado e poucos dias depois (29
de maio) at expulsava Martim Francisco, da cidade em 24
horas e da provncia em 8 dias, a bem da ordem pblica. Por
sua vez a cmara reconhecia que no procedia legalmente
deferindo os desejos expressos por outra via que no a da
representao: "mas era a nica que o momento permitia e que
a felicidade da ptria fazia indispensvel". Alm disso a
cmara atentou, conforme declara na sua representao ao
prncipe de 4 de junho, no nmero e qualidade dos cidados
reunidos, na boa ordem e unanimidade com que representaram,
nos motivos verdadeiros que invocaram, "notando mais que se
no atentava contra o governo estabelecido e aprovado por V.
A. Real isto , que se no destrua a pessoa moral em quem
residia uma poro do poder executivo, mas que unicamente se
tirava desse todo uma parte infeccionada, que no constitua
a sua essncia, pois que se no acha determinado o nmero de
homens que devem compor esta parte executiva; e, tirados
eles, ainda restava neste governo maior nmero de votos do
que prudente e sabiamente tem determinado o soberano
congresso para os governos provinciais".
As coisas chegaram a tomar em So Paulo
um aspecto srio, que se no modificou sensivelmente com a
bernarda, tornada alis conservadora e apoiada por uma fora
de tropa de Santos, respondendo porm os partidrios dos
Andradas com alvoroos que se estenderam de Porto Feliz (24
de julho) a It e outros pontos, visando o estabelecimento
de um novo governo paulista. O capito-mor Rocha, a quem
Mareschal concede muito talento e muita atividade (223),
foi despachado a ver se compunha a desavena, mas voltou
para trs, no achando o meio propcio execuo da sua
misso, mas conseguindo em todo caso amedrontar os
amotinadores com os 200 soldados que fez marchar, depois de
esgotados os meios suasrios. Para restabelecer a calma
seria mister, como em Minas, a presena do prncipe no auge
da sua popularidade.
Com a expulso de Martim Francisco ganhou
ele um crebro para o seu tesouro, embora anmico. Os
predicados, mesmo elevados a defeitos, do Andrada,
serviram-no admiravelmente como ministro da Fazenda da
regncia e depois da independncia, restaurando-se o crdito
do governo pelo mero exerccio da sua honradez individual,
pois que era honestidade o que havia faltado em muitas
transaes do antigo regime. A confiana renasceu tanto que
o emprstimo de 400 contos, contrado em agosto de 1822 para
ajudar a defesa dos direitos brasileiros, foi negociado a
juro de 5%. A receita cresceu pelo escrpulo na arrecadao
das rendas, sendo obrigados ao pagamento dos impostos os
mais ricos e poderosos, que so de ordinrio os mais
remissos e negligentes, conseguindo-se fazer frente apenas
com essa reforma a despesas avultadas, para as quais parecia
aquela insuficiente.
* * *
A agitao nos espritos era grande e
deu-se como que um andao de insubordinaes, para o qual
muito concorreu a linguagem de alguns jornais, que depressa
aprenderam a licena na prtica da liberdade. O governo do
Rio viu-se na necessidade de adotar uma lei contra tais
abusos (18 de junho de 1822), sujeitando ao julgamento por
jri as acusaes feitas pelo procurador da Coroa. O acusado
podia recusar at 16 dos 24 homens bons escolhidos pelo
corregedor do crime ou ouvidor da comarca e dos quais oito
constituam o jri, sendo a sentena sem apelao.
Na opinio de Cairu, que era um genuno
liberal, a medida deu ensejo a "intolerncias e
perseguies" por diferena de opinies polticas, mas o
governo justificava-a com a necessidade de uma defesa contra
as doutrinas "incendirias e subversivas", que no deixariam
de pr em perigo a ordem pblica e at a integridade
nacional por ocasio da reunio da Assemblia Constituinte,
com o fim de destruir-se o sistema constitucional.
No mesmo dia desse decreto tomavam-se,
segundo se l em Pereira da Si1va (224), outras
medidas de rigor, como a de prises em Minas, entre eles a
do novo juiz de fora, provocadas muito provavelmente pela
resoluo da reunio da constituinte brasileira. Foi este
pelo menos o motivo da retirada no Rio Grande do Sul do
comandante das armas, brigadeiro Joo Carlos de Saldanha de
Oliveira e Daun, que foi mais tarde o famoso duque de
Saldanha e que estava exercendo por eleio a presidncia da
junta local. Tendo aplaudido o Fico e aderido
regncia brasileira, no lhe sofreu a pacincia ou antes a
volubilidade que fosse o reino americano at querer
legislatura prpria, ao que ele chamou "mudar de sistema" no
oficio com que se demitiu, com grande agravo de Cairu que
lhe atira os eptetos de "transfuga e desertor".
Outra fonte de efervescncia dos
espritos e cujo jato se confundia s vezes com a imprensa,
era a maonaria, desde que comeou a no ser simplesmente
mais a oficina onde se trabalhava pela emancipao poltica
do pas e se converteu num centro de intrigas das faces
busca de predomnio, intrigas tanto mais fceis de tecer
quanto se urdiam nas trevas e que sobretudo se emaranharam
aps a iniciao de Dom Pedro como Guatimozim a 13 de julho2
(25), data em que foi igualmente iniciado e at
defendido pelo prncipe no tocante ao seu proceder em Minas
o brigadeiro Pinto Peixoto.
Por sua vez a maonaria julgava, mas j
se sabe em segredo, os atentados contra a pureza das
doutrinas que deviam ser defendidas pelos seus adeptos.
Assim foi o padre mestre frei Sampaio chamado
responsabilidade pelo "povo manico", a 20 de agosto de
1822, por ter professado no Regulador, "impresso sob
a proteo" da instituio, opinies reputadas
aristocrticas, que se no compadeciam com a liberdade
constitucional por que o Brasil anelava e nica que podia
fazer sua felicidade poltica", liberdade que o prncipe j
jurara e sustentava em contradio com "certas insinuaes
prfidas das Cortes de que os ulicos do Rio de Janeiro
pretendiam restabelecer o despotismo" (226).
A autoridade do publicista, que alm de
reputado orador sacro era orador de uma das lojas, podia
fazer reviver desconfianas mal-extintas e fazer algumas das
provncias hesitarem na sua marcha voluntria para a
centralizao. A 23 de agosto compareceu o frade perante o
tribunal dos seus companheiros e retratou-se, assegurando
que os arugos em questo eram estranhos redao, mas
tinham-lhe sido transmitidos por pessoas de considerao, s
quais no pudera negar a publicidade. O presidente, que era
quase sempre Ledo, o gro-mestre Jos Bonifcio raramente
comparecendo, admoestou frei Sampaio por assim sair "fora
dos traos da esquadria e do compasso", divulgando conceitos
alheios e atentatrios dos interesses da nao, e repeliu a
desculpa como justificao, recebendo-a apenas como
satisfao e promessa de mudana de procedimento. A cena
terminou pelo perdo do delinqente, selado pelo sculo
fraternal dos presentes, isto , pela reconciliao, ainda
que com as reservas mentais do costume em casos tais.
Ao prncipe tentava como o fruto proibido
essa sua intima associao com os carbonrios,
conforme os denominavam os do partido do ministrio e,
segundo Drummond, andava exultante com ser mao. Alis seus
companheiros fizeram-no mestre na sesso imediata (16 de
julho) e gro-mestre durante sua ausncia em So Paulo, na
ausncia tambm de Jos Bonifcio do seu lugar, ocupado por
Ledo. Este presidiu igualmente a sesso memorvel de 20 de
agosto em que, no dizer da ata, demonstrou a urgente e
imperiosa exigncia de firmar a independncia do Brasil e a
"realeza constitucional e hereditria do prncipe defensor
perptuo", fazendo ver que o sentimento geral das
provncias, ao que informavam os irmos por elas espalhados,
era esse. Convergiam para a unio no seu prprio interesse,
certas de que no poderiam resistir, isoladas, presso
portuguesa.
A proposta, pelo que reza a ata, foi
"posta a votos e unanimemente aprovada pela assemblia com
geral aplauso e entusiasmo", ficando marcada a cerimnia
para 12 de outubro, natalcio de Dom Pedro. Escreve Drummond
que quando o prncipe partiu para So Paulo a 14 de agosto,
j se achava porm decidida a investidura imperial e que foi
este um ponto no qual Jos Bonifcio insistiu e no qual a
faco avanada, a gente especialmente da maonaria,
assentiu sem levantar oposio, porque bastava a
circunstncia de rei implicar de preferncia uma
tradio dinstica e imperador traduzir antes uma
aclamao individual, embora viesse a primeira escolha a
originar tambm uma famlia soberana. A emanao era todavia
popular, enquanto que se entende que o fundador de uma casa
real se imps por si s, pelo seu valor. Le premier roi
fut un soldat heureux... Igualmente o foi o primeiro
imperador, mas a sua autoridade partiu de baixo para cima.
Em Jos Bonifcio influiu ainda a
considerao, que ele at expressou nos seus versos e
especialmente na Ode aos Baianos, da grandeza
territorial, da vastido de recursos, da uberdade e da
riqueza do Brasil, ao mesmo tempo que da independncia que
lhe devia assistir, de fato como de direito, e da qual devia
ser a primeira manifestao a livre seleo da sua forma de
governo. Jos Bonifcio era faceto por ndole e por hbito:
no perdeu a ocasio de chalacear com o caso. Apresentou com
uma gargalhada o argumento de que o povo brasileiro,
naturalmente orgulhoso, gostava muito de ttulos
retumbantes, quanto mais pomposo melhor, e que j estava
acostumado com imperadores por causa do "imperador do
Esprito Santo". Da quiseram alguns tirar a deduo de que
o Andrada era um sans-culotte, quando era apenas um
gracejador com essa instintiva falta de respeito de todo o
brasileiro pelas frmulas do poder e pelos que o ocupam.
Nada prova melhor seu nacionalismo.
claro que a votao do Grande Oriente
era o resultado de um porfiado esforo coletivo, que
requeria prudncia ao mesmo tempo que boa direo.
Precisamente por terem sido reconhecidos culpados de
propalar para Portugal e provncias do Brasil o que em
sesses anteriores se passara a respeito do magno assunto,
no intuito de fomentar enredos e suscitar embaraos, foram
na reunio de 20 de agosto eliminados seis "operrios",
cujos nomes a ata no menciona, ficando eles porm "notados
sob a vigilncia do povo manico e enquanto durasse a luta
com Portugal" (227).
Na sesso imediata, que foi a de 23 de
agosto, pelo fato mesmo de terem na anterior manifestado
vrios oradores o desejo de que fosse simultnea no pas a
aclamao real, a fim de no parecer precipitada uma medida
de carter nacional, tratou-se de despachar para as
provncias delegados no intuito de facilitarem a execuo do
ideal da proclamao da independncia e obstarem a que
qualquer "corporao civil ou sociedade particular"
precedesse a maonaria na glria da empresa, na qual tinha
ela sido a primeira "em dar o necessrio impulso opinio
pblica".
Ofereceram todos contribuies, consoante
suas posses, para as despesas do movimento, e tambm seus
servios pessoais. Assim foram entre outros destacados para
Minas o padre Janurio da Cunha Barbosa, para Pernambuco
Joo Mendes Viana, para a Bahia Gordilho de Barbuda e para
Montevidu o Dr. Lucas Obes. Tal receio de perder a
precedncia no era de resto infundado, pois que por sua
parte outros estavam trabalhando de fora para idntico fim.
Conta Drummond que, quando o padre
Janurio chegou a Minas, j encontrou por todas as vilas;
desde Barbacena, lavradas as atas dos senados das cmaras,
por efeito de cartas de Rocha, Drummond, e outros. De
Pernambuco Filipe Neri Ferreira, que no Rio se filiara na
loja Comrcio e Artes, prometera muito, mas como
parecia nada cumprir e o tempo urgia, um mao que era dono
e capito de um navio, encarregou-se de levar o emissrio ao
Recife. Logo depois chegaram comunicaes tranqilizadoras
do novo governo provisrio e do prprio Filipe Neri Ferreira
e voltou arribado o navio que transportava Joo Mendes
Viana, a quem Jos Bonifcio fez de novo seguir num esprito
de cilada, com intuitos reservados de perseguio (228).
Jos Bonifcio no podia deixar de
encarar com maus olhos uma sociedade que o tratara com
tamanha falta de contemplao. Refere o autor da
Exposio histrica da maonaria no Brasil que a
resoluo rebaixando-o a adjunto e elevando Dom Pedro a
gro-mestre, foi absolutamente irregular. Em vez de ser
tomada em assemblia geral foi "disposta em sesso
particular da grande loja", sem ser sequer prevenido o
gro-mestre, o qual de certo se no oporia homenagem,
antes formularia ele prprio a proposta. Isto era justamente
porm o que Ledo queria evitar, para que ficasse o prncipe
a dever-lhe a gentileza.
Dom Pedro prestou logo juramento e
recebeu o gro-malhete, pronunciando Domingos Alves Branco
um discurso no qual j se enxerga verdadeira animosidade e
se verifica quo afastados j estavam os Andradas dos seus
inimigos polticos. "Precavei-vos, respeitvel gro-mestre,
de embusteiros, disse o orador da loja Comrcio e Artes.
No vos abandoneis, a enredos, a vos caprichos. Atendei
que na criao de um imprio deveis ter em muita
considerao qual o gnio que o pode conservar ou que o
pode destruir. Deus tem visivelmente mostrado que auxilia a
nossa justa causa; no trabalhemos para que ele retire a sua
onipotente mo, para nos deixar cair nas desgraas e na
confuso, apartando-nos dos vnculos que nos unem e das
condies do nosso pacto social, tendo por ele o imperador a
prerrogativa de fazer todo o bem sem ser responsvel pelo
mal. Se mos mpias pela intriga pretendem apagar a sagrada
tocha que nos alumia, sejam estes sacrlegos lanados para
fora do nosso grmio, e sejam detestados e os seus nomes
apagados da tabela que nos honra... Apartai-vos, digno
gro-mestre, de homens colricos e furiosos; por mais
cientes que eles sejam nunca acham a razo e s propendem
para o crime. Vs tendes sabedoria, prudncia, comedimento e
moderao; portanto no vos deveis abandonar a malvados.
Atalhai todo o ulterior progresso da intriga, confiando dos
vossos leais maes...
No que concordavam todos era em que a
dignidade do soberano fosse a imperial. O prprio Alves
Branco, aps seu violento discurso, deu os vivas nesse
sentido. A cerimnia da aclamao devia ter lugar no
palacete do campo de Sant'Anna edificado para as festas da
realeza, e o imperador seguiria depois a p, debaixo do
plio, at a capela imperial. Os maes eram convidados a
comparecer todos, fardados os que fossem oficiais da 1. e
2. linha, "com armas ocultas" os paisanos, rodeando quanto
possvel a pessoa de Dom Pedro para resguard-lo dos golpes
de algum possvel traidor (229).
O momento era de exaltao e Dom Pedro
chegou a perder a compostura o que alis no lhe era difcil
quando irado - na ltima carta que escreveu ao pai, a 22 de
setembro, respondendo s recomendaes de el-rei sobre a
observncia e obedincia devidas s ordens das Cortes, as
quais tinham feito inserir na carta paterna uma leve
admoestao. Esta carta to descabelada , que se poderia
antes ter por apcrifa, no figurando de resto entre as
traduzidas por Eugne de Monglave, se a no publicasse Cairu
na sua Crnica autntica da regncia do Brasil.
"Firme nestes inabalveis princpios, digo (tomando a Deus
por testemunha e ao mundo inteiro), a essa cfila
sanguinria, que eu, como prncipe regente do reino do
Brasil e seu defensor perptuo, hei por bem declarar todos
os decretos pretritos dessas facciosas, horrorosas,
maquiavlicas, desorganizadoras, hediondas e pestferas
Cortes, que ainda no mandei executar, e todos os mais que
fizerem para o Brasil, nulos, irritos, inexeqveis, e como
tais com um veto absoluto, que sustentado pelos
brasileiros todos, que, unidos a mim, me ajudam a dizer:
De Portugal nada, nada; no queremos nada.
Se esta declarao to franca irritar
mais os nimos desses lusos-espanhis, que mandem tropa
aguerrida e ensaiada na guerra civil, que lhe faremos ver
qual o valor brasileiro. Se por descoco se atreverem a
contrariar nossa santa causa, em breve vero o mar coalhado
de corsrios, e a misria, a fome e tudo quanto lhes
podermos dar em troco de tantos benefcios, ser praticado
contra esses corifeus; mas que, quando os desgraados
portugueses os conhecerem bem, eles lhes daro o justo
prmio.
Jazemos por muito tempo nas trevas; hoje
j vemos a luz. Se V. M. c estivesse, seria respeitado e
amado; e ento veria que o povo brasileiro, sabendo prezar
sua liberdade e independncia, se empenha em respeitar a
autoridade real, pois no um bando de vis carbonrios e
assassinos, como os que tm a V. M. no mais ignominioso
cativeiro".
CAPTULO XVII
OS LTIMOS DEBATES EM LISBOA.
O VOTO DA CONSTITUIO E A DEBANDADA
DA REPRESENTAO BRASILEIRA
A representao portuguesa nas Cortes
tinha benevolamente concedido brasileira duas agncias de
previdncia constitucional, que eram a comisso
luso-brasileira, cujo parecer de 18 de maro, posto pelo
avesso pelo parecer posterior relativo representao
paulista, s depois de 1. de julho, isto , depois de
votadas as medidas de represso contra os dscolos de
alm-mar, entraria em debate, e a comisso especial
brasileira incumbida de formular os aditamentos e
modificaes que a experincia das coisas da sua terra
sugerisse a esses deputados, para fazerem parte da lei
orgnica do Reino Unido, a fim de que esta pudesse operar
sem atritos e muito menos desavenas como as que estavam
assinalando sua discusso.
Era aparentemente, e para alguns
sinceramente, uma tentativa final de composio, da qual a
maioria portuguesa do Congresso conservava contudo nas mos
a regulao: era tambm o meio de encerrar a discusso do
instrumento constitucional, a qual j se estava prolongando
demasiado para um pas que no via sem desconfiana esse
ensaio de regenerao que punha fim a tanta idia
tradicional e a tanto costume querido.
A comisso constitucional brasileira foi
formada de luminares da representao - Antnio Carlos,
Vilela Barbosa, Fernandes Pinheiro, Lino Coutinho e Arajo
Lima - e o resultado dos seus trabalhos foi apresentado a 17
de junho. O parecer correspondia ao mrito dos que o
elaboraram, obedecendo inspirao geral das instrues
dadas aos deputados paulistas por Jos Bonifcio.
O regime do dualismo foi respeitado pela
comisso, cabendo a cada reino sua legislatura e havendo um
parlamento como hoje se diria imperial, para lidar
com os interesses comuns - polticos, mercantis, militares,
comerciais -, composto de 50 representantes, 25 de cada
seo da monarquia, nomeados pelas respectivas legislaturas.
Era um sistema muito parecido com o que depois conheceu a
ustria-Hungria quando se estabeleceu em 1867 o
Ausgleich, com sua sesso anual das respectivas
delegaes parlamentares. Gozaria esse parlamento imperial
do poder supremo de sancionar, ou de suspender por nociva
aos interesses gerais da monarquia ou aos interesses
privativos de cada reino nas suas relaes um com o outro, a
legislao emanada dos dois Congressos, nos quais tomariam
assento os representantes das possesses asiticas e
africanas, conforme a prpria escolha - a autodeterminao -
destas colnias.
O executivo americano caberia ao herdeiro
da Coroa, ou na sua impossibilidade a um membro varo da
famlia real, ou em ltimo caso a uma junta de regncia,
sendo representado em cada provncia por um delegado,
equivalente a um prefeito de departamento no imprio francs
ou, melhor ainda, a um presidente de provncia do imprio
brasileiro, e assistido por secretrios de Estado
responsveis. O governo de Lisboa s se reservaria em ltima
instncia a nomeao dos ministros do supremo tribunal de
justia - que a Constituio portuguesa acabou por
estabelecer no Brasil pelo seu artigo 193, com atribuies
iguais ao de Portugal (230) - e dos bispos,
submetidos em listas trplices sua escolha. alada do
regente ou da regncia s escapavam assim o manejo das
relaes exteriores, a declarao de guerra, e a concesso
de ttulos honorficos.
Este projeto correspondia
"independncia moderada" de que falava Dom Pedro aos
baianos, mas j existiam federalistas que queriam uma
legislatura para cada provncia, e para os regeneradores
chauvinistas tratava-se de pura "independncia mascarada".
Do ponto de vista constitucional uma objeo foi
apresentada, que tinha o seu valor: a organizao
preconizada ofendia as bases da Constituio na parte em que
esta estabelecia uma Cmara nica. O exemplo da conveno
francesa, a recordao da sua obra altaneira em defesa da
Frana revolucionria atacada por todos os lados, erguia-se
contra o princpio de uma segunda cmara conservadora,
cmara absorvente no modelo que fora aventado, pois que lhe
caberia a faculdade de anular a obra das legislaturas cis e
transatlntica. A concesso desta legislatura, independente
e superior na sua misso, aterrava mesmo mais do que a de
uma cmara alta ou simples cmara revisora dos projetos da
cmara baixa.
O argumento brasileiro, em resposta a
essa objeo, de que Cortes Gerais eram s umas, essas,
reconhecidas por toda a monarquia, no passando as outras de
parlamentos locais, como o eram as cmaras municipais,
legislando por posturas nas suas pequenas circunscries,
soa como um sofisma. Os que o formulavam mesmo reconheciam
que a funo censria do proposto parlamento imperial
assentava porventura melhor Corte Suprema de Justia ou ao
Conselho de Estado.
Outro argumento brasileiro tinha mais
fora e era o da necessidade de haver Cortes no Brasil que
temperassem a ao do executivo, facilmente desptica sem
esse freio. Logo houve quem se aproveitasse de tal receio
para insinuar, em vez de um regente nico, uma srie de
vice-reis, tantos quantas as provncias, o que obedecia ao
plano persistente de romper a unidade do reino americano -
"nico e indivisvel" dizia Lino Coutinho, arremedando a
Frana da Conveno. Gomes de Carvalho a este propsito
mostra a converso do inteligente baiano, que era dantes um
puro girondino, e lembra que Jos Bonifcio fizera escola.
Se Cortes alis deviam ser s umas, uma s devia tambm ser
a regncia, segundo as bases.
No esprito dos que defendiam com brilho
e ardor o projeto da comisso havia mais sinceridade do que
se pode primeira vista imaginar. A independncia era um
grande ideal, mas cuja realizao trazia no bojo uma ameaa,
que era a do desmembramento do Brasil. No se achava por
acaso fragmentado o imprio espanhol da Amrica? Resistiria
o imprio portugus s tendncias desagregantes,
especialmente ao federalismo dissolvente que parecia querer
primar entre o elemento avanado? O dualismo conservava
vantagens manifestas, se fosse lealmente aplicado, num
esprito de igualdade, e o deputado portugus Sarmento,
nascido no Brasil, chegou a notar com razo que desde o
advento do regime constitucional havia maior nmero de
afinidades e mais coeso entre Portugal e Brasil (231).
A questo estava naquela lealdade da
aplicao e tambm em poder-se suprimir certa conformao da
mentalidade, comum a todas as metrpoles, que as faz sempre
olhar para suas colnias com um desprezo mesclado de cime,
tendendo a minguar-lhes a valia e a no descobrir nelas
condies para um governo prprio. A maioria portuguesa no
quis atender a razo alguma, nem mesmo aceder a que a
legislatura transatlntica fosse apenas consultiva: no foi
sequer admitida a discusso a proposta da comisso neste
ponto essencial.
O prncipe real foi excludo do direito
regncia brasileira pelo temor de que se afeioasse
demasiado a terra - o exemplo de Dom Joo VI estava vivo e
bem recente o trabalho que dera arranc-lo de l - e tambm
pelo interesse dinstico e pessoal que o mesmo teria em no
despedaar a unidade poltica e administrativa do reino
americano. O ideal para a maioria portuguesa das Cortes era
a multiplicidade dos governos provinciais, a qual, dizia
ela, agiria como o melhor corretivo no caso de despotismo do
executivo, apontado como possvel na falta de uma
legislatura. A igualdade entendida doutro modo do que esse,
ao revs, traduzia a seu ver a dependncia da seo menor da
monarquia.
O exemplo nada distante da separao da
Amrica Inglesa, por falta de uma compreenso lcida da
situao das treze colnias e do sentimento dos seus
habitantes da parte dos homens de Estado britnicos ento no
governo, no ajudara a regenerao a enxergar melhor o
perigo. Acumulava esta erro sobre erro, acumulando as
provocaes que eram ainda mais de atos que de palavras.
As discusses eram simultneas, do
parecer da comisso constitucional brasileira e do da
comisso mista - o de 18 de maro, cuja discusso recomeou
de fato aps a adoo das medidas punitivas, no passando o
de 10 de junho do produto da suspenso do debate anterior,
motivada pelos denominados atos de rebeldia paulista - e
simultneas eram as denegaes a tudo quanto fosse aspirao
de verdadeira autonomia da colnia elevada a reino.
Enquanto nas Cortes lutavam as duas
deputaes, o governo brasileiro adiantava-se s resolues
tomadas em seu detrimento na sede da Monarquia. A convocao
da Assemblia Constituinte convertera-se numa realidade,
mesmo porque a condio real do Brasil brigava com os
projetos de organizao de que em Lisboa se discutiam
gravemente os prs e os contras, como se nada houvesse de
positivo para os regular alm-mar de acordo com o meio
poltico e social.
Assim a necessidade absoluta para o
predomnio portugus de manter e sustentar Madeira na Bahia
era o argumento mais forte contra a oposio doutrinria
movida pelos brasileiros diviso nas antigas provncias do
poder civil do militar, um absurdo em direito pblico
conforme mostrou Vilela Barbosa, porque ao executivo cabe
sempre a disposio da fora armada, sem a qual no poderia
dar sano s suas determinaes.
O parecer procurara uma forma que se lhe
afigurava vivel, fazendo do comandante das armas membro da
junta e com voto exclusivamente nos assuntos militares,
obediente no entanto s decises coletivas. Esta
participao efetiva, pois que era deliberativa, do elemento
militar na vida do executivo ou na administrao pblica,
contrariou porm vrios partidrios da preponderncia do
elemento civil, como Vilela Barbosa, que mostravam
desconfiar do arreganho blico desses "pretores lusitanos
que ficavam sendo membros natos dos governos locais, com a
fora das legies que comandam" (232), quando
Silvestre Pinheiro Ferreira pensava at que a nomeao dos
comandantes de armas devia caber s juntas provinciais.
* * *
Nesta altura dos debates surgiu
entretanto no seio das Cortes uma dvida que era uma ameaa:
subscreveriam os deputados americanos, interpretando
fielmente seu mandato, o pacto constitucional cuja redao
estava finda, mas no qual os direitos do reino brasileiro
estavam exarados platonicamente, pois que na prtica lhe
andavam no s regateados como at recusados? Importava que
o provisrio das disposies gerais no adquirisse a
permanncia da lei, e de uma lei orgnica, sem esse ato
adicional puramente brasileiro.
Cipriano Barata, com seu habitual
desassombro, formulou o dilema nos termos menos equvocos,
declarando que no dava sua assinatura se o parecer da
comisso fosse adiado e a Bahia continuasse ocupada por
tropas europias, portanto em estado de guerra. Por despique
alguns dos antagonistas do Brasil emprestavam-lhe desgnios
fratricidas, de pensar em fazer derruir o edifcio da
regenerao pela soldadesca da Santa Aliana e em
apoderar-se das colnias portuguesas, ao que se devia
responder estancando em Angola, com a proibio da sada de
negros escravos, a fonte da prosperidade brasileira.
Para Moura, que repudiara sem rebuos o
esforo que sobre si mesmo fizera para tornar por algum
tempo conciliadora sua disposio anteriormente agressiva, a
situao variara completamente desde que dela se podia
traar o seguinte esboo: em vez das juntas respeitarem
todas, como dantes, as decises das Cortes, "a de So Paulo
desobedecia, injuriava e at negava a autoridade do
Congresso, a de Minas legislava, a de Pernambuco obedecia
numas coisas e desobedecia noutras, a da Bahia fazia
raciocnios, a do Maranho hesitava e a cmara do Rio
reclamava independncia". Tal estado de coisas fora
sobretudo criado pelo proceder dos paulistas, o qual no
podia ser encarado com tibieza e contemporizao.
A 22 de julho, vspera do dia em que
foram publicados os decretos de l. de julho destinados a
promover o rompimento definitivo, rejeitava o Congresso,
mais uma vez dominado por Fernandes Toms, que negava
Amrica o que reclamara revolucionariamente para a Europa -
governo prprio e responsvel - o artigo do parecer relativo
subordinao do governador militar s juntas provinciais,
alis j rejeitado pela comisso. Ficava essa soluo
provisria de lado, aguardando a soluo definitiva por meio
dos artigos adicionais constituio e ficava tambm adiada
para ento a discusso da emenda proposta por Alencar, do
Cear, que no intuito disfarado de livrar a Bahia da
presena de Madeira, sugeria a remoo dos comandantes de
armas em conflito com as respectivas juntas provinciais.
Ficavam portanto os procnsules na
plenitude da sua autoridade mais longa que a das juntas, e,
quanto retirada das tropas portuguesas, menos possvel era
ainda efetu-la quando sua permanncia obedecia, segundo
Moura, a um trplice fim: reprimir os independentes, guardar
as pessoas e bens dos europeus e proteger os brancos contra
os negros. O Brasil era quem mais perderia alis, no
conceito do orador da regenerao, com tal retirada, como se
perderia avocando uma independncia que o havia de despojar
do carter poltico europeu que ento lhe dava a unio com
Portugal e o poria merc das ambies de potncias
cobiosas, contra as quais se formularia, mas s no fim do
ano imediato, a doutrina de Monroe.
A aceitao pelo prncipe regente do
ttulo de defensor perptuo significava que sua residncia
no Brasil estava assente pelo menos at o falecimento de Dom
Joo VI trazer-lhe mais altos e amplos deveres. Por mais que
os deputados brasileiros explicassem que toda a poltica dos
seus conterrneos obedecia ao fito de pr o reino americano
ao abrigo da anarquia que se seguiria ao desaparecimento do
seu centro executivo, os deputados portugueses nela s viam
palpitar a nsia da separao. E no se enganavam de resto
muito, pois j deixara de ser possvel manter a ligao.
Negando ao Brasil os direitos de um reino
no s unido mas uno, esforando-se para roubar-lhe a
integridade, as Cortes regeneradoras tinham-no levado
necessidade imprescindvel de desfazer a unio. Os
representantes ultramarinos andavam naturalmente adstritos a
certas reservas, mas ocasies havia em que as punham de
banda e a verdade irrompia fremente dos seus lbios. Antnio
Carlos numa dessas agitadas sesses de junho e julho no
teve pejo de dizer que seguiria em tudo e por tudo a opinio
da sua provncia. Se o Brasil se quisesse declarar
independente, para ele seria um dever religioso acompanh-lo
nessa resoluo.
Pelo ms de agosto as Cortes tinham
perdido o melhor do seu interesse para os legisladores
brasileiros e para os seus comitentes. No se oferecia mais
uma soluo satisfatria para os dois lados. A comisso
constitucional brasileira ficou, pelas substituies que
nela ocorreram com a retirada de Fernandes Pinheiro, Antnio
Carlos, Lino Coutinho e Arajo Lima, reduzida a um pessoal
secundrio: apenas se conservou Vilela Barbosa, agora com
Martins Basto, Belford e Fortunato Ramos, gente alis de
comprovado sentimento nacionalista.
As figuras principais da deputao
americana desertaram mesmo o cenrio de discusses que
pareciam de simples encomenda, travadas para encher tempo.
Ainda se debateu a questo malsinada da regncia. A
comisso, desistindo da idia de ter no Brasil o sucessor da
Coroa ocupando o cargo ex-ofcio, propusera uma nica
junta regencial de sete membros, escolhidos pelo soberano
dentre os designados por cada provncia. Essa junta elegeria
seu presidente e vice-presidente e organizaria uma lista da
qual el-rei igualmente escolheria trs secretrios de
Estado, todos - regentes e secretrios - dependentes do
governo de Lisboa e no podendo prover os bispados, nem os
lugares do Supremo Tribunal de Justia, nem os postos
militares da mais elevada graduao, nem praticar atos
internacionais nem conceder mercs honorificas.
A maioria portuguesa, cega a todas as
ameaas e surda a todos os apelos, irritando-se antes com
estes e com aquelas, repeliu a unidade da regncia por ser
demasiado vasto o pas para uma s autoridade suprema julgar
os recursos que subiam at sua deciso. Indispensvel lhe
parecia haver dois centros executivos, podendo o Brasil
setentrional continuar por seu lado diretamente sujeito a
Portugal, o que redundava em trs fragmentos, dois com certa
autonomia e um puramente colonial.
Era destarte que o Soberano Congresso se
desobrigava da sua reiterada promessa de fazer julgar pelos
representantes transatlnticos o que dissesse respeito
organizao dessa seo da monarquia, remediando por meio de
artigos adicionais o que no tivesse sido discutido com sua
participao. Duas regncias implicavam logicamente dois
exrcitos, cada um sujeito sua autoridade suprema, e um
mecanismo administrativo e judicirio local e superior. A
defesa nacional ficava com isso singularmente comprometida,
assim como perigava a manuteno da ordem pblica, correndo
mesmo o risco de rivalidades, discrdias e at conflitos
entre essas pores polticas arredadas sem razo umas das
outras.
O voto do Congresso, que Gomes de
Carvalho muito bem apelida de manhoso, foi por fim, como que
cedendo comisso, a favor de uma regncia coletiva nica,
da qual pudessem ser separadas algumas provncias
para ficarem sujeitas ao governo de Lisboa. Era pior do que
manhoso, porque era estpido. E verdade que dava a iluso do
respeito vontade particularista das provncias que se
quisessem desprender do seu centro americano, mas o desgnio
oculto era garantir a Bahia, conservada portuguesa pela
espada de Madeira, contra a vassalagem regncia
brasileira.
A maioria eliminou ainda da ltima
proposta brasileira, que Guerreiro defendeu sem a clusula
de opo poltica que lhe foi apensa - achando apenas
eqitativa a continuao da dependncia do Par-Maranho do
governo de Lisboa, enquanto a sede da regncia brasileira
no fosse transferida do Rio para ponto mais central - a
eleio popular dos propostos seleo real.
Dada a organizao monrquica do pas,
uma delegao executiva parecia com efeito dever ser de
plena e livre escolha do monarca de quem constitua a
representao direta e imediata. Por outro lado, porm,
tinha bastante de desptico esse executivo local de pura
nomeao do soberano, sem o contrapeso de um poder
legislativo, apenas o de uma imprensa atrevida, que ainda
no aprendera a ser comedida, e com a fiscalizao longnqua
do Congresso de Lisboa. O teor da proposta, tal como foi
aceita, ficou sendo o seguinte: el-rei nomearia os membros
da regncia aps ouvir seu conselho de Estado, que era
escolhido pela legislatura nacional.
No se limitaram contudo as disposies
hostis ao Brasil s questes de organizao constitucional.
A autorizao para a celebrao de um emprstimo de 4.000
contos abrangia o custeio de expedies militares contra as
provncias rebeldes, para onde o governo de Lisboa pensava
transportar os voluntrios reais da Banda Oriental, 3.600
homens que a indisciplina espreitava.
Por um lado o vivo antagonismo poltico
suscitado entre os elementos europeu e americano no Brasil e
que, tornando-se agudo, levou transformao do reino
autnomo em imprio independente, e por outro lado a adeso
da campanha cidade de Montevidu, fizeram com que as
foras portuguesas da guarnio no mais achassem fora de
propsito que os elementos patriticos da Provncia
Cisplatina se voltassem para Buenos Aires, cujo governo
apesar de inspirado por um ministro como Rivadavia, no
considerou todavia oportuno o momento para se lanar numa
guerra que poderia acarretar a extino do lao poltico
federal que desde pouco ligava as Provncias Unidas,
preferindo tentar o recurso diplomtico com a misso de D.
Valentim Gomez, a qual gorou por completo.
Os voluntrios reais no queriam na
verdade contribuir para assegurar a unidade e integridade de
um Brasil poderoso, que detivesse a importante posio de
Montevidu. Diziam-se, segundo refere Cairu, atacados de
nostalgia, pelo que o velho economista os compara aos suos
pelo desejo que estes mostravam, quando ao servio do
estrangeiro e sem a menor quebra alis da sua reconhecida
fidelidade, de regressar para seus cantes. O decreto de
convocao da constituinte brasileira ofereceu-lhes o
pretexto da sublevao.
O brigadeiro D. lvaro da Costa de Sousa
de Macedo seduziu para isso a principal oficialidade e tropa
e, em conseqncia, a proclamao do conselho militar de 28
de junho repeliu in limine toda coligao com as
outras provncias do Sul para separarem o Brasil de
Portugal. Se os brasileiros se julgavam com direito a tanto,
no os podiam auxiliar soldados portugueses nessa empresa
desleal: motivos de honra e melindre disso os inibiam". A
providncia tomada pelo regente de dissolver o conselho
militar no impediu a sublevao de tornar-se efetiva,
apoderando-se D. lvaro da cidade, usurpando o governo e
obrigando o general Lecor, que no entanto assinara a
proclamao do referido conselho, a retirar-se para a
campanha com a parte da tropa que lhe ficara fiel e alguma
fora uruguaia comandada por Frutuoso Rivera. Tambm a
guarnio da Colnia do Sacramento continuou firme na sua
adeso causa brasileira. O castigo infligido no Rio aos
soldados da expedio de Francisco Maximiliano contribuiu
depois para acirrar as disposies dos rebeldes, cuja
atitude se prolongou como tal pela fase da independncia e
s ento recebeu seu desfecho.
* * *
A rejeio sistemtica de quanto fosse
projeto favorvel ao Brasil e a adoo igualmente
sistemtica de quanto fosse contrrio aos seus interesses ou
s suas simpatias tinham semeado o desnimo entre a
deputao brasileira, pelo menos entre a grande parte dela
que era brasileira de nome e de sentimento, ao ponto de
julgarem esses ociosa sua presena. No queriam entretanto
as Cortes ir at as conseqncias lgicas da sua poltica,
que abrangiam a excluso, de resto requerida por Antnio
Carlos e alguns colegas paulistas, dos representantes das
provncias que tivessem abraado a causa da regncia,
provncias portanto taxadas de rebeldes.
A regenerao preferia jungi-las ao seu
carro de triunfo, por mais inconseqente que pudesse
parecer, a partir da deciso de 3 de junho relativa
constituinte brasileira, a simultaneidade da presena de
representantes das provncias do Brasil no Rio de Janeiro e
em Lisboa, onde o Congresso deixara de ser imperial.
O estado de esprito da maioria das Cortes continuava porm
a ser tal, e alis fatos havia que o tornavam exeqvel, que
muitos eram ainda no seu seio os que contavam com a
continuada adeso ultramarina, tantos quantos os que
descontavam o malogro da tentativa parlamentar de unio.
As figuras principais dentre os
americanos eram nacionalistas: vrios destes eram antes
bairristas, mas por esta circunstncia mesma e pela sugesto
ainda poderosa que a me-ptria exercia sobre outras das
figuras, a deputao brasileira estava longe de oferecer um
todo coeso e uniforme, do que a maioria tirava partido para
mais facilmente fazer pesar sobre o reino transatlntico o
jugo da sua preponderncia.
Nem pela rebeldia parecia dado s
provncias separarem-se da Monarquia e assim se ia
engendrando uma situao embaraosa. A Bahia por exemplo
debatia-se nas convulses de uma luta armada: aos seus
deputados entretanto cumpria ficarem e votarem a
constituio que lhes ia ser apresentada como a lei orgnica
do Reino Unido e que sua terra estava dando provas
inequvocas de repulsar, pelo menos sem ter a oportunidade
de discuti-la e modific-la por meio da sua prpria
legislatura.
Fervia a rebeldia no s fora como dentro
das Cortes com as declaraes dos deputados dscolos,
fundadas nos votos dos seus comitentes, que aqueles
interpretavam intencionalmente como revogaes de mandatos;
fundadas tambm na lgica dos fatos. O Brasil j possua por
vontade da nao um arcabouo constitucional que Portugal
no admitia e de que no cogitava sua constituio, a qual
devera ser comum. Em oposio a uma regncia "temporria e
amovvel", exercendo sua autoridade por delegao do
executivo de Lisboa, o Brasil tinha agora um "defensor
perptuo" aclamado pelo povo e ia ter sua assemblia
legislativa. Muitos derivavam da razo para no quererem
jurar a constituio, cujo voto estava iminente no ms de
setembro.
Em que posio ficavam esses, diante que
fosse das suas conscincias, se aceitassem um pacto que, uma
vez promulgado, coagia o prncipe a deixar a regncia e
regressar para Portugal sob pena de perder o direito de
sucesso Coroa? Cederia o Brasil o penhor nico que
possua da sua soberania, a garantia exclusiva da sua
autonomia? E com que direito assumira Portugal o encargo de
dirigir a organizao brasileira, quando entre as duas
sees da Monarquia desaparecera a primazia desde a
trasladao da corte para o Rio de Janeiro e quando Portugal
rompera revolucionariamente os lados que as uniam,
procedendo sua prpria organizao de acordo com as normas
de um regime que no era o estabelecido?
O deputado baiano, padre Marcos Antnio
de Sousa, numa carta (233) escrita de Londres a
um amigo em 29 de maro de 1823, tratava a obra das Cortes
de "peripatetismo democrtico" e, ao chegar ao Rio a 23 de
maio do mesmo ano, apresentou ao imperador um histrico
elucidativo (234) das ocorrncias passadas no
Congresso e por ele qualificadas de "grande terremoto
poltico produzido pelo interesse mercantil de restringir ao
Tejo e Douro o comrcio brasileiro".
A questo econmica tinha-se com efeito
identificado com a questo poltica a ponto tal que no era
mais possvel destrin-la. As Cortes moviam-se sob o duplo
e associado impulso do amor prprio portugus e do interesse
nacional. O juramento das bases constitucionais firmara
apenas a igualdade dos direitos e no se reportava a
modalidades que podiam ser peculiares a um ou a outro reino.
A adeso brasileira ao constitucionalismo fora franca e
espontnea, mesmo porque ningum h que se preste
voluntariamente sujeio. Estava entendido que o regime a
adotar-se seria de comum e recproca liberdade.
Nos ltimos debates das Cortes reapareceu
a este propsito, nos lbios de Alencar, o mesmo argumento
que fora empregado para vencer as hesitaes da junta de
Pernambuco presidida por Gervsio Pires. Dom Pedro no
excedera seu mandato convocando Cortes no Brasil, porque a
autoridade de que ele agora se achava revestido no era mais
a que lhe fora delegada por el-rei e sim a que lhe fora
confiada pelo povo brasileiro, o qual procedeu nessa crise
como o povo portugus na sua reivindicao de 1820.
Num ponto parecia assistir aos
regeneradores razo, e era que os brasileiros tinham jurado
aceitar a constituio que fosse elaborada nas Cortes, onde
seus mandatrios tiveram ensejo de discuti-la amplamente e
pode dizer-se que at certo tempo livres de coao, no
desconhecendo que constituam minoria e que nas assemblias
so as maiorias que prevalecem. Era esta porm precisamente
a argio dos brasileiros: que no havia para eles meio de
levarem por diante vantagem alguma quando o volume dos votos
portugueses lhes barrava o caminho. Nestas condies toda
discusso era um ludibrio e buscava-se o meio de fugir a
representao brasileira ao compromisso constitucional.
Props-se tambm, e nesta proposta foi
conspcua a deputao pernambucana, como na contrria
assinatura tinham sido salientes as deputaes paulista,
baiana e cearense, aguardar notcias do acolhimento
dispensado pelas provncias do Brasil ao chamamento da Unio
para Cortes privativas nacionais. Se viesse a dar-se a
dualidade de legislaturas, para que jurar o que deixava por
si mesmo de ser um pacto para ser to somente a lei orgnica
de uma das sees da Monarquia? O pacto a fazer-se seria
ento o resultado de uma transao entre as duas assemblias
constituintes e soberanas.
de 11 de setembro a indicao
apresentada pelo padre Marcos Antnio e outros deputados,
dizendo que o "Congresso tinha destrudo a base principal da
legislao e que aquela constituio no era legal por no
ser conforme vontade geral do Brasil ou da maioria da
nao, e por conseqncia no valiosa; e qualquer assinatura
devia ser considerada coata, e por isso nula, e irrito o
juramento acessrio, que no legaliza um contrato de sua
natureza invlido e ofensivo dos direitos mais sagrados de
um grande povo". Por este meio, dizia o futuro bispo do
Maranho na carta citada, "temos salvado o direito dos
nossos constituintes e a nossa honra responsabilizada aos
nossos compatriotas".
O argumento capital dos portugueses era
que aos brasileiros competia dar execuo ao mandato que
tinham recebido e no adiarem a discusso final com
subterfgios. Tinham entretanto os brasileiros podido
cumprir seu mandato? Eles afirmavam que no, porque todas as
suas propostas tinham sido rejeitadas, todas as suas
aspiraes cortadas, todas as suas esperanas ceifadas. No
se tratara da votao de projetos sem transcendncia:
tratara-se do assunto da maior relevncia para uma
comunidade, qual a carta dos seus direitos. Acima das
excelncias do texto constitucional estava a vontade das
populaes para as quais devia ela servir de instrumento
patritico.
* * *
No houve afinal com relao assinatura
e depois ao juramento da Constituio Portuguesa de 1822
uniformidade de ao da parte dos deputados brasileiros,
sinal de que a unio se achava quase formada do outro lado
do Atlntico, mais ainda o no estava deste lado, apesar da
irmandade dos esforos desenvolvidos em prol de uma mesma
causa. O que houve foi muita vacilao, bastante
discordncia de opinies e alguma pusilanimidade, exceo
feita dos paulistas, dos quais Fernandes Pinheiro foi o
nico a condescender com a atitude da maioria, a qual
entendeu que nenhum representante da nao devia ser
dispensado da sua obrigao, no s parlamentar como cvica.
Em certos espritos influiu para igual condescendncia a
circunstncia do nascimento, noutros as tradies das suas
terras.
Aconteceu para mais que o juramento teve
lugar a 30 de setembro e desde a vspera que as notcias
chegadas do Rio davam a segurana da independncia
legislativa do reino americano. Escreve Gomes de Carvalho
que no nimo do maior nmero dos que juraram pesou a
considerao de que um ato anormal e violento como tal
recusa, traria de novo em Portugal o despotismo, dada a
tendncia crescente reao. E de fato a independncia do
Brasil foi a razo determinante da dissoluo em 1823 do
regime constitucional portugus de 1820.
Nos clubes da regenerao era
naturalmente viva a sanha contra o governo da regncia
brasileira e os deputados de alm-mar que persistiam em no
aprovar a Constituio estavam especialmente indicados para
os desforos da demagogia. O padre Marcos Antnio de Sousa
refere na sua carta j citada que "houve denncia ao
intendente geral da polcia que se tramava uma conspirao
contra os brasilienses". Destes alguns tinham abandonado o
Congresso, Outros protestaram que no era espontnea a sua
assinatura da lei orgnica.
Entre os mais notveis dos representantes
do reino americano, juraram a constituio Arajo Lima,
Vilela Barbosa Alencar, Castro e Silva, Borges de Barros e
Manuel Zefirino dos Santos. Dois, Lino Coutinho e Muniz
Tavares, que tinham assinado, abstiveram-se de jurar. A 6
de outubro soube-se que na vspera tinham
clandestinamente embarcado no Marlborough, com
direo a Falmouth - aceitando-os o capito sem passaportes
por saber que a legao britnica permitia que ele fechasse
os olhos a essa infrao das disposies policiais do porto
- os paulistas Antnio Carlos, Bueno, Feij e Costa Aguiar
de Andrada e os baianos Cipriano Barata, Lino Coutinho e
Agostinho Gomes.
A decepo foi grande e grandes os
improprios que a exprimiram. A 15 de novembro o Congresso
Constituinte cedia o passo s Cortes ordinrias, onde os
deputados brasileiros ficavam com assento, para no ser
interrompida a representao ultramarina, at chegarem os
novos eleitos. Foram porm finalmente excludos da
assemblia legislativa os mandatrios das provncias
consideradas rebeldes, isto , aquelas que elegessem
deputados Constituinte Brasileira, ou reconhecessem a
regncia do Rio, cassado por desobedincia ao governo de
Lisboa.
J ento a maior parte, quase todos, os
cearenses e baianos nomeadamente, tinham desertado de vez s
sesses. Arajo Lima, sempre amigo da legalidade, convidado
a embarcar, declarara que o no faria sem passaporte. Agora
ficavam sem direitos representao os deputados de So
Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, Paraba e Cear.
O que sobrava era a arraia mida e esta mesma se absteve
quase unanimemente de comparecer na legislatura ordinria,
uma vez posta a questo em semelhantes termos. O Brasil
acabou representado to somente por dois portugueses - o
padre Domingos da Conceio (Piau) e o desembargador
Segurado (Gois) - e dois brasileiros - Francisco de Sonsa
Moreira (Par) e Jos Cavalcanti de Albuquerque (Rio Negro),
o qual viera ocupar o lugar que o seu substituto estava
preenchendo. O escol e o nmero, tudo havia debandado.
Uma vez chegados a Falmouth, os deputados
retirantes redigiram o seu protesto. Antnio Carlos e Costa
Aguiar de Andrada fizeram-no mais prolixamente, os outros
mais sucintamente, todos declarando em resumo que se
retiravam das Cortes por terem visto nelas malogrados seus
esforos a bem dos interesses do seu pas, meditarem-se
apenas planos hostis contra o mesmo e oferecerem-lhes para
ser jurada uma Constituio na qual s se encontravam
disposies humilhantes para o Brasil. Nestas condies,
proibindo-lhes suas conscincias que aceitassem tal lei
orgnica, sua permanncia no era mais do que uma provocao
intil aos doestos e aos atentados que no respeitavam sua
inviolabilidade, nem sequer sua liberdade civil.
O manifesto de Antnio Carlos e de Costa
Aguiar de Andrada, de 20 de outubro - o outro de 22
(235) - parecido na argumentao e at na linguagem
com os manifestos de agosto. As idias so idnticas, como
no podiam deixar de s-lo, e expressas com igual paixo: h
um ar de famlia entre esses documentos. Os dois deputados
paulistas citam as ameaas annimas que recebiam e denunciam
o projeto que havia de assassin-los, "adotado pelas
sociedades secretas", do que "alguns poucos
bem-intencionados" lhes deram aviso, queixando-se eles da
"plebe assalariada pelo partido jacobnico".
O protesto de Antnio Carlos contra o
Astro da Lusitnia, escrito em Londres e datado de 9 de
novembro, particularmente interessante pela corroborao
do conceito que para a separao dos dois reinos as Cortes
contriburam essencialmente. Antnio Carlos fora por esse
peridico citado como um velho independente. "Quando eu me
achei no Rio de Janeiro, escrevia ele em resposta, ainda
ningum pensava na independncia ou em legislatura separada;
foi mister toda a cegueira, precipitao e despejado anncio
de planos de escravizao para acordar do sono da boa f o
amadornado Brasil e faz-lo encarar a independncia como o
nico antdoto contra a violncia portuguesa".
Antnio Carlos explica-se com habilidade
e no entanto com sinceridade, acrescentando: "No pretendo
com isto incluir-me no nmero dos que no sonhavam com este
desejo futuro; no por certo; no tenho to curta vista que
me escapassem as vantagens de s pertencermos ao pacfico
sistema americano, e nos desprendermos dos laos da revolta
Europa; mas o respeito opinio contrria do Brasil naquela
poca, a prudncia de no querer avanar um s passo que no
fosse escorado em anterior experincia, e sobretudo o
natural aferro ao doce sentimento, filho do parentesco e
comum origem do Brasil e Portugal, junto preciso que
ainda me parecia ter de algum apoio a minha ptria, para
segurar-lhe os primeiros passos em a nova e escabrosa
carreira de uma repentina emancipao, fizeram com que
abafasse os meus desejos e os adiasse para mais oportuno
tempo".
O que sucedeu como Antnio Carlos
aconteceu a uma infinidade de outros espritos, cuja
evoluo poltica nacionalista foi rpida uma vez que a
favoreceram e impeliram as circunstncias. Outro ponto
interessante, embora restritamente pessoal, do seu protesto,
o que trata da sua pretensa incompatibilidade para ntimo
conselheiro do prncipe regente, por terem sido seus
primeiros princpios democrticos. Antnio Carlos sustenta
que a liberdade civil e poltica tanto pode dar-se em formas
republicanas como nas monarquias representativas e que
"seria perder o fruto da experincia se no abandonssemos o
caminho que nos desviava do objeto desejado".
E ajunta: "Um brasileiro liberal podia
crer em 1817 ser necessrio aderir a republicanos, e hoje
adotar as instituies monrquicas. Em 1817 a casa reinante,
enganada pelo dio portugus, acabrunhou o Brasil: era pois
bvio lanarmo-nos nas formas republicanas, que s ento
permitiam emancipao. Hoje, graas Providncia, S. A.
Real conhece os seus verdadeiros interesses, e est
convencido que a emancipao do Brasil o passo preliminar
da sua prosperidade e da glria do seu reinado, e tem desta
maneira ajuntado em roda de si os verdadeiros patriotas. E
desta arte, obtendo-se na Monarquia o mesmo que se buscava
nas repblicas federadas, no pasma que nenhum republicano
mude de partido. Quanto mais que jamais se provar que a
minha cooperao em 1817 passasse de passiva tolerncia e
chegasse a ativa participao". Esta ltima frase era
dispensvel, mesmo porque no exata. Antnio Carlos
fraquejou por ocasio do processo dos revolucionrios de
1817 e, para coonestar sua debilidade que tanto contrasta
com a altivez do padre Miguelinho por exemplo, deu para
repudiar uma solidariedade que toda a documentao histrica
prova haver existido e sido at ntima.
Chegou Antnio Carlos ao Rio a 30 de
janeiro de 1823, no brigue ingls Regente, vindo de
Londres em 49 dias. Lino Coutinho, Cipriano Barata,
Agostinho Gomes, Bueno e Feij partiram de Falmouth a 8 de
novembro e ficaram em Pernambuco, por lhes haver constado
que duas corvetas de guerra da esquadra portuguesa cruzavam
na altura dessa barra. O brigue chegou ao Rio a 31 de
dezembro, tendo feito, ao que se refere, a viagem de
Pernambuco at l em sete dias, o que extraordinrio.
O manifesto publicado no Recife a 3 de
janeiro de 1823 por aqueles cinco representantes tem
efetivamente a data de 24 de dezembro e relata que no
Funchal o povo se amotinou com a presena dos brasileiros,
querendo o governador da Ilha da Madeira arranc-los de
bordo. Imperou contudo ulteriormente mais avisada resoluo,
tanto mais quanto o cnsul britnico assegurou aos
retirantes polticos para sua ptria que empregaria a
resistncia que estivesse ao seu alcance para evitar esse
ultraje ao pavilho do seu pas. Os ex-deputados
aconselharam o povo pernambucano que se premunisse porque em
Lisboa se tramava uma expedio contra o Brasil, ou mais
precisamente contra Pernambuco e Alagoas, provncias
descritas em Portugal como anarquizadas, com um governo que
"um fantasma" e tropa sem disciplina em que os soldados
comandam os oficiais".
Medidas violentas como a projetada
invaso eram de natureza a produzir vtimas inocentes entre
os residentes de nascimento europeu. No se descuidou porm
Cipriano Barata de atiar o fogo, dirigindo-se tambm aos
seus conterrneos baianos para condenar o preceder dos
portugueses. Secundou-o fortemente nesta literatura de
combate o seu colega de deputao padre Marcos Antnio de
Sousa, vigrio da Vitria, na Bahia.
Cipriano Barata era um democrata
exaltado, um republicano; o padre Marcos Antnio era
acentuadamente conservador, identificando o liberalismo
com o jacobinismo. Suas idias concordam com as
de Antnio Carlos: um vindo da democracia revolucionria, o
outro da religio tradicional, comungavam juntos no altar da
realeza constitucional. "Nas monarquias representativas, e
bem organizadas, a realeza venerada. Apesar de toda a
liberdade nos debates do parlamento ingls, o monarca o
primeiro cidado e goza toda a responsabilidade no meio de
uma nao livre. Assim pratica o povo mais ativo, e moral,
do mundo civilizado, e por isso mantida na Inglaterra a
ordem pblica. Em toda a parte no s acreditado o governo
ingls, como elogiado o carter da nao... Remata o
abaixo-assinado o seu protesto, e reclamao, declarando que
depois da fatal experincia da Frana, no mais tempo de
se alucinarem os homens com o otimismo poltico e governo
perfeito. Repblica universal, felicidade perfeita sobre a
terra, quimera; o homem s deve procurar sua felicidade na
moral, nos sentimentos virtuosos, e por conseqncia na
obedincia s leis, aos imperantes, e autoridades,
legitimamente constitudas. Enquanto se ocupa com o reino de
entes metafsicos, com repblicas platnicas, e utopias para
inteligncias puras, enquanto distrado das ocupaes teis
se entrega a vs teorias, o tempo voa, a sepultura se abre
diante dos seus passos".
O alicerce poltico do Brasil tinha de
ser uma Monarquia constitucional e liberal associada
democracia, que estava nos hbitos como o liberalismo estava
nas idias. Aristteles, o maior dos filsofos da
antiguidade, escreveu alis que democracia pura no passava
de tirania.
CAPTULO XVIII
OS MANIFESTOS DE AGOSTO
A CONCEPO DA MONARQUIA DEMOCRTICA
Os manifestos de agosto contm a doutrina
do rompimento entre Portugal e Brasil: formam a exposio da
ciso constitucional que acabou com o Reino Unido fundado e
legitimado por Dom Joo VI. Um foi o ato nacional, o outro o
ato internacional da abertura das hostilidades, coincidindo
alis com atos positivos de guerra. Existia mesmo, desde
algum tempo, entre as duas sees da monarquia um estado que
se no poderia chamar de paz e a independncia no foi
afinal mais do que a exteriorizao dessa situao
qualificada nos ltimos tempos por medidas contrrias,
respectivamente tomadas pelos dois governos irmos.
Portugal continuava a afetar sempre que
manejava a frula: ao decreto de convocao da Constituinte
Brasileira respondeu com o decreto de 24 de setembro -
cronologicamente j posterior ao grito do Ipiranga -
declarando nulos quaisquer atos legislativos emanados da
regncia do Rio de Janeiro; mandando verificar a
responsabilidade dos secretrios desse governo "de fato e
no de direito", que tivessem referendado tais atos;
considerando traidores os comandantes de terra e mar e
criminosas quaisquer outras autoridades que obedecessem ao
sobredito governo a partir da publicao do presente
decreto, salvo em casos de coao pela fora; dando por
finda a delegao do poder executivo confiado ao prncipe
real e por nomeada uma regncia nos termos da constituio
(236), e ordenando ao ex-regente o embarcar para
Portugal no prazo de um ms contado desde esta intimao,
sob pena de perda dos seus direitos de sucesso Coroa.
Pelo teor do decreto das Cortes a
permanncia de Dom Pedro no Rio de Janeiro tornara-se, no
s desnecessria como "indecorosa sua alta hierarquia", e
convindo ao futuro da nao que aquele que teria de vir a
ser seu soberano fizesse sua educao poltica
constitucional, mandavam-no os representantes do povo viajar
incgnito pelos pases onde o sistema deixara de ser
absoluto, acompanhado por pessoas esclarecidas, virtuosas e
fiis aos novos princpios.
Quase dois meses antes a regncia
brasileira, que j era uma regncia nacional, adotara porm
uma resoluo com relao a Portugal que virtualmente
encerrava uma declarao de guerra e que constitua a
resposta adequada proibio do despacho de armamento do
estrangeiro para os portos do Brasil, sob pena para os
contraventores do confisco da carga e do navio. Alguns
tinham ento considerado semelhante proibio como uma
medida blica (237) e ela importava pelo menos no
reconhecimento de uma condio de rebelio no reino
americano e portanto na admisso do estado de stio pela
limitao posta liberdade comercial.
A medida brasileira era contudo mais
drstica ainda: nem de resto to fora do comum que as
hostilidades ocorram praticamente antes de teoricamente
estabelecidas. No decreto de 1. de agosto, pelo qual
mandava o prncipe regente reputar inimigas todas e
quaisquer tropas portuguesas que fossem mandadas ao Brasil,
sob no importa que pretexto, sem seu prvio consentimento,
bem como as guarnies e tripulaes dos navios que as
transportassem, Dom Pedro declarava com um tanto de exagero
que fora confirmado "por unnime consentimento e
espontaneidade dos povos do Brasil na dignidade e poder de
regente deste vasto Imprio que el-rei meu augusto pai me
havia outorgado, dignidade de que as Cortes de Lisboa, sem
serem ouvidos todos os deputados do Brasil, ousaram
despojar-me, como notrio".
O decreto invocava ainda os encargos que
lhe cabiam como defensor perptuo daquela "mxima parte da
Monarquia portuguesa" que nele se confiara; a poltica das
Cortes, de recolonizao pela fora armada, apesar do Brasil
j haver "proclamado sua independncia poltica" e convocado
uma Assemblia Constituinte Legislativa a requerimento de
todas as cmaras municipais, quando o Congresso de Portugal
fora na sua origem somente "um ato de clubes ocultos e
facciosos; o fato de Dom Joo VI estar prisioneiro, sem
dispor daquela liberdade de ao que dada ao poder
executivo nas monarquias constitucionais, para mandar
"rechaar com as armas na mo por todas as foras militares
de 1. e 2. linha e at pelo povo em massa" qualquer
tentativa de desembarque no Brasil, "pondo-se em execuo
todos os meios possveis para, se preciso for, se
incendiarem os navios e se meterem a pique as lanchas de
desembarque".
Se, apesar de toda resistncia e mau
grado as fortificaes mandadas levantar e as munies e
petrechos mandados reunir, as tropas de alm-mar tomassem p
em algum porto ou parte da costa, cumpria aos habitantes
retirarem-se para o centro levando para as matas e montanhas
todos os mantimentos e boiadas de que pudessem utilizar-se",
enquanto as tropas de terra faziam aos invasores "crua
guerra de postos e guerrilhas, evitando combates gerais".
Pela letra do decreto continuavam
entretanto "livres as relaes comerciais e amigveis entre
ambos os reinos para conservao da unio poltica, que
muito desejo manter". Assim dizia o prncipe, mas a
contradio era flagrante entre unio poltica e
independncia poltica, esta excluindo aquela na forma
porque estava sendo posta e estava sendo compreendida. Nem o
ajuste das relaes mercantis entre as duas sees da
Monarquia conseguiu vingar nas Cortes. O trabalho emendado
da comisso s foi apresentado a 14 de setembro, subsistindo
porm nas suas piores feies, sem curar dos debates
travados, o esprito que o animara, exclusivo e
interesseiro.
O momento era alis pssimo para intentar
novas discusses a respeito, achando-se pendente a questo
mxima da adoo da Constituio pelos representantes
americanos. Manuel Zeferino dos Santos voltou contudo
carga, auxiliado por Castro e Silva, do Cear, e denunciou a
proposta ardilosa de Ferreira Borges, especialista na
matria, de manter-se at um estudo mais aprofundado do
assunto a tabela extravagante que, no intuito de dar a
Portugal o monoplio do trfico ultramarino, estabelecia,
por exemplo, a taxa de um por cento para o algodo
transportado em embarcaes nacionais e de quinze por cento
para o que fosse transportado em vasos estrangeiros. O
projeto voltou comisso para no seu seio se harmonizarem
as opinies, que apareciam fundamente divergentes e eram de
fato irreconciliveis porque no era um simples debate
acadmico que se agitava, sim uma luta de vida e morte que
se abrira entre as economias dos dois pases. O manifesto de
6 de agosto increpava mesmo as Cortes de terem
esbulhado o Banco do Brasil da administrao dos contratos
que lhe concedera el-rei para amortizao da dvida
contrada.
Neste ponto as Cortes mereciam antes
piedade do que censura, porque se achavam colocadas numa
postura difcil, entre a resistncia do Brasil, j
descambando em rebelio, e a impopularidade em Portugal,
ameaando transformar-se em levantamento.
* * *
O manifesto de 1. de agosto foi redigido
por Ledo. Constitui o histrico do divrcio poltico
imanente e encerra a sua justificao. Como mandava dizer
Mareschal para Viena (238), esse documento
formava o complemento de quanto aparecera desde janeiro e
definia finalmente de modo claro e sem reticncias a atitude
do governo da regncia brasileira. A impresso produzida no
pas pela sua publicao foi grande e o encarregado de
negcios da ustria confessava sua chancelaria que o
pblico acolhera bem as razes expostas, calando-se a faco
portuguesa por perceber que o governo nacional se
robustecera com suas francas declaraes.
Apenas dois sargentos dos da expedio de
Francisco Maximiliano tinham feito representao adversa,
dirigida ao prncipe, e sido por isso severamente
castigados. A se deparava contudo, no entender de
Mareschal, um apoio perigoso para a autoridade constituda
alm-mar e precioso para quem dele se quisesse valer. O
esprito dessa gente aliciada ficara sendo o da sua
nacionalidade e aqueles sargentos foram os primeiros do
pronunciamento gorado que terminou em aoites dos quais fez
grande escarcu a correspondncia diplomtica de Condy
Raguet, o encarregado de negcios dos Estados Unidos
(239).
"Brasileiros! est acabando o tempo de
enganar os homens" - comea por dizer o manifesto. Por terem
pretendido tal coisa, as Cortes de Lisboa foraram as
provncias meridionais do Brasil a repelirem o seu jugo e o
Brasil todo se congregou em redor do regente para que este
defendesse os seus direitos e mantivesse a sua liberdade e
independncia. Foi semelhante proceder das Cortes que levou
ao exame dos ttulos em que se apoiava Portugal para aventar
to desassisadas pretenses, qual a de forar o Brasil a
aceitar um sistema desonroso e aviltador, em desacordo com
os prprios princpios sobre que se fundara a revoluo de
agosto de 1820 e com as bases que representam os direitos
inalienveis dos povos. Os mandatrios do povo de Portugal
passaram porm a soberanos do soberano de toda a monarquia
portuguesa e, intitulando-se pais da ptria, iniciaram uma
marcha desorientada e tirnica. "Julguei ento indgno de
mim - exclamava o prncipe - e do grande rei, de quem sou
filho, e delegado, o desprezar os votos de sditos to
fiis; que sopeando talvez desejos, e propenses
republicanas, desprezaram exemplos fascinantes de alguns
povos vizinhos, e depositaram em mim todas as suas
esperanas, salvando deste modo a realeza neste grande
continente americano, e os reconhecidos direitos da augusta
Casa de Bragana".
As Cortes no se deram todavia por
ensinadas com a lio do Fico, e em vista do seu
egosmo e dos seus tramas, as provncias coligadas do Brasil
projetaram, "sem o estrpito das armas, sem as vozearias da
anarquia", a instalao de uma Assemblia Constituinte e
Legislativa Brasileira. Nem assim cedendo as Cortes aos
ditames da razo e da justia, o prncipe teve de tornar
efetivo o seu papel de defensor perptuo para sobrestar os
males da desordem e os furores da democracia explodindo nas
suas faces, sob pena de "lacerar-se o Brasil, esta grande
pea da benfica natureza, que faz a inveja, e a admirao
das naes do mundo".
O manifesto, no intuito de afastar a
responsabilidade do seu augusto signatrio na soluo que se
antevia violenta, passa ento a enumerar, "pelo respeito que
devemos ao gnero humano", todas as afrontas e iniquidades
assacadas pelo Congresso de Lisboa, cujo fito patente aos
espritos desprevenidos era "paralisar a prosperidade do
Brasil, consumir toda a sua vitalidade, e reduzi-lo a tal
inanio e fraqueza, que tornasse infalvel a sua runa e
escravido".
A lista era longa e est apresentada com
habilidade e calor, de maneira a gerar simpatia nos que nela
atentassem. Por outro lado o programa da Constituinte
nacional chega a ser idlico, tal era o ambiente de
sinceridade e de pureza em que se desdobrava. Os direitos
brasileiros, "calcados aos ps e desconhecidos a trs
sculos", tinham afinal recebido ou melhor dito iam receber
a sua consagrao. Responsvel o funcionalismo; dotada de um
vo altaneiro a vontade da nao; eliminados os abusos;
espalhada a luz no "caos tenebroso" da administrao, da
fazenda e da legislao; esclarecida e lisa a justia;
ntegros os magistrados; humanitrio o cdigo penal;
eqitativos os impostos; posto s claras o sistema
financeiro; elevada a disciplina militar, que no exclui as
virtudes cvicas; honradas as profisses liberais e honrado
o cultivo das letras e das cincias; apreciada a virtude e
reconhecido o mrito; zelada a educao - eis o que o futuro
reservava a nao brasileira, em harmonia com o "fluxo da
civilizao que comea a correr j impetuoso desde os
desertos da Califrnia at ao estreito de Magalhes".
Europa oferecia o Brasil paz e comrcio
livre, ao mesmo tempo que protestava no se envolver nos
negcios particulares do Velho Mundo. "Constituio, e
liberdade legal so fontes inesgotveis de prodgios, e
sero a fonte, por onde a bem da velha, e convulsa Europa
passar ao nosso continente".
Todo o final um hino unio e
independncia, uma exortao s provncias para formarem "o
feixe misterioso, que nenhuma fora pode quebrar", um apelo
pattico para sacrificarem o seu esprito regional, o que
depois se chamou bairrismo, ao esprito novo do patriotismo.
* * *
O manifesto de 6 de agosto obra de Jos
Bonifcio e constitui um documento comprobativo do seu
esprito americano no conceito de Mareschal, o qual era de
resto o primeiro a reconhecer que o sentimento poltico de
uma incipiente solidariedade continental, esse entusiasmo
americano port au plus haut degr, que o ministro de
Dom Pedro procurava incutir no nimo do regente e de que
saturava sua linguagem oficial, era ou devia ser inevitvel
na alma de um prncipe destinado a reinar em terras
americanas (240).
Mareschal achava, claro, prefervel que
os brasileiros professassem esse embrionrio
pan-americanismo, que lhe parecia mais geogrfico do que
proseltico, a que se deixassem arrastar por princpios
puramente revolucionrios, que tanto importava dizer
republicanos. No seu juzo, entretanto, a designao de
americano tinha forosamente de equivaler a democrtico.
Alis expurgada a Frana, como o pensava a Santa Aliana, do
esprito revolucionrio pela restaurao da realeza
tradicional, embora adaptada a certas frmulas
constitucionais, e em vspera de ser abafado na Espanha o
foco ultra-liberal que ali vingara, a Amrica ficava sendo o
continente republicano; mas l mal podia atingir a ao
reacionria, mesmo antes de definida a doutrina de Monroe, o
que ocorreria no ano imediato.
O sentimento americano manifestou-se
primeiro nas colnias espanholas pela organizao dos seus
regimes polticos e sistemas de governo imitados dos Estados
Unidos. Conservadores em matria de constituio social, os
dirigentes dessas novas nacionalidades, os quais sobretudo
entenderam firmar o direito a govern-las que tinham os
filhos da Amrica e de que andavam esbulhados pelos filhos
da Europa (241), foram radicais em matria de
constituio poltica.
Outro tanto aconteceu no Brasil, onde
veio porm a imperar de preferncia a sugesto liberal
europia ocidental, a saber, inglesa e francesa, a qual
achou meios de acomodar-se, tal qual sucedeu democracia
americana, com a instituio servil que nas colnias
espanholas foi inicialmente suprimida, ao mesmo tempo que
era proclamada a liberdade para esses pases de regerem os
seus destinos. Neste ponto se distanciou de modo notvel a
Amrica Espanhola da Inglesa e da Portuguesa, onde o brao
escravo, que era sobretudo africano, se afigurava um
instrumento econmico indispensvel, a ser perpetuado.
Em ambas estas terras de escravido - a
abolio no Brasil ainda levaria 66 anos para
consumar-se - existia apesar disso mais esprito democrtico
do que na maioria das colnias espanholas, cujo pendor
aristocrtico se patenteou na oligarquia portenha avassalada
pelo caudilhismo gacho e que s depois de 1852 tiraria sua
desforra, e se evidenciou nas primeiras constituies
chilenas em que o Senado Americano se refletiu numa imagem
de aumento. Efeito talvez da mestiagem muito mais
abundante, o fato que aquele esprito igualitrio
predominou no Brasil mesmo atravs do Imprio e que,
senhores feudais como eram, pelo poderio que exerciam sobre
seus dependentes, os fazendeiros e senhores de engenho nunca
deram mostras de querer aproveitar-se da sua posio e
riqueza para com elas formarem a base de uma preponderncia
poltica a que s aspiravam moderadamente, muito
provavelmente porque sentiam pairar sobre eles a majestade
da autoridade imperial. Em vez de constiturem uma vasta
oligarquia, delegaram desde o comeo sua participao na
vida pblica nos profissionais da administrao - bacharis,
juristas, legisladores.
A democracia brasileira foi assim
paralelamente poltica e social, terica e prtica, fundada
nos costumes e na onipotncia da razo. Foi todavia graas
especialmente a Jos Bonifcio que a feio construtiva
primou a negativa por ocasio da emancipao nacional. O
representante diplomtico dos Estados Unidos no Rio de
Janeiro em 1822 tinha de Jos Bonifcio a impresso de que
era um delineador mais do que um executor, de que lhe
faltava talvez em maleabilidade de ao o que lhe abundava
seguramente em sagacidade de pensar (242). Era
pois um homem nascido para as eminncias, capaz de
representar um momento histrico, sobretudo associando sua
iniciativa intelectual a uma ao vigorosa qual a que lhe
prestou o regente. Sua argcia de estadista, se era o efeito
de um predicado pessoal, fora porm aguada pela sua farta e
j longa experincia da vida. A natureza dos seus principais
estudos, botnicos e mineralgicos, dera por outro lado uma
feio prtica ao seu esprito, ao qual no era
originariamente estranho um lirismo at ardente e sensual, e
o seu liberalismo, tal como se denuncia nos seus planos de
utilidade pblica, era antes econmico do que poltico, quer
dizer que no sacrificava a realidade imaginao.
Entretanto parecia a Mareschal que havia
no manifesto de 6 de agosto, cuja autoria lhe era conhecida,
muita fraseologia ociosa sobre liberdade, soberania do povo,
direitos das nacionalidades, tudo aquilo que horripilava a
Santa Aliana e os seus agentes, num pavor de que tais
frmulas voltassem arena da discusso com a sua capacidade
incendiria. Monsieur d'Andrada, felizmente, pois que
era o pivot do governo, no era um democrata, um
liberal na acepo comum e perigosa da palavra: "luta contra
a revoluo - dele escrevia Mareschal - no sossegando e
esclarecendo os espritos, mas desviando-os, oferecendo-lhes
outra meta, mais ao alcance e mais consubstanciada com os
seus interesses" (243). Nesse caso era a
independncia dentro do crculo monrquico. O diplomata
austraco era de opinio que a independncia j existia de
fato e de direito, mas considerava um ato poltico de grande
transcendncia o dar o governo da regncia o impulso quando
parecia segui-lo, tomando a dianteira do movimento em vez de
ser por este arrastado. Assim o via inspirado e assim o via
praticar.
Mareschal censurava apenas no manifesto
as referncias que Dom Pedro autorizava com sua firma aos
atos tirnicos dos seus avoengos e s prodigalidades da
corte paterna. que Jos Bonifcio no se sabia muito bem
conter, nem nos arroubos poticos, nem nas graolas das
cartas particulares, nem nas apstrofes dos documentos
pblicos: era sempre o mesmo homem descrito por Maler como
fougneux et trs ardent, uma cabea vulcnica debaixo
das cs, o que segundo o rabugento encarregado de negcios
da Frana dos Bourbons, lhe roubava "a madureza das idias,
o mtodo na concepo dos projetos e o sistema no seu
conjunto e aplicao".
O momento histrico era em demasia no s
agitado como crtico, tratando-se de uma nacionalidade em
formao, para a serena realizao de um programa fixo e
pautado de planos de governo. Do que se cuidava antes que
tudo era de obter a separao com o menor sacrifcio
possvel de vidas e de fazenda. Nesse ms de agosto as
hostilidades j se tinham anunciado em terra, na Bahia, mas
no mar as duas esquadras no se tinham ainda medido. O
comandante brasileiro no recebera ordem para atacar e o
portugus por seu lado evitava ser o primeiro a derramar
sangue.
A guerra trazia em si conseqncias de
todo gnero. Ela podia facultar ao Prncipe a ditadura que a
faco avanada lhe estava de antemo disputando. Pelo
contrrio do que Mareschal se arreceava era de que as duas
constituintes, a portuguesa, e a brasileira, pudessem chegar
a um acordo e juntas empreenderem obra poltica de carter
democrtico. verdade que no existia na Amrica, no mesmo
grau que na Europa, um ancien rgime a destruir e
quando o houvesse, sendo os agentes da demolio os prprios
elementos desse regime, no se haviam de destruir eles
pessoalmente. Mais natural seria que buscassem harmonizar a
ordem de coisas antiga com a moderna. Assim foi que
continuaram usos tradicionais, que se prolongaram velhas
instituies, que se perpetuou em vrios pontos a legislao
privada que j desconhecia certas servides da classe livre
na Europa, como as corves francesas. A Igreja
possua os seus bens de mo morta, mas sabemos que o dzimo,
que era o tributo, fora sempre cobrado pelo Estado, pela
razo de que o rei como gro-mestre da ordem de Cristo
provia as necessidades do culto.
A obra da independncia devia consistir
em tornar extensivas aos novos pases as feies integrais
de uma civilizao at a privativa das suas ex-metrpoles,
qual era a civilizao europia. Nesta veio porm a
distinguir o esprito americano, que o meio e as
circunstncias do desenvolvimento local tinham criado e
fariam predominante. Em toda a Amrica existe uma espcie de
preconceito, de superstio constitucional proveniente das
condies da sua organizao poltica, que obedeceu a
frmulas e teorias quando na Europa continuou em muitos
casos a ser vazada em moldes consuetudinrios.
Isto se explica facilmente porque na
Amrica as constituies representavam um protesto, primeiro
contra o passado colonial, julgado de opresso e depois
contra o sistema europeu, julgado de reao. Do desacordo
original, mais tarde degenerado em conflito, entre tais
frmulas legais, representativas da concepo social gerada
pela filosofia do sculo XVIII, e a condio cvica das
populaes que por elas se tinham de reger, nasceu o estado
de constante agitao poltica da Amrica Espanhola no
sculo XIX. Se outro tanto no aconteceu na Amrica Inglesa
e na Amrica Portuguesa, foi porque para a primeira foi
transplantado o self-government e na segunda
prevaleceu o esprito de ordem da monarquia, simultneo com
a independncia e que ainda assim levou um quarto de sculo
para se impor.
As constituies revolucionariamente
implantadas pretendiam sempre limitar as faculdades extremas
da autoridade, em oposio ao despotismo tradicional e em
defesa dos direitos naturais que, segundo a doutrina do
contrato social, o indivduo trazia como contribuio
coletividade. Raras vezes as constituies do Novo Mundo
obedeceram a um desgnio ou mesmo a um instinto conservador.
A aplicao dos princpios falseava porm freqentemente o
seu liberalismo e a conseqncia foi que as comunidades
espanholas flutuaram, at se integrarem numa organizao
adequada, entre a tirania e a anarquia, expresses ambas de
reao contra os moldes vazados na estrita legalidade.
O manifesto de 6 de agosto,
dirigido pela regncia do Rio de Janeiro aos governos e
naes amigas, no intuito de "continuar a merecer-lhes a
aprovao e estimao de que se faz cre4or o carter
brasileiro", obedece a essa corrente de idias visvel em
toda a Amrica, sobretudo na primeira metade do sculo
decorrido. Estende-se o documento sobre a poltica tirnica
de Portugal com relao sua colnia, firmada em "leis de
sangue ditadas por paixes, e srdidos interesses".
Impostos, at o de capitao, proibies
que envolviam castigos, monoplios odiosos, de tudo se
servia a metrpole para expressar sua autoridade; por outro
lado vedando ao Brasil o "mercado geral das naes" para s
lhe permitir negociar com os seus tiranos, e inundando-o de
"paxs desapiedados, magistrados corruptos e exames de
agentes fiscais de toda a espcie que dilaceravam as
entranhas da terra que os sustentava e enriquecia".
Salvaram-na seus filhos, "fortes e animosos que a natureza
tinha talhado para gigantes", e a terra como boa me por sua
vez os alentava e envigorava para que lograssem desprezar
todos os "obstculos fsicos e morais" levantados contra o
seu progresso.
Pela pena de Jos Bonifcio evocava o
prncipe a chegada de Dom Joo VI sua corte americana e
observava o acolhimento que o soberano e os nobres do reino
receberam dos brasileiros, para o meio dos quais trouxeram
novos abusos a acrescentar aos velhos, frutos aqueles "da
impercia, da imoralidade e do crime". O Brasil deixou
Portugal levantar primeiro o grito de regenerao poltica
da Monarquia; mas julgando os outros por si, no contava ser
atraioado, como foi, nas suas esperanas e interesses.
Nesta altura entra o manifesto, a traos
largos, mas incisivos, na anlise da obra dissolvente das
Cortes com relao ao ultramar, pouco lhe importando as
desgraas que provocava e bastando-lhe proveitos
momentneos: "nada se lhe dando de cortar a rvore pela raiz
contanto que, semelhana dos selvagens da Luisiana,
colhesse logo seus frutos, sequer uma vez somente". Nenhum
libelo pode ser mais vigoroso e mais persuasivo do que esse,
nem escrito com maior clareza e alcance.
Queixa-se o manifesto no somente da
poltica ostensiva das Cortes, mas da sua poltica
clandestina - a "corte de emissrios mandados a desorientar
o esprito pblico e a fomentar a desunio no Brasil. O que
sobretudo espalhavam esses emissrios era o intuito
brasileiro de inteira separao e o desejo concomitante do
prncipe de "reviver antiga arbitrariedade", isto , de
restabelecer o governo absoluto, do qual s a unio com as
Cortes, a saber, a parceria constitucional poderia livrar o
reino americano. Do manifesto se deduz expressamente que a
queixa brasileira era toda do Congresso de Lisboa e no do
monarca que ali estava nominalmente reinando. Neste ponto
condiz esse documento com as cartas de Dom Pedro a Dom Joo
VI, a ltima das quais, de 22 de setembro de 1822, sanciona
a independncia no sentido de desobedincia s Cortes e no
ao rei (244).
No manifesto redigido por Jos Bonifcio
a nota idntica da carta de Dom Pedro: o soberano era de
fato um prisioneiro de Estado e suas ordens resultavam
apcrifas merecendo to pouco ser cumpridas quanto as que da
sua priso de Valena pudesse ter Fernando VII ditado aos
seus domnios americanos. O manifesto completa porm a
carta, que alis precedeu, num ponto interessante e que de
ordinrio escapa ateno do que volve os olhos para essa
poca, e que a idia de separao no deve ser contada
como exclusivamente brasileira. Ela aparece igualmente como
portuguesa, almejando-a no reino europeu duas classes de
pessoas: as que o queriam ver entregue a si prprio e
privado da solidariedade ultramarina, "para melhor darem ali
garrote ao sistema constitucional", e as que por outro lado
queriam uni-lo Espanha, consumando a Unio Ibrica no fito
de preservar o referido sistema liberal. No admirava
portanto "em Portugal escrever-se e assoalhar-se
descaradamente, que aquele Reino utiliza com a perda do
Brasil".
Jos Bonifcio fazia ainda referncia a
um tpico que no Brasil era antiptico faco
intransigentemente independente, mas que era pessoalmente
simptico a Dom Pedro: o de uma possvel preservao d
Reino Unido com a supremacia do Brasil. As Cortes tinham
porm feito tudo para tornar impossvel essa soluo. "Cegas
pois de orgulho, ou arrastadas pela vingana e egosmo,
decidiram as Cortes com dois rasgos de pena uma questo de
maior importncia para a Grande Famlia Lusitana,
estabelecendo, sem consultar a vontade geral dos portugueses
de ambos os hemisfrios, o assento da Monarquia em Portugal;
como se essa mnima parte do territrio portugus, e a sua
povoao estacionria e acanhada, devesse ser o centro
poltico e comercial da nao inteira. Com efeito se convm
a Estados espalhados, mas reunidos debaixo de um s chefe,
que o princpio vital de seus movimentos e energia exista na
central e poderosa da grande mquina social, para que o
impulso se comunique a toda a periferia com a maior presteza
e vigor, de certo o Brasil tinha o incontestvel direito de
ter dentro de si o assento do Poder Executivo".
Numa das cartas do prncipe regente a seu
pai (245) aparece pela primeira vez uma sugesto
que depois seria um dos motivos da desunio da famlia real
portuguesa e da guerra civil entre absolutistas e
constitucionais e que mostra que j naquele tempo preocupava
o herdeiro da coroa a regulao futura da sucesso. "Peo a
V. M. deixe vir o mano Miguel para c, seja como for, porque
ele aqui muito estimado, e os brasileiros o querem ao p
de mim para me ajudar a servir no Brasil, e a seu tempo
casar com a minha linda filha Maria".
A idia oculta de Dom Pedro era no
perder afinal a autoridade sobre nenhuma das sees da
Monarquia. Nesse momento convinha sacrificar Portugal ao
Brasil para no passar a seo mais importante a outras mos
ou a outro regime, com o que nem lucraria sua felicidade
pois que, na frase desabusada de Jos Bonifcio no
manifesto, "mudados os dspotas, continua o despotismo". O
tempo viria de recobrar Portugal, subordinada embora a
antiga metrpole sua ex-colnia independente. Mesmo que
isto no pudesse vir a dar-se pela legtima repulso
portuguesa de ocupar o segundo plano, mediante o casamento
do tio com a sobrinha - Dom Miguel era o nico infante da
Casa de Bragana - tudo se arranjava satisfatoriamente: a
prole de Dom Pedro reinaria nos dois hemisfrios, como de
fato veio a suceder a despeito do consrcio frustrado, at
que em ambos os pases se implantasse a Repblica.
Dom Pedro fazia porm particular empenho
no matrimnio de famlia, que a seu juzo simplificava muito
a questo, tanto assim que ajuntava na carta a Dom Joo VI:
"Espero que V. M. lhe d licena, e lhe no queira cortar a
sua fortuna futura, quando V. M. como Pai, deve por
obrigao crist, contribuir com todas as suas foras para a
felicidade de seus filhos. V. M. conhece a razo, h de
conceder-lhe a licena que eu, e o Brasil to
encarecidamente pedimos, pelo que h de mais sagrado".
Antes de romper os laos que prendiam o
Reino Unido, justo ttulo do desvanecimento paterno, exigia
o decoro pblico do regente, no s o seu sentimento filial,
que ele justificasse internacionalmente sua altitude, o que
Jos Bonifcio fez com habilidade, definindo-a como a nica
possvel para corresponder confiana dos brasileiros e
mesmo de toda a monarquia, desde o momento em que das Cortes
de Lisboa "seria absurdo esperar medidas justas e teis aos
destinos do Brasil, e ao verdadeiro bem de toda a Nao
Portuguesa". Nao significava a associao dos dois pases,
prestes a liquidar-se (246).
Perdido o Brasil, est perdida a
Monarquia - rezava o manifesto, e para salv-lo mister era
que o prncipe regente se conservasse sua frente, certo
alis de que no tardariam as Cortes de Lisboa em fornecer o
motivo definitivo para a separao improrrogvel.
* * *
A maonaria entretanto no descansava.
Antes de partirem seus emissrios para as provncias com o
fito de assegurarem a aclamao unnime de Dom Pedro como
soberano do Brasil, cuidou-se da frmula de juramento a
remeter s cmaras municipais, que at ento constituam o
nico rgo legtimo da vontade popular, portanto da
soberania nacional. No era muito fcil conceber essa
frmula de um modo satisfatrio, porque se os espritos que
tinham incubado a idia de independncia e que estavam
levando a um termo feliz a gestao da nova nacionalidade
no tinham posto ainda em conflito as suas preferncias
distintas, j se achavam contudo frente a frente aspiraes,
conjugadas com interesses, com tendncias umas e outros a
inconciliveis.
Sabemos que no se estabelecera um acordo
prvio sobre a forma de governo a ser escolhida: o acordo
fizera-se to somente sobre a base da unio brasileira, mas
como a regncia encarnada no prncipe real fora o fator
principal dessa consolidao poltica, era natural que a
monarquia tivesse sido adotada como o instrumento necessrio
para a sua preservao. Por todos os motivos ela no podia
porm deixar de ser uma Monarquia democrtica, alguma coisa
como um presidencialismo hereditrio, derivando todavia
desta tradio transplantada da funo dinstica, um
enfraquecimento de poder que o regime presidencial corrigia
pela renovao peridica do mandato popular, ao passo que a
monarquia tinha que buscar seu alento nas virtudes pessoais
de cada imperante, com as quais ele justificava sua exaltada
hierarquia.
Nalgumas provncias, Minas Gerais e
Pernambuco entre outras, houvera desde comeo receios de
despotismo de um trono armado no Rio de Janeiro mais do que
de dependncia de um Portugal constitucional, e as
desconfianas persistiam em forma latente depois de sopitada
sua crise aguda, convindo dissip-las e dar satisfao a
anelos liberais que, por estarem em desacordo com o seu
ambiente de cultura social, nem por isso eram menos
instantes. Em ateno a eles se aventou que o Imperador
jurasse cumprir a constituio que fosse elaborada pela
Assemblia Constituinte, o que equivalia a colocar nesta a
soberania nacional e conceder-lhe a primazia dos poderes.
Dizia-se ter isto tambm a vantagem que,
se tal constituio no fosse to radical quanto o sonhavam
os idelogos da democracia, no caberia a responsabilidade
do fato ao monarca, que da sua elaborao no fora parte
ativa. No ocorreria portanto razo para queixas do regime e
por outro lado mal podia suceder que a constituio no
resultasse verdadeiramente liberal, ainda que dentro de
termos razoveis, refratrios demagogia, se iam proceder
sua feitura representantes da nao pela maior parte
filiados na maonaria. O juramento antecipado e
incondicional de princpios cuja extenso e alcance se
ignoravam, tinha contudo contra si a circunstncia de ser
uma violncia exercida contra a conscincia individual e
mesmo de constituir um contra-senso inquinado de nulidade
jurdica.
Aprovou-se entretanto a frmula lembrada,
que foi a que o padre Janurio levou para Minas Gerais e que
afinal por inconveniente se pretendeu retirar, quando o
senado fluminense j a tinha oferecido outras corporaes
municipais, dando azo a ser incriminado e com ele o Grande
Oriente brasileiro de terem procurado um governo
republicano, partindo o movimento da periferia para o
centro. Por ocasio da discusso em sesso da cmara do Rio
da clusula primeiro debatida na assemblia manica e que
continha em si o germe do futuro conflito entre o Imperador
e a Assemblia Constituinte por ele finalmente dissolvida,
deram-se demonstraes populares preparadas pelo Apostolado,
pondo em ao arruaceiros de profisso que j eram de classe
inferior aos padres Macamboa e Ges do ano anterior,
chamando-se entre outros Miquelino e Porto Seguro. Apupados
e apedrejados pelo povilu os vereadores, seu presidente
Jos Clemente Pereira escapou, todo coberto de lama, de pior
tratamento, graas ao bolieiro da sua sege, o qual fustigou
as bestas e conseguiu distanciar-se.
A luta estava travada em redor do
Imperador, querendo os Andradas conserv-lo fiel aos
princpios que depois se denominariam liberais dinsticos e
querendo a faco avanada pe-lo com formas virtualmente
republicanas, comeando por se comprometer a aceitar
qualquer lei orgnica que lhe fosse imposta. Era a repetio
do que em Portugal se passara com a intitulada
regenerao. A maonaria servia admiravelmente de meio a
essa faco ultra-liberal para agir sobre a imaginao de
Dom Pedro, sendo sua atmosfera de mistrio propcia como
nenhuma outra s intrigas desse gnero. O prncipe ficara
radiante com a idia de ser gro-mestre, embora s custas de
Jos Bonifcio, e conta Drummond que no regresso de So
Paulo, depois do Ipiranga, o jovem soberano - que j o era
pela sua deciso e pela sagrao popular - vinha delirante
sob a impresso de contentamento que lhe dera aquela
singular honraria, a qual ningum de resto lhe poderia
disputar se, como ele parecia pensar, a maonaria no tinha
outro objetivo seno trabalhar pela causa da independncia
do Brasil.
O constitucionalismo de Dom Pedro sempre
foi o de Cortes deliberativas, no apenas consultivas; mas
nunca foi o de uma Assemblia soberana delegando a funo
executiva num monarca irresponsvel, servido por ministros
responsveis para com a Nao dos atos polticos e
administrativos praticados sob a sano real. Na concepo
democrtica do sistema a soberania cabia em ltima anlise
ao povo: na sua concepo pessoal ela cabia ao Rei e
Nao. "O Rei e a Nao sempre esto reunidos e nunca
separados escrevia Dom Pedro a Dom Joo VI (247)
a propsito do seu ttulo de defensor perptuo, em
virtude do qual tambm lhe cabia defender o pai, no somente
como filho, mas como sdito - pois que, quem defende o rei
defende a Nao".
Oportunamente surgiria a idia de um
quarto poder - o poder modelador - ao qual Dom Pedro se
apegaria estritamente para garantia das prerrogativas que
ele julgava essenciais majestade e independncia da
coroa e que lhe seriam concedidas em troca do privilgio
exclusivo de que abria mo, quer por sobreposio da
autoridade de uma constituinte eleita, quer por ddiva
magnnima como era de sua inclinao.
A sua concepo de um prncipe reinante
no era pois a do simples manequim constitucional que
advogavam os que consentiam em conservar a monarquia como
uma fico que tranqilizasse ou um rtulo que no
assustasse. "Um prncipe, escrevia ele, deve ser sempre o
primeiro a morrer pela ptria": deve ser portanto um chefe,
no um subordinado; "deve trabalhar mais que ningum pela
felicidade dela ; porque os prncipes so os que mais gozam
da felicidade da Nao e por isso que eles devem
esforar-se por bem merecer as riquezas que consomem, e as
homenagens que recebem dos outros cidados".
No misto de idias tradicionais e de
idias modernas que no seu crebro se associavam muito mais
do que contendiam, Dom Pedro concedia grande importncia s
cmaras municipais, clulas na verdade do organismo poltico
da nao, e deu constantemente provas de preferir
entender-se com elas do que com as cmaras legislativas, de
certo porque estas, transformando a essncia das antigas
Cortes que reviviam, avocavam uma primazia sobre a coroa que
no era rigorosamente histrica. Os homens bons dos
conselhos procedentes dos forais representavam mercs da
realeza e o Terceiro Estado, que eles encarnavam, no s no
pretendia antepor-se aos outros, como deixava pairar sobre
todos a Coroa a que ajudavam na sua tarefa construtora.
CAPTULO XIX
O GRITO DO IPIRANGA
Dom Pedro partiu para So Paulo com uma
mui pequena comitiva: acompanharam-no Lus de Saldanha da
Gama, depois marqus de Taubat, filho do conde da Ponte,
veador da Princesa Real, e que lhe servia de secretrio
poltico, como na viagem a Minas Gerais Estevo Ribeiro de
Resende; o gentil-homem da cmara Francisco de Castro Canto
e Melo, irmo da que foi mais tarde marquesa de Santos e
toda poderosa favorita; o j infalvel Chalaa -
ajudante Francisco Gomes da Silva - que tantos dissabores
acarretou a seu amo pela impopularidade que o cercava, e os
criados particulares do Pao, Joo Carlota e Joo Carvalho.
Na Venda Grande juntaram-se ao squito o tenente-coronel
Joaquim Aranha Barreto de Camargo, que o prncipe fez em
caminho governador da praa de Santos, e o padre Belchior
Pinheiro de Oliveira, de Minas Gerais, muito seu confidente
e diz o baro de Pindamonhangaba que mesmo seu mentor
(248).
A princesa Dona Leopoldina ficava
empossada da regncia, isto , incumbida de presidir o
conselho de ministros para despacho do expediente ordinrio
das secretarias e outrossim o conselho de Estado, podendo
conjuntamente com o gabinete "tomar logo todas as medidas
necessrias e urgentes ao bem e salvao do Estado", tudo
sujeito naturalmente aprovao e ratificao do prncipe.
Cabia igualmente regente dar no lugar do seu esposo
audincias pblicas. Jos Bonifcio, cabea do gabinete, era
o primeiro a no regatear augusta senhora a confiana
poltica que nela era assim depositada. Sua nova gravidez
fora a principal razo da sua permanncia na capital, quando
Dom Pedro decidiu ir em pessoa pr ordem na provncia que
constitua a pedra angular do sistema nacional.
A autoridade rgia, superior s faces
polticas, aparecia-lhe e ao seu principal conselheiro como
justamente indispensvel para a coeso dos esforos
patriticos e para a manuteno da ordem pblica. As
dissenses paulistas no eram entretanto, na opinio de
Mareschal (249), de natureza poltica, antes
meras rivalidades de famlias ou de indivduos por motivo de
colocaes administrativas. Dava-se mais ou menos caso
idntico em todas as provncias, "onde as juntas so
geralmente compostas de parentes e de amigos, sendo de
esperar que o abuso e o descontentamento que dai resultara
permitam em breve tempo ao governo substitui-las por pessoal
da sua escolha" - escrevia o diplomata austraco, querendo
dizer delegados diretos da autoridade executiva.
Uma certa centralizao era na verdade
necessria e segundo o agente de Metternich a condio da
Bahia, reflexo da poltica das Cortes, servia de salutar
espantalho contra a anarquia em que podia cair todo o Brasil
e essa poltica anti-brasileira, por um lado reacionria e
pelo outro demaggica, verdadeira poltica de Jano em que se
convertera pela fatalidade das circunstncias a regenerao
liberal, impelia para a soluo monrquica o esprito
democrtico da colnia americana e congregava as simpatias
em redor do prncipe. Na frase de Mareschal ele era nessa
ocasio "ador de son parti et craint de ses ennemis" e com
ele se achava identificada a corrente popular. Esta
expresso escapou seguramente no correr da pena ao diplomata
da Santa Aliana.
O aniversrio da resoluo constitucional
portuguesa - 24 de agosto, data do movimento do Porto - fora
nesse ano de 1822 apenas celebrado por uma salva de
artilharia: no houve cortejo, nem beija-mo. As coisas
podem dizer-se que iam correndo antes feio para o partido
brasileiro e para o seu real porta-voz apesar da situao
no ser de todo calma, no falando j na Bahia, onde o
choque estava para cada minuto e a cidade de So Salvador j
entrara a ser abandonada pelos prprios negociantes desde
que o general Madeira comeara a aplicar aos gastos
imprescindveis da defesa que lhe fora confiada os recursos
dos bancos. Em So Paulo o cime dos Andradas emprestava
simpatias republicanas a Francisco Incio e a Costa Carvalho
(futuro marqus de Monte Alegre), unindo-os causa
portuguesa, ao que Dom Pedro ia obstar com sua presena.
Em Minas pelo contrrio as coisas tinham
francamente retomado um aspecto regular: o antigo governador
Dom Manuel de Portugal fora reeleito presidente da junta e a
populao acolhera-o favoravelmente. Em Pernambuco Gervsio
Pires Ferreira, que representara uma corrente disfarada de
autonomia, tanto sentira fugir-lhe o terreno debaixo dos ps
que embarcou para o Rio de Janeiro com o filho. Mal lhe foi
contudo a retirada porquanto portugueses de Pernambuco, que
se tinham refugiado na Bahia por se no julgarem ali
seguros, reclamaram por vingana seu desembarque e, no
obstante ser ingls o paquete que o transportava, fez-se sua
entrega s autoridades locais.
O ex-presidente da junta pernambucana foi
recolhido preso fortaleza de So Pedro, no meio de uma
grande escolta e seguido "de muitos taberneiros e caixeiros
portugueses, com archotes acesos, entre vozerias insultos e
apupadas e no o espancaram, por ir com ele o comandante de
policia tenente coronel Antnio Jos Soares" (250).
A razo dada pelo desembargador Francisco Carneiro de Campos
secretario da Junta provisria baiana, no ofcio que dirigiu
ao cnsul britnico Pennel sobre o assunto, foi o receio que
nutriam aqueles emigrados portugueses, no tocante aos seus
direitos e bens, do prosseguimento da viagem at o centro
poltico do pas de quem os havia compelido a deixarem o
meio onde exerciam sua atividade; tambm, como pretexto
costumeiro em casos semelhantes, declarava-se querer p-lo a
recato de "qualquer sinistro acontecimento, vista da
efervescncia em que se acham os nimos dos que exigem essa
medida" (251).
Deu-se isto a 25 de setembro de 1822 e a
priso de Gervsio na Bahia foi muito curta, sendo remetido
para Lisboa, onde chegou em comeos de dezembro e onde foi
acusado nas Cortes por todos os seus atos reputados
favorveis regncia do Rio de Janeiro e portanto
contrrios poltica constitucional portuguesa, do que ele
se defendeu em publicaes. Em setembro de 1823 j Gervsio
se achava no Rio: a contra-revoluo absolutista de 5 de
junho, encabeada por Dom Miguel, suspendeu seu processo e
restituiu-lhe a liberdade.
O governo da regncia brasileira mais se
arreceava, antes de proclamada a independncia, da reao
portuguesa que se poderia desdobrar em Pernambuco, como que
ligando a Bahia ao Maranho, do que da renovao de
quaisquer veleidades de separao republicana tanto assim
era que pensava em fazer para l regressarem os soldados de
1817, ento levados para Montevidu (252), onde a
regncia bem quisera poder logo desembaraar-se das tropas
portuguesas. Diz-se que ela deixava at o general Lecor sem
dinheiro para pagar suas soldadas a fim de forar-lhes o
embarque. Os transportes j se achavam fretados, faltando,
no entanto, navios de guerra para comboi-los.
A negativa oposta ao pedido de Saldanha
de ir do Rio Grande do Sul para Montevidu, privava contudo
as foras rebeldes de um chefe destemido e prestigioso que
poderia causar grandes trabalhos. O perigo nessa ocasio no
era porm tanto
interno como externo, constando que em
Portugal se preparava uma forte expedio, tendo a Companhia
dos Vinhos do Alto Douro oferecido ao governo de Lisboa um
milho de cruzados para esse fim pelo que seus fundos e
depsitos no Rio de Janeiro foram postos sob embargo
(253). O esprito de resistncia nacional
estimulara-se com tais rumores e o governo da regncia dela
se aproveitava no intuito da defesa, vigiando de perto os
agentes portugueses e no s adestrando a tropa regular e
miliciana, como organizando batalhes de voluntrios com os
isentos da primeira e segunda linha. A capital era o foco da
poltica patritica e as dificuldades por vencer serviam
para consolidar a autoridade e a popularidade do prncipe.
* * *
Dom Pedro fez a viagem pausadamente,
vencendo em 10 dias as 96 lguas de distncia entre o Rio e
So Paulo, pernoitando em fazendas, recebendo no caminho
homenagens e obsquios e no perdendo o ensejo de
testemunhar seu descontentamento aos adversrios dos
Andradas. Em Santa Cruz encontrou-se com o presidente
Oyenhausen, a quem negou audincia, intimando o futuro
marqus do Aracati a seguir sem demora para seu destino, que
era a corte. Em Lorena, a 19 de agosto, expediu um decreto
dissolvendo o governo provisrio de So Paulo, cujos
emissrios no foram recebidos em Mogi das Cruzes, at onde
se tinham adiantado, e recusou a guarda de honra de 32
praas - todas oficiais de milcias e comerciantes - formada
por Francisco Ignacio, dando na portaria a razo de no
haver para isto sido tirada licena.
A chamada guarda de honra compunha-se
todavia de pessoal muito mais numeroso e Dom Pedro no a
dispensou, antes se cercou sempre dela durante a sua feliz
excurso. Era um destacamento dessa guarda de capacetes de
drages e botas l'ecuyre que o acompanhava de
Santos para So Paulo ao ser proclamada a separao, e o
pintor Pedro Amrico a fixou na atitude teatral de cavalgada
herica que melhor servia a idealizao artstica do momento
histrico que marca a transio da colnia brasileira para a
nao independente.
Outras pessoas gradas da capitania tinham
ido aumentando a comitiva, entre elas o capito-mor de
Guaratinguet e o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo,
que foi depois o baro de Pindamonhangaba. A entrada em So
Paulo teve lugar a 25 de agosto, recebendo-o, a mandado seu,
a cmara que servia antes da bernarda de 23 de maio. No
cortejo que imediatamente se celebrou tratou o prncipe com
desagrado o coronel Francisco Incio e o intendente de
Santos, Sousa Pinto, negando-lhes a mo a beijar e
mandando-os retirarem-se para o Rio de Janeiro.
Na pequena cidade de ento, a que alguns
conventos emprestavam a nica feio arquitetnica de vulto
ainda que sem estilo, a visita do regente pusera uma nota
ruidosamente festiva: eram as salvas de artilharia, os
repiques dos sinos, as girndolas de foguetes. O palcio do
governo, onde Dom Pedro se hospedou, j era ento no antigo
colgio dos jesutas. Do cimo da calada do Carmo, onde ele
se apeou da montaria e onde passou por baixo de um arco
triunfal "de estofos e festes de flores" em que figuras
alegricas disputavam o prmio da ingenuidade aos dsticos
poticos, caminhou o Prncipe debaixo do plio, cujas varas
sustentavam os notveis da cidade, at a S para o Te-Deum
celebrado pelo prelado octogenrio que, paramentado de
pontifical, fora ao seu encontro. Das janelas decoradas de
colchas choviam ptalas de flores sobre o docel, atiradas
pelas senhoras que, debruadas, aclamavam o moo heri,
esteio do Brasil". Outro arco, fronteiro a S, fingia ser de
granito e a Minerva posta sobre a cimalha e ladeada de
esttuas simblicas escudava as armas do Reino Unido que
estava prestes a ser despedaado por aquele cujo nome,
segundo a imaginao dos versejadores da terra,
... hombrear co'a eternidade.
H quem pense e porventura com razo que
no foi alheio ao esprito de Jos Bonifcio, ao insistir
com Dom Pedro para ir pacificar os espritos em So Paulo,
como o estavam reclamando vrias das cmaras municipais da
capitania, o desejo de ver a independncia ali proclamada e
portanto mais intimamente associada, consubstanciada mesmo,
com sua terra natal, qual era particularmente afeioado. A
unio brasileira s poderia derivar um acrscimo de fora
dessa circunstncia que roubava ao centro, seno a
iniciativa do momento, pelo menos a honra do acontecimento
que o culminava.
Quando o prncipe empreendeu a sua
jornada, a separao estava terica e praticamente
deliberada, restando apenas a formalidade do seu anncio,
isto , a ocasio que qualquer nova presso devia produzir.
A circular de Jos Bonifcio ao corpo diplomtico
estrangeiro, em 14 de agosto, dia da partida do prncipe,
transmitindo s legaes o manifesto de 6 do mesmo ms, j
virtualmente uma participao da independncia. Nem este
vocbulo falta no documento, embora atenuado pela fico da
unio nominal sob um s soberano, que mais tarde
justificaria o ttulo imperial reconhecido a Dom Joo VI no
tratado de reconciliao (254). O motivo que se
aguardava para o rompimento definitivo, o impulso necessrio
para esse instante decisivo, foi fornecido pela chegada ao
Rio de Janeiro, a 28 de agosto, do brigue Trs Coraes,
trazendo notcias de Lisboa at 3 de julho.
No se tratava portanto apenas de boatos
aterradores, como o da reconquista a ser intentada por um
golpe direto contra o Rio de Janeiro mediante um desembarque
em Itagua - plano mencionado por Porto Seguro - mas de
notcias muito positivas acerca das resolues das Cortes,
que s foram, no entanto, oficialmente transmitidas em datas
posteriores, pelas cartas rgias de 1. e 2 de agosto. O
Prncipe tinha que escolher entre a desafronta pela rebelio
e a humilhao pela submisso: passar nesta segunda hiptese
de regente autnomo a delegado temporrio e passivo das
Cortes, e s nas provncias onde j exercia autoridade
efetiva, porque nas outras deveriam ser instaladas as juntas
de governo subordinadas ao Soberano Congresso; com
secretrios de Estado nomeados em Lisboa (255),
para onde era transferida a sede real do governo do Brasil;
ficando sem efeito mesmo a convocao no Rio de Janeiro do
conselho de procuradores e sendo responsabilizados quantos
tivessem procedido em contrrio poltica das Cortes.
Reunido o conselho de ministros sob a
presidncia da regente, assentou-se sem discusso ter
chegado a hora precisa e almejada e foi despachado para So
Paulo o correio Paulo Emlio Bregaro, com a recomendao de
Jos Bonifcio, que bem traduz a impacincia que o dominava,
de arrebentar quantos cavalos quisesse para o mais depressa
possvel alcanar l o prncipe, sob pena de perder o lugar.
Aos papis oficiais de Lisboa, entre os quais vinha tambm
uma carta de Antnio Carlos de 2 de julho, muito desanimada
com o andamento dos negcios pela atitude hostil das Cortes
e da populao, juntou Jos Bonifcio uma carta sua e juntou
a Princesa Real outra que Drummond conta haver lido e que
diz ter agido poderosamente sobre o esprito de Dom Pedro.
As prprias notcias trazidas da Bahia
por Drummond tendiam a provocar a resoluo que o Prncipe
no hesitou em tomar quando, depois de galgada a serra do
Cubato montado numa besta baia gateada e envergando a
fardeta da polcia (256), lhe foi entregue aquela
correspondncia na colina junto ao ribeiro Ipiranga, vista
de So Paulo, pelas 4 e 1/2 horas da tarde, pelo major
Antnio Ramos Cordeiro, tambm vindo do Rio com Bregaro.
Nesse momento supremo como que lhe foi preparado o tempo
para uma ltima reflexo sobre o jogo do seu destino, to
breve e to agitado.
Sabendo por Canto e Melo, que tinha de
So Paulo, da chegada dos emissrios do Rio, os quais de
perto seguiam o gentil-homem da cmara, Dom Pedro
adiantou-se ao seu squito a receber os despachos que lhe
foram apresentados pelo oficial portador. Distanciando-se
porm de novo da sua guarda de honra, que entretanto o
alcanara e que mandou seguir adiante enquanto ele se
atrasava um pouco, foi encontr-la passada meia lgua no
ponto doravante memorvel em que cavalgada pousara.
Comunicando ento comitiva que as Cortes queriam
"massacrar" o Brasil, arrancou o tope de fita azul claro e
encarnado (as cores constitucionais portuguesas antes do
azul e branco) que ostentava no chapu armado, lanou-o por
terra e, desembainhando a espada, bradou - " tempo!...
Independncia ou Morte!... Estamos separados de
Portugal...".
A guarda e os demais circunstantes
repetiram o brado, que foi o juramento de honra de perene
liberdade da nova nacionalidade criada nesse instante e que
ecoou pela campina deserta, talvez at do carreiro que o
pintor ali colocou para um feliz efeito de contraste. De
roldo galoparam ento todos em direo pacata cidade que
a notcia alvorotou, dando origem a manifestaes de jbilo
diante do palcio onde o prncipe entrementes desenhava num
papel a legenda - Independncia ou Morte, mandando
Canto e Melo levar o molde a um ourives por nome Lessa, para
que sem perda de um minuto lhe fizesse uma braadeira com
que pudesse aparecer no teatro. Os demais exibiram nessa
ocasio laos de fita verde, que a cor da Casa de
Bragana.
Como Rouget de Lisle a sua inspirao de
melomano, aliada ao seu ardor poltico que fazia brilhar aos
prprios olhos sua aurola de libertador, trasbordou num
hino independncia, que nessa mesma noite se executou a
meio de uma ovao estrondosa e a par de um entusiasmo
retrico de que podem dar a medida os dois versos seguintes
da poesia recitada pelo alferes Toms de Aquino e Castro:
Ser logo o Brasil mais que foi Roma
Sendo Pedro seu primeiro Imperador!...
O prncipe gostou tanto que mandou chamar
o alferes ao camarim para felicit-lo e dizer-lhe seu
agrado. As poesias no se cifraram nessa: uma mesmo correu
como de lavra de Dom Pedro, o qual tomou parte na execuo
do seu hino juntamente com algumas senhoras (257).
No decorrer do espetculo o cnego
Ildefonso Xavier Ferreira vitoriou Dom Pedro como "o
primeiro rei brasileiro" ao passo que o lirismo militar de
Toms de Aquino o consagrou como o "primeiro Imperador". A
questo ia ser finalmente decidida no Rio de Janeiro, em
assemblia manica, na prpria noite da chegada do
prncipe, que fez o percurso de volta na metade do tempo que
empregara para a ida, a saber, em cinco dias, partindo na
madrugada de 9 e alcanando So Cristovo ao lusco-fusco de
14, apesar das chuvas torrenciais, dessas que, no dizer de
Mareschal, "l'on ne conoit qu'entre les tropiques"
(258).
O governo paulista ficava confiado a uma
junta composta do bispo, do ouvidor geral e do marechal de
campo governador das armas e o prncipe, antes de partir,
publicou uma proclamao recomendando unio e reiterando a
afirmao da independncia, sobre a qual ia providenciar na
corte com os seus ministros.
Conta o encarregado de negcios da
ustria que Dom Pedro trazia um lao de fita verde no brao
esquerdo, acima de um ngulo de metal dourado com o lema
gravado da Independncia ou Morte. O lao verde comeou
ento a ser usado por todos e no dia 21 apareceu o decreto
de 18 fazendo-o de rigor para os do partido nacional, os
quais comearam tambm a arvorar nos chapus o tope verde e
amarelo (259).
Boletins em estilo mais do que enftico,
pomposo, entraram simultaneamente a circular agregando ao
ttulo de defensor perptuo o de imperador constitucional
com que o Prncipe entrou a ser brindado em pblico, no
teatro e nas praas, e que alis no constitua novidade
pois que desde outubro de 1821 - quase um ano antes - fora o
povo convidado por aquele meio a aclam-lo numa dignidade
que parecia mais consoante com a enormidade do pas, com a
relevncia do fato e com a identificao da nao com as
instituies que ela livremente escolhia, conservando a
dinastia porque, nas palavras de Ledo em uma das referidas
proclamaes, "o grande Pedro nos defende: os destinos do
Brasil so os seus destinos".
* * *
uma puerilidade ou antes uma
perversidade querer tornar Jos Bonifcio estranho direo
do movimento da independncia e sua orientao para a
modalidade adotada, atribuindo-lhe um papel seno de
comparsa, secundrio, e concedendo a primazia a outros; e
como nenhum se depara com envergadura bastante para
assumi-la sozinho, repartindo tal primazia entre Jos
Clemente Pereira, a maior influncia eleitoral da capital,
Ledo e Janurio, paladinos indefessos da propaganda pela
imprensa e nas lojas manicas, onde a emancipao poltica
do Brasil foi de fato em grande parte tramada e vazada no
seu molde por esses instigadores infatigveis da integral
liberdade americana.
Jos Bonifcio nunca visou outro
objetivo: com o que se no achava de acordo, era com a
subalternao do monarca Assemblia, exarada na frmula do
compromisso constitucional por antecipao. Ele tinha na
memria o exemplo da Conveno francesa e diante de si o do
Soberano Congresso de Lisboa, impondo ao Rei toda classe de
vexames, indo ao ponto de tirar-lhe a administrao dos bens
da Casa de Bragana mandando que os seus rendimentos fossem
recolhidos ao errio para ser oportunamente entregue ao
Prncipe Real o que lhe competisse, e de anular as promoes
de marinha, os ttulos e as mercs com que se manifestara a
rgia munificncia na viagem de regresso do Brasil para
celebrar o dia 24 de junho, do santo do nome do soberano.
Bastava ao ministro da regncia como
garantia democrtica tornar-se o prncipe imperador por
unnime aclamao do povo, no s ou no tanto pela graa
divina. Seu maior empenho era isolar a Coroa nas inevitveis
discusses doutrinrias e pessoais, da prxima Constituinte.
Segundo Rio Branco (260) foi Jos Bonifcio quem
conseguiu eliminar da cerimnia da aclamao o incondicional
juramento prvio, forando a cmara municipal do Rio a
desistir dessa exigncia demaggica, mas com isto
inimizando-se de vez com o grupo de Ledo. Chegou esta faco
um instante a preponderar na simpatia do jovem soberano, do
que reflexo a ordem de suspenso da devassa sobre a
bernarda paulista, assim se explicando que Jos Bonifcio
fosse levado a solicitar demisso no dia 23 de setembro. Tal
foi a data do decreto de suspenso ou melhor dito de
anulao do referido inqurito, com que Dom Pedro quis
"corresponder geral alegria desta cidade pela nomeao dos
deputados para a assemblia geral constituinte e
legislativa, que h de lanar os gloriosos e inabalveis
fundamentos do Imprio do Brasil".
Ledo fora dos contemplados pelo sufrgio
nessa eleio ocorrida no dia anterior - 22 de setembro -
apesar de toda a cabala dos amigos dos Andradas, sendo o
quarto votado na lista de oito, composta mais do baro
depois marqus de Santo Amaro, Dr. Agostinho Goulo, Sousa
Frana, Nogueira da Gama (depois marqus de Baependi),
Pereira da Cunha (depois marqus de Inhambupe), Silva
Coutinho (bispo do Rio de Janeiro) e Dr. Jacinto Furtado de
Mendona. Martim Francisco s conseguiu ser eleito suplente
no obstante ser ministro da Fazenda; ele e J. J. Carneiro
de Campos (depois marqus de Caravelas) foram os mais
votados desta classe, e substituram Ledo e Goulo, que no
tomaram assento.
Data igualmente de 22 de setembro a
insero num nmero extraordinrio do Correio da
ordem de 18 sobre o distintivo patritico a ser ostentado,
anunciada na noite de 21 ao som de trombetas (261).
De 18 tambm o decreto relativo ao escudo de armas do
reino do Brasil e bandeira nacional (262), cuja
publicao foi contudo posterior pois que o encarregado de
negcios da ustria escrevia a 25 de setembro que no tinham
ainda aparecido as respectivas disposies.
Entre os dois grupos, desde ento em
franca oposio, havia por certo um antagonismo suscitado
por antipatias pessoais, mas havia tambm e mais que tudo
uma divergncia de princpios, no s de ambies, que se
fora gradualmente agravando. Dentro de um regime monrquico,
como dentro de um regime republicano, cabem entretanto um
partido avanado e um partido conservador e pelo correr dos
tempos at se verificou e no raramente, na Inglaterra como
no Brasil, cujo regime imperial foi nos pases de
civilizao ocidental o que mais de perto seguiu o
parlamentarismo britnico, que os conservadores, sob a
presso da opinio nacional, realizaram no poder e nem
sempre com as salvaguardas que seriam de esperar, as medidas
primeiro aventadas e defendidas pelos liberais. Assim
aconteceu com a reforma eleitoral inglesa e com a abolio
brasileira da escravido.
Para a superioridade partidria, isto ,
para a efetividade da autoridade, o favor do soberano valia
ento ainda tanto ou mais do que o prestgio popular, e por
isso as duas faces se disputavam no Rio de Janeiro o
valimento do prncipe a quem queriam servir, servindo ele
prprio os ideais diferentes desses dois grupos de
conselheiros que tinham rivalizado nos seus esforos pela
libertao constitucional do reino americano.
Em Lisboa, onde as Cortes tinham
excelentes informaes sobre o que se passava no Brasil pelo
intercurso do pessoal poltico e pelas idas e vindas de
personagens em evidncia, no nutriam os regeneradores
iluses sobre o papel primacial desempenhado por Jos
Bonifcio nos sucessos de alm-mar. Ele era o alvo das
objurgatrias e dos ressentimentos. Por ocasio dos famosos
decretos de 23 de julho de 1822, os membros da junta
provisional paulista que assinaram a representao ao
prncipe Real do 24 de dezembro do 1821 e os membros da
delegao paulista recebida por Dom Pedro a 26 de janeiro de
1822, foram os nicos mandados submeter a processo, portanto
os nicos expressamente considerados culpados. "Contra
nenhuma outra pessoa - rezava o decreto - alm das indicadas
no artigo primeiro, se proceder pelos documentos que nele
se referem, e fatos a que nele se aludem". Ao ministrio do
Rio de Janeiro, por motivo da convocao do conselho de
procuradores, s se mandava verificar a responsabilidade, e
bem assim por quaisquer outros atos da sua administrao. As
Cortes destarte faziam partir todo o movimento tendente ao
rompimento da iniciativa paulista, o que quer dizer de Jos
Bonifcio.
Os agentes diplomticos estrangeiros
julgavam-no sem discrepncia a alma da regncia e na pea
poltica a que o Brasil estava servindo de tablado, se Dom
Pedro fazia o gal e a nao era a ingnua, a Jos Bonifcio
coubera encarnar o centro dramtico, o que no teatro francs
se chama o Pre noble. Nestas condies e pelas
exigncias da sua viso poltica, no pelas da sua
idiosincrasia, sua ao exercia-se num sentido moderador e
dele seria com efeito a inspirao da resposta imperial de
12 de outubro, que conciliava a susceptibilidade dinstica
com o melindre popular, declarando o soberano que aceitava a
investidura porque tal era o voto das cmaras municipais,
clulas do organismo poltico. Nas suas conversaes com
aqueles agentes estrangeiros, de monarquias associadas numa
aliana reacionada, a habilidade diplomtica do ministro que
todos eles respeitavam, empenhou-se em faz-los acreditarem
que ele considerava prematuro e mesmo mal maquinado (pris
dans de mauvaises formes na expresso de Mareschal) o
desfecho que ia ser dado desavena sobrevinda no Reino
Unido.
A popularidade de que momentaneamente se
achavam gozando os ultra-liberais entre os partidrios da
independncia e que Jos Bonifcio admitia nas citadas
confabulaes de chancelaria, mesmo porque lhe era isto de
proveito como argumento, provinha do impulso que pela sua
atitude intransigente tinham incontestavelmente dado
emancipao em andamento, agora em concluso. Essa
popularidade tenderia porm a desaparecer, na opinio de
Jos Bonifcio, quando os ultra-liberais pretendessem entrar
em conflito com os direitos do trono. Era-lhe por isso
mister imolar suas preferncias doutrinrias convenincia
superior de no abandonar o prncipe nas mos dos democratas
que o queriam assoberbar e pr na sua dependncia, para o
que no tinham alis fora bastante.
No entanto - e a se descobria o patriota
sob o manto do diplomata - Jos Bonifcio no podia
dissimular aos representantes europeus que os "votos
verdadeiros" do Brasil eram bem esses: separao completa de
Portugal e a fundao do Imprio do Brasil. Nem em rigor
havia nisso matria para surpresa, acrescentava (263),
porquanto o Rei Dom Joo VI fora saudado com esse ttulo ao
abordar na Bahia e desde ento muita gente se servia
freqente e intencionalmente da expresso - imprio,
ao referir-se ao reino ultramarino. Datavam de um ano atrs
os versos, pecos mas expressivos, com que um poetastro
annimo traduzira o seu sentimento nacionalista e liberal e
que apareceram afixados nas esquinas da capital brasileira:
Para ser de glrias farto
Inda que no fosse herdeiro,
Seja j Pedro Primeiro
Se algum dia h de ser quarto.
No preciso algum parto
De Bernarda, atroador;
Seja nosso Imperador
De Cortes, franco e leal
Mas nunca nosso senhor.
Por sua vez fazia Mareschal diplomacia
para Viena, onde seu mestre Metternich dava o devido valor
ao tom de desolao com que o encarregado de negcios jurava
que a Princesa Leopoldina estava presa de uma "juste e
profonde affliction" perante o desenlace da crise que ela
pelo contrrio ajudara poderosamente, com muita discrio,
mas com muito critrio, para que fosse consoante a lgica
dos fatos e a fatalidade histrica. Comunicava ao mesmo
tempo Mareschal que Dom Pedro resistira quanto pudera
corrente, o que ele bem sabia no ser exato, pelo menos
desde o Fico, e que apenas cedera aquilo que fora
levado a julgar uma necessidade absoluta, declarando-se
pronto a restituir as rdeas do governo s mos paternas no
caso de Dom Joo VI voltar para o Brasil.
Entretanto dizia o mesmo diplomata em seu
ofcio que fora ao Pao no dia 23, mas que Dom Pedro no lhe
dera nessa ocasio o ensejo, antes o evitara d'une
manire marque, para que ele apresentasse
respeitosamente as suas advertncias com relao ao passo
que o prncipe ia dar contra a legitimidade. Mareschal
apenas pde formular suas razes na audincia especial que
lhe foi concedida a 25. O encarregado de negcios da ustria
fazia sobretudo questo do ttulo de legitimidade, no
querendo que houvesse menoscabo dos direitos majestticos do
soberano do Reino Unido. Que o prncipe muito embora se
proclamasse imperador, ou melhor dito proclamasse o imprio,
mas que, ao colocar sobre a prpria cabea a Coroa Imperial,
no desfizesse o lao pessoal com Dom Joo VI, neste
continuando a. subsistir a unio poltica por ele fundada
dos reinos sobre que se estendia igualmente sua autoridade
suprema.
Mareschal, admitindo o imprio, ia pois
de encontro opinio daqueles que se arreceavam que as
maiores potncias da Europa achassem demasiada a pretenso
do Brasil querer irmanar em categoria com a ustria e com a
Rssia. Jos Bonifcio dissera alis um dia (264)
diante do representante ingls, Chamberlain, que o Brasil
no havia de consentir em que os demais governos
interviessem nos seus negcios internos, sendo esta uma
humilhao a que se no submeteria o reino americano. A
forma da independncia cabia essencialmente no nmero dos
assuntos nacionais, se bem que tambm tivesse o seu aspecto
internacional. Mareschal no ignorava contudo ser impossvel
transmudar-lhe a substncia, pois que informava para Viena
que tropa e povo nem queriam esperar pelo dia 12 de outubro
para aclamarem Dom Pedro imperador e que s se conformaram
em aguardar at essa data, que era a do aniversrio do novo
monarca, to somente brasileiro, que o pas ia pr
frente dos seus destinos, porque a cmara Municipal do Rio
de Janeiro fizera pblica a 21 de setembro uma proclamao
fixando o referido dia 12 de outubro para a realizao dos
desejos da nao (265).
Do grmio da comunidade independente eram
apartados e mandados sair do pas, no prazo de quatro meses
das cidades do interior e no de duas das cidades martimas,
os dissidentes da vontade dos adeptos da libertao e
constituio parte da nova nacionalidade, contra cuja
independncia no se atentaria sem incorrer nas penas de
alta traio com processo sumrio e castigo rigoroso.
Concedia-se entretanto anistia geral para todas as passadas
opinies polticas, manifestadas at a data do decreto,
excludos dela apenas os que j se achassem presos e
respondendo a juzo. O fundamento da resoluo do governo
era que "no devia participar com os bons cidados dos
benefcios da sociedade, todo aquele que no respeitasse os
direitos da mesma e, ou por crassa ignorncia, ou por cego
fanatismo pelas antigas opinies (266),
espalhasse rumores nocivos unio e tranqilidade de todos
os bons brasileiros, e at mesmo ousasse formar proselitos
de seus erros".
* * *
As condies de segurana do Imprio que
ia tomar lugar entre as naes soberanas sem partilha, no
eram completamente auspiciosas se a me-ptria resolvesse
atac-lo ou antes se dispusesse de foras para tanto. O
esprito de insubordinao lavrava entre a marinhagem, j de
se pouca, sendo escasso seu viveiro local, e a maior parte
dela portuguesa, sem o sentimento portanto de nacionalidade
e sem qualquer entusiasmo profissional, porque em grande
parte fora recrutada contra a vontade. Refere Mareschal que
numa rebelio a bordo da esquadrilha de Labatut, a fragata
Unio esteve em grande perigo, tendo a oficialidade
que se agrupar toda na popa, s conseguindo dominar o motim
com a ajuda de 40 gals napolitanos, aos quais foi prometida
a liberdade em troca do servio que deles se reclamava.
Entre as foras de terra tambm o
elemento lusitano no podia inspirar confiana e facilmente
se amotinava, sendo contnua a represso da sua
indisciplina, que contagiava o elemento nacional, mas mais
facilmente se explicava. Como natural numa quadra como
essa, de constante agitao e sem os meios de informao e
de observao hoje existentes, os boatos terroristas
fervilhavam, embora fossem mais tarde desmentidos e
confirmados outros mais tranqilizadores. Amide se falava
por exemplo em navios de guerra portugueses, que cruzavam
aqui e acol, em velas que se avistavam vindo da Europa. O
prprio governo tinha certo interesse em que essas notcias
se propalassem para melhor poder reforar os meios de
defesa, adotando providncias que de outro modo poderiam ser
ressentidas. O apelo ao elemento estrangeiro impunha-se
porm especialmente na marinha.
Nem de surpreender que reinassem tantos
rumores pessimistas quando de Londres escrevia Felisberto
Caldeira a Jos Bonifcio (267), em 5 de julho de
1822, que "um amigo intimo de Sarmento (Encarregado dos
Estados Portugueses em Londres) acabava de lhe participar
que ele recebera aviso de estar feito um tratado de aliana
ofensiva, e defensiva com Espanha, o que as gazetas
francesas haviam j anunciado no ms passado, e que um dos
artigos dar Espanha 12.000 homens a Portugal para a
expedio do Brasil: assim conta o tal Sarmento que iro
20.000 sendo 8.000 portugueses, o que subjugar
completamente o Brasil. Eu no sei qual das duas Naes est
mais pobre, e mais fraca, mas propendo a crer que a Espanha
ainda pode dispor menos de 12.000 do que Portugal dos 8.000.
Entretanto convm preparar para o pior dos acontecimentos".
O portugus estava gradualmente passando
a ser o inimigo, cuja exaltao podia ser avaliada de
uma forma indireta, mas sugestiva, pela atitude tatuada na
Bahia pelas autoridades inglesas quando anuram entrega de
Gervsio Pires Ferreira, protegido pelo pavilho britnico,
somente pelo receio de que os sditos britnicos ali
estabelecidos sofressem violncias. Beresford, que conhecia
de dentro os assuntos do Reino Unido de Portugal e Brasil e
privava numa longa familiaridade com a administrao
portuguesa, tendo sido comandante em chefe do exrcito
portugus e lorde protetor da junta de regncia, era o
primeiro a admitir perfeitamente a hiptese das Cortes
levantarem dinheiro com enorme usura e continuarem a mandar
tropas para a Bahia, estendendo-se a guerra civil s outras
provncias, chamando o partido mais fraco os negros em seu
favor, revoltando-se estes depois contra os brancos
(268) e acabando Portugal, exausto e arruinado, por
ser presa da Espanha que o conquistaria e incorporaria. Era
o que o marqus de Campo Maior (269) confessava
em Londres ao futuro marqus de Barbacena numa entrevista
que tiveram e que o ltimo relatava para o Rio a 7 de julho
de 1822.
Se entre os portugueses crescia o
despeito, entre os nacionais subia paralelamente tanto o
entusiasmo que o prestgio dos Andradas diminua
sensivelmente, pode pelo menos dizer-se apreciavelmente, com
se propalar que eram eles avessos s solues extremas e
dispostos a contemporizar com as tradies do passado,
aconselhando ao Prncipe respostas ambguas s aclamaes
populares, em vez de proclamar um rompimento absoluto, no
s com Portugal como com o que se veio a chamar o sistema
europeu.
Dom Pedro, ao acalmar as desconfianas do
diplomata austraco sobre o seu prprio radicalismo
dinstico, prometera "uma resposta ao povo que satisfaria
toda gente, aqui e l", concordando seu parecer com o do seu
ministro e com o daquele agente estrangeiro. A idia de
Mareschal, que este se mostrava persuadido de que era tambm
a idia do governo, parecia sumamente hbil pois que
consagrava o princpio da legitimidade e desacreditava as
Cortes, sem entretanto ir de encontro ao sentimento nacional
brasileiro. O prncipe assumiria com o ttulo de Imperador a
efetividade dos poderes soberanos de que era at ento
delegado e usufruturio; mas no o faria pela investidura
popular e sim em virtude do seu carter de herdeiro da coroa
e da prerrogativa rgia, pelo fato de achar-se o monarca
privado deles e cativo das Cortes.
Para Jos Bonifcio o essencial era que a
independncia se consumasse e para este caso valia a
substncia mais do que as formas. A resposta de Dom Pedro
sobre que se estribava a diplomacia de Mareschal no tocante
citada harmonia de vistas entre as antigas monarquias do
Velho Mundo e a jovem monarquia do Novo Mundo, prometia
contudo revestir uma aparncia antes evasiva. Jos
Bonifcio, tendo que guiar o barco da nacionalidade, que se
constitua, entre o escolho reacionrio e o escolho
demaggico, entendera mesmo conservar em segredo a frmula
pela qual, no momento da aclamao, o Imperador acolheria a
expresso dos desejos do povo.
No conselho de Estado no foi essa
questo discutida, como o no fora a questo do ttulo, real
ou imperial, porque dada a sua composio, no se chegaria
porventura a uma resoluo serena e que pudesse permanecer
sob sigilo at o ltimo momento. A impresso de muitos era
que a autoridade de Dom Joo VI no seria completamente
eliminada, antes se veria respeitada na hiptese, alis
pouco favorvel, do seu regresso ao Brasil. O ministro da
regncia queria muito salvaguardar a independncia do trono,
sem sacrificar entretanto a independncia da nao, e visava
a que a invaso por um elemento da esfera de atribuies e
regalias do outro no produzisse uma confuso prejudicial
estabilidade poltica e social.
O problema era difcil, pela atmosfera,
carregada de preconceitos democrticos, em que se agitavam
as aspiraes nacionais, mas no era impossvel de resolver.
Haveria para isso que moderar a altanaria das cmaras
municipais, que se achavam muito inclinadas a assumir o
papel do Terceiro Estado na Revoluo Francesa e, sem ir de
encontro sua influncia, canaliz-la para aproveitar a sua
indispensvel colaborao na organizao dos destinos
ptrios na Assemblia Legislativa que compartilharia
constitucionalmente com a coroa a soberania nacional e
executariam ambas, intimamente associadas, uma tarefa
ordeira e construtora e no dispersiva e anrquica. No
consrcio projetado caberia porm ao Imperador o ser a
cabea do casal: neste ponto que concordavam Dom Pedro,
Jos Bonifcio e Mareschal. As circunstncias levariam pouco
depois os Andradas a darem maior consistncia ao seu
patrocnio dos direitos da nao, mas era neles ingnito e
foi sempre acentuado o amor do princpio da autoridade.
Com as responsabilidades da administrao
do Estado a seu cargo, Jos Bonifcio e seus colegas de
gabinete sabiam que os recursos do Brasil se achavam numa
condio de fraco aproveitamento pela situao geral dos
negcios pblicos do pas, e que o errio carecia
positivamente de dinheiro, o qual somente na Europa se
poderia levantar entre os banqueiros ingleses em quantidade
mais avultada, comparativamente ao que podiam fornecer os
negociantes da praa. Aqueles banqueiros no se mostrariam
naturalmente muito dispostos a emprestar seus capitais a
terras alvoroadas, onde as autoridades no dispusessem de
eficincia e de prestgio. Era igualmente por isso preciso
que a aclamao, a qual se apresentava em suma ainda como
uma separao no amigvel, se realizasse com as cautelas ou
antes as reservas prprias a no abolir a confiana
indispensvel ao fortalecimento do Imprio.
Da a atitude passiva do governo,
parecendo alheio aos preparativos do grande dia da
emancipao definitiva. Tomar ostensivamente sua direo,
seria comprometer o conceito adquirido junto a vrios
fatores, de fora sobretudo, que eram de ndole a embaraar o
movimento se vissem que este tomava um rumo radical, no s
integral, o que j por si representava um obstculo, dado o
particularismo histrico das provncias. Felisberto
Caldeira, escrevendo de Londres a Gervsio Pires Ferreira
(270) e supondo-o, como toda a gente o supunha,
republicano e autonomista, exprimia sua convico de que
cada uma das provncias brasileiras "havia de ter sua
particular administrao" e comentava a propsito: "A
revoluo de 1817 fez persuadir a toda gente que os
pernambucanos desejam fazer de sua Provncia uma Repblica
independente, e supondo isso possvel que considerao
poltica teria no mundo? Para os ignorantes no h razo que
baste, mas V. Exa. de certo conhece as vantagens de um
Estado que abrange do Prata ao Amazonas, e por isso espero
em Deus que por todos os meios a seu alcance se esforar
por conservar a integridade do Brasil".
Renunciar participao nos festejos que
se organizavam, o que eqivalia a no intervir e at a
desprezar os sucessos que se desenrolavam, seria contudo um
contra-senso vista dos precedentes e apenas daria ensejo a
animarem-se os adversrios de dentro, que j especulavam
tanto com a calculada frieza patritica do governo que o
apodavam de aristocrtico. O Correio do Rio de Janeiro
estava na primeira fila dos que reclamavam no s
princpios, como atos democrticos. A Londres chegara havia
meses o eco dessas divergncias e desses embustes. "A
intriga trabalha por todos os modos, para o prncipe
escreve-se que no se fie nos brasileiros que o no amam,
que fazem dele escudo para vencer aos portugueses e que uma
vez seguros o rejeitaro porque so todos democratas: para
os brasileiros escreve-se V. Exa. um Aristocrata que quer
restabelecer o despotismo etc. Conseguida a diviso entre os
brasileiros qualquer fora portuguesa ir subjugando as
Cidades Maritimas" (271).
CAPTULO XX
PRIMEIROS TRABALHOS DIPLOMTICOS NA EUROPA
O reino do Brasil j contava em 1822 com
a sua diplomacia privativa. Encarnava-se na Europa o futuro
marqus de Barbacena, a quem Jos Bonifcio fez encarregado
de negcios ou antes dos negcios, no sem escndalo do
contemplado vista da sua patente militar de marechal de
campo, que lhe parecia merecer categoria mais alta. Para o
bom resultado da sua gesto pouco importava a denominao.
Barbacena era naturalmente ladino e partindo das premissas,
que estabelecia, de que o governo britnico s tinha
intimidade com os ministros que sacrificavam os interesses
da sua ptria aos da Inglaterra (272) e de que
ele pelo contrrio antepunha os primeiros aos segundos,
tinha que entrar no jogo poltico com os trunfos da astcia
e da previso.
Seu esprito acusou sempre uma feio
utilitria, isto , desde moo, na Bahia, o fascinaram os
progressos materiais com os quais queria conjugar o
desenvolvimento social, pelo que se sentia bem na
Inglaterra, ptria das indstrias e ptria do governo
representativo. Para a falta de unio das provncias
brasileiras por exemplo, encontrava ele um remdio certo na
maior facilidade de comunicaes entre elas que traria a
aquisio de barcos a vapor, ento nos seus princpios, os
quais reduziriam a quinze dias a viagem do Rio de Janeiro ao
Amazonas ou antes Par, com as escalas principais, pois "os
barcos da fora de cem cavalos andam 10 milhas contra o
vento, e mar nos mares da Esccia, e levam as cartas com a
mesma regularidade de hora dos correios de terra. Em ocasio
de furiosos temporais h de haver alguma diferena, mas os
furiosos temporais so to raros na zona trrida que pouca
considerao merece essa diferena" (273).
Poderia no senso prtico que distinguia
Barbacena infiltrarem-se algumas iluses a par de outras
tantas antecipaes, como a do carvo de pedra nacional; mas
era bem verdadeiro o seu conceito, ento enunciado, de que o
Brasil naquela ocasio precisava sobretudo de militares, de
banqueiros e de maquinistas: os primeiros para
defenderem-lhe a integridade; os segundos para o salvarem da
bancarrota - o banco, a praa e tambm o Estado - visto que
novos tributos no eram viveis e seria possvel obter um
emprstimo com a hipoteca da remessa de diamantes e
pau-brasil e parte do rendimento de certas alfndegas; os
terceiros para valorizarem-lhe os recursos. No lhe parecia
sequer demasiado desenvolver l a indstria siderrgica
apesar dos obstculos levantados pelo governo britnico,
vindo a fabricar-se no pas mesmo mquinas, dificlimas de
serem transportadas serra acima, para esgotamento das guas
com o fito de aumentar muito a produo do ouro das lavras
de Minas Gerais.
Barbacena no deixava de partilhar de um
defeito comum aos diplomatas de todos os tempos e de todos
os pases, que o de observarem as coisas por um prisma
falso, exageradamente estrangeiro ou exageradamente
nacional. Pensava ele que Santa Aliana repugnaria
reconhecer um Brasil completamente independente, possuidor
de uma soberania sem restries, mas que era bvio que
aplaudiria qualquer atitude decidida que Dom Pedro tomasse
contra as Cortes usurpadoras da autoridade real, indo mesmo
at retirar os representantes brasileiros da Assemblia de
Lisboa, convocar deputados de todas as provncias na sua
capital americana, segundo o que ocorria noutras monarquias
duais como a Sucia e Noruega e a Gr-Bretanha e Hanover,
romper os laos polticos estabelecidos pela revoluo
regeneradora e elaborar uma constituio nacional
brasileira.
Sua viso de estadista era contudo ampla
bastante para que seus possveis preconceitos europeus,
bebidos nas Cortes que entrara a freqentar, no chegassem
ao ponto de lev-lo a votar ao ostracismo as idias liberais
que ele sentia estavam fadadas para o triunfo. J vimos que
achava que para o Brasil estava pronta a faina da preparao
de uma lei orgnica pois que "A Constituio Americana com
palavras, e frmulas monrquicas quanto nos convm",
escrevia a Jos Bonifcio (274). Um banqueiro
ingls lembrava ao mesmo tempo que a expresso - Cortes
andava em tamanho descrdito na Europa conservadora por
causa dos desmandos doutrinrios da Espanha e de Portugal,
que vantajoso seria dar Assemblia Brasileira o nome
britnico de Parlamento porque, quase toda a gente
deixando-se levar por palavras, essa mudana de rtulo
representaria um benefcio de 2% no emprstimo projetado.
Fazia Barbacena grande caso da sua
profisso militar e punha grande garbo nas suas relaes
militares, e como no via no Brasil como recrutar gente
suficiente para sua defesa to espalhada, preconizava a
importao de mercenrios da Irlanda, Frana e Sua,
embarcando os dos dois primeiros pases como agricultores e
seus oficiais como administradores, para iludir os
respectivos governos se que estes no fechavam por si os
olhos. De todos considerava os melhores a serem engajados os
irlandeses, porque a situao da ilha era como sempre
desgraada e porque como cultivadores de trigo e salgadores
de carne sua colonizao estava muito apropriada para o Rio
Grande do Sul, que era a zona particular dos atritos entre
as duas grandes raas peninsulares povoadoras da Amrica do
Sul e ficava prximo ilha de Santa Catarina, em cuja
ocupao se falava correntemente em Portugal (275).
A Barbacena parece pertencer a prioridade
da idia de contratar-se lord Cochrane - "ouo que muito
amigo de dinheiro, escrevia ele3, e que est em
discrdia com S. Martin" - a fim de pelo menos bloquear o
porto da Bahia e desmoralizar com o prestgio do seu nome o
inimigo ali concentrado. Alm do almirante ingls, fcil
devia ser engajar algum "bravo americano com suas fragatas"
- estavam frescas na memria de todos as brilhantes faanhas
navais dos Estados Unidos na guerra de 1812 - e tambm as
tropas estrangeiras Bolvar tinha sob seu comando e que
entravam a ser-lhe dispensveis pois que era fatal a
rendio do Peru, ltimo baluarte espanhol na Amrica do
Sul. Por tudo quanto ocorrera parecia at conveniente
misturar com ingleses e americanos os marinheiros
portugueses, e oficiais das armas cientficas, pelo menos,
no podiam deixar de ser necessrios.
Num ponto insistia com razo o primeiro
diplomata do Brasil imperial e era na vantagem de grangear
as boas graas da Gr-Bretanha mediante a estipulao de um
prazo curto para a cessao do trfico de escravos. A
filantropia inglesa andara nesta questo bastante tempo
sobrepujada pelo interesse comercial, que at levara o
gabinete britnico a obter da Espanha por tratado o
monoplio do trfico para as colnias espanholas; mas
filantropia e interesse tinham acabado por entender-se e
associar-se ao ponto que a admisso franca do assacar
brasileiro no mercado ingls seria porventura uma das
conseqncias da medida abolicionista recomendada por
Barbacena.
Escrevia este que no havia homem pblico
de importncia na Inglaterra que no fosse contrrio
escravido e afigurava-se-lhe que o Brasil s teria a lucrar
com fazer a abolio contempornea da sua prpria
emancipao. Se era ela antiptica ao sentimento pblico
brasileiro, acostumado ao trabalho servil, valia por isso
mesmo a pena, da opinio de Barbacena, que fossem os
ingleses os que incorressem no odioso suscitado pela sua
eliminao. O diplomata como que previa o bill
Aberdeen e a cessao do trfico determinada pela imposio
estrangeira.
* * *
Eram mltiplos os objetos de que
Barbacena tinha a cuidar na sua misso at certo tempo
oficiosa, mas nem por isso de um carter menos
substancialmente diplomtico. A entrevista com Beresford foi
seguida de outra mais formal em que o marechal ingls,
falando virtualmente pelo governo britnico depois de
conferenciar com o Foreign Office, sugeriu ao
Prncipe Regente que buscasse a mediao da Inglaterra no
caso de recear deveras que se verificasse a hiptese da
guerra civil e de querer sustar a projetada expedio
portuguesa. S. M. Britnica, "como medianeiro no ulterior
arranjo dos dois Continentes, empregaria todos os meios de
conciliao para terminar as diferenas de uma maneira
honrosa, e til a ambas as partes" (276).
Barbacena achava mesmo que Beresford
formulava sua insinuao por conta do ministrio ingls,
sendo alis a melhor concretizao, a mais benfica para os
interesses de uma e outra parte, da idia lanada pelo
antigo procnsul britnico em Portugal de apelar Dom Pedro
para os soberanos da Europa vista da situao de Dom Joo
VI que, por no haver seguido o conselho britnico de ficar
nas Ilhas, longe da tutela das Cortes, se via "reduzido a
Gro-Lama sem autoridade de propor ou impedir qualquer lei,
e assinando quanto lhe mandam". claro que o gabinete de
St. James protestava sempre no querer intrometer-se nas
dissenses internas da monarquia portuguesa; mas como dizia
sentir os males de ambas as suas sees, desejava concorrer
para o bem da nao em geral sem tomar partido por este ou
aquele reino.
O plano de Beresford era que, solicitando
a mediao britnica, como por fim aconteceu para o
reconhecimento do Imprio, e expondo as reclamaes
derivadas da usurpao pelas Cortes de quanto era regalia e
autoridade da coroa, o Prncipe Regente no melindrasse seu
pai, no repudiasse Portugal e no rompesse a integridade do
Reino Unido. "Ele deve lisonjear o amor prprio dos
brasileiros, mostrando-se persuadido que eles perdero
contentes a vida em defesa da sua pessoa, e direitos, mas
que por isso mesmo maior sua obrigao de evitar a guerra
civil; dever garantir que eles querem a unio, mas com
dignidade, que concorrero para as despesas gerais mas tendo
no Brasil uma pessoa real com Parlamento Brasileiro para que
nenhum dos Reinos possa intervir na administrao particular
do outro" (278).
Reproduzindo estas opinies, Barbacena
exultava porque nelas achava o reflexo das suas prprias,
anteriormente manifestadas a Jos Bonifcio (279).
"No proponho - escrevia ele ento- a declarao de
Independncia ou Aclamao de S. A. Real em Soberano do
Brasil, porque esta medida tornando-o desobediente a seu
pai, e privando-o da herana de Portugal tambm embaraaria
o reconhecimento dos Soberanos da Europa, que estimando, e
aprovando todos resoluo de ficar S. A. Real no Brasil,
no podem fazer ato algum pblico contra os princpios de
Legitimidade garantidos pela Santa Aliana, quando alis em
Regente do Brasil, e fazendo o que adiante lembro, ser
reconhecido por todos os soberanos, ter a glria de fundar
num novo Imprio, e mudar a triste sorte de seu pai, e de
Portugal" (280).
Beresford e Barbacena estavam com a hora
poltica atrasada. No Brasil j estava passado o zenith da
unio e as prprias Cortes Portuguesas, no querendo abolir
no seu seio a representao das provncias de alm-mar que
se haviam ligado ao prncipe, porquanto tomavam tal
deliberao como emanada das suas juntas e esperavam que
fossem eleitos os deputados Constituinte Brasileira para
ento acatarem a vontade popular manifestando-se favorvel
separao das assemblias, foram as que ensinaram a
respeitar a expresso da soberania nacional. As Cortes
timbravam na deferncia as frmulas quando mesmo violavam a
essncia do self-government. Barbacena dava em todo
caso boa cpia do seu tino quando falava em serem
estipuladas por uma conveno especial as relaes
comerciais entre os reinos desunidos. Os interesses
mercantis e econmicos de Portugal constituam de fato a
preocupao mxima das Cortes.
No conceito destas a Santa Aliana
preteria-lhes o prncipe, a quem diziam abertamente
protegido pelo sistema reacionrio. De uma excurso pelo
continente trouxe com efeito Barbacena a impresso de que
Dom Pedro gozava da maior considerao e seu gabinete da
melhor reputao: pelo menos assim o referia (281),
e verdade que o Imperador da Rssia costumava at exclamar
com freqncia - Viva o rapazinho, aludindo ao dito
de Borges Carneiro, que Barbacena qualificava de "tremenda
insolncia", e vaticinando que seria aquele outro Pedro o
Grande. Ora, para no ver comprometida essa "pblica
aprovao" que o agente diplomtico brasileiro no queria
ver seu pas afastar-se do esprito monrquico ainda que
constitucional. O prprio ministrio britnico, mandava ele
dizer para o Rio, "nutria receios" sobre a fora da torrente
democrtica no reino americano. Beresford informou Barbacena
na entrevista que tiveram em junho que os brasileiros tinham
adquirido na Inglaterra fama de "demasiadamente democratas"
e que o gabinete ingls estava persuadido "que a afeio que
ora mostram pelo prncipe fingida enquanto se fortificam
contra Portugal". Respondeu-lhe Barbacena que no duvidava
"que nas cidades martimas aonde existe maior nmero de
negociantes portugueses, abunde, mais ou menos, de furiosos
democratas, nem isso admira porque neste mesmo pas
(Inglaterra) a gente pobre, e das ocupaes ordinrias da
sociedade so radicais. Quanto porm ao interior do Brasil,
e principalmente nas provncias de S. Paulo e Minas Gerais,
todos so partidistas da Monarquia temperada" (282).
Se assim pensava o governo de Londres,
como o no pensariam os outros? A idia predominante entre
os gabinetes conservadores da Europa era que, a haver
constituio, fosse esta sob a forma de uma Carta outorgada
pelo soberano e no de uma declarao de direitos,
equivalente a uma expresso da soberania nacional e das
garantias inerentes atividade do cidado. Tal era tambm a
preferncia de Dom Pedro, que ele no ousou formular em 1822
porque tinha presente a sbia recomendao paterna
(283); que o levou no ano imediato a dissolver a
Constituinte; que o fez procurar em 1824 o meio-termo de uma
constituio redigida por uma comisso ad hoc e
aprovada pelas cmaras municipais, e que em 1826 o decidiu a
conceder a Portugal a carta cujo destino teve que ser
decidido numa porfiada guerra civil.
Um dos maiores diplomatas da Europa na
frase de Barbacena, que no diz entretanto quem fosse,
observou-lhe que o Prncipe Regente tinha "agora bela
oportunidade de dar um grande golpe, e lio a Portugal.
Deve apresentar uma Magna Carta, que sem ofender a essncia
dos Governos Monrquicos, segure em toda extenso possvel
os direitos, e privilgios do Povo, a fim de ser
completamente aceita pela Assemblia, a qual longe de perder
o tempo em discusses, e vaidosa ostentao de eloqncia,
se ocupar das leis (segundo os princpios da carta) para o
bem da administrao da Justia, e Fazenda. No perder tempo
a Assemblia do Brasil com pedantarias do colgio, j um
grande bem mas acresce outro, que dar aos portugueses a
mesma carta, tirando a nao do precipcio em que se acha de
reunir-se a Espanha. Se a constituio for feita pela
assemblia, diro os portugueses que no tiveram nela
representantes, e portanto a no podem admitir: Se porm for
dada por S. A. Real e aceita pelos brasileiros, que diro os
portugueses?".
Uma carta constitucional outorgada aos
dois pases significava destarte a preservao da sua unio
pelo lao pessoal do soberano. O governo britnico no
favorecia por certo um regi-me absoluto, contrrio s suas
prprias tradies e sentimentos, e sua influncia, que
despertava nos Estados Unidos cimes que dentro em breve se
Cristalizariam numa doutrina exclusivista, carecia, para
melhor se exercer, que o prncipe contasse com a afeio,
respeito e obedincia dos brasileiros (284).
Para a Santa Aliana o imprio
brasileiro, embora vazado num molde constitucional,
representava a nica sobrevivncia na Amrica do princpio
monrquico europeu e era assim uma porta de entrada mais
acessvel para os interesses do Velho Mundo no Novo Mundo.
No convinha portanto levar o Brasil a fazer em tudo causa
comum com o resto do duplo continente, j sendo bastante a
fatal presso do habitat, das idias polticas e do
intercurso social. O Brasil carecia, verdade, do
reconhecimento europeu e Barbacena, desde que se esboou a
hiptese da mediao, lembrou a Jos Bonifcio que juntasse
da Inglaterra a da ustria, cujo prestgio estava em seu
apogeu. O pan-americanismo j constitua porm um instinto,
cuja conscincia levaria tempo a desenvolver-se.
A Inglaterra, que no visava seno a
primazia no globo, que a tinha a bem dizer alcanado com a
queda de Napoleo, e que no hemisfrio ocidental enxergava
um vasto e prometedor campo de lucros, era a primeira a
saber que uma aliana das novas nacionalidades que se iam
constituindo seria, dado o caso que se formasse, toda em
proveito das suas antigas colnias emancipadas nos Estados
Unidos. Urgia portanto que ela tirasse vantagem das
simpatias que soubera criar-se entre as colnias espanholas
e a que se no conservaria alheia a portuguesa, se lhe fosse
prestado qualquer concurso.
A neutralidade britnica era nestas
condies uma fico: de fato o governo ingls andava
ativamente interessado, e mais o ficou depois que Canning
entrou para o gabinete em setembro de 1822, na composio
dos problemas da grande seo do mundo que irrompia para a
vida independente. A Inglaterra no pretenderia arcar com um
continente coligado; mas antes que isto se desse, pretendia
ter nos negcios americanos a sua participao e, se
possvel, a sua preponderncia. Para tanto era-lhe
indispensvel a amizade brasileira, como ao Brasil era por
sua vez essencial a coadjuvao inglesa. No terreno em
questo pelo menos eram recprocos os interesses dos dois
pases. Gr-Bretanha repugnavam como aos Estados Unidos a
recolonizao pelas antigas metrpoles e novas conquistas
por outras potncias europias, cabendo na primeira
categoria a submisso do reino ou imprio brasileiro pelas
foras da me-ptria, se bem que o mvel do reino portugus
fosse incomparavelmente mais a reconquista comercial do que
a poltica.
Um Brasil aliado aos Estados Unidos no
lhe podia contudo sorrir e o regime monrquico por aquele
adotado, se no se levantava como um obstculo a um
entendimento como os fatos se encarregaram de demonstr-lo,
sempre traduzia para a Gr-Bretanha uma condio imanente de
aproximao, oferecendo ela por garantia sua no
identificao, para no dizer seu afastamento da Santa
Aliana. Sua convico de que o Brasil devia permanecer
liberal, mas no ir alm disso, era porque seria esse o meio
de a um tempo manter-se no continente americano uma
Monarquia que a designao de extica j espreitava, de no
incorrer no desagrado da Santa Aliana ao ponto de se
tornarem incompatveis e de firmar uma concordncia de
vistas e de ndole com a Monarquia Britnica.
Na ordem da poltica interna do Brasil as
convenincias eram idnticas. Havia que no querer suprimir
violentamente a sugesto republicana que j se implantara.
Barbacena escrevia a Jos Bonifcio (285) que "se
nas medidas adotadas no Rio de Janeiro depois da reunio dos
Deputados houver alguma que no seja liberal, e prpria de
uma Monarquia Constitucional, ai de ns que sofreremos
guerra civil, e desgraas por longo tempo! Se porm tudo for
conforme ao esprito pblico, como espero das luzes de V.
Exa., e do gnio do P. Augusto, que nos rege, as provncias
dissidentes se envergonharo, e por sua convenincia viro
imediatamente prestar obedincia. Os portugueses mesmo nos
tero inveja, e deitaro por terra seu mau governo".
Se o governo britnico acolhia com agrado
um regime constitucional que no fosse entretanto
democrtico, os outros governos europeus que no os da
Pennsula Ibrica mais afastados ainda estavam de toda
expresso ultra-liberal, e as informaes que Jos Bonifcio
recebia e que corroboravam suas prprias meditaes, pesavam
sobre seu esprito no sentido de aconselhar-lhe uma
prudncia poltica que brigava com seu temperamento vivo e
apaixonado, mas no Com sua razo disciplinada pela cultura
cientfica. De Paris escrevia-lhe Barbacena a 20 de agosto
que os receios do ministrio britnico sobre a torrente
democrtica no Brasil eram "transcendentes a vrios
outros gabinetes, e por isso para S. A. Real ir de acordo
com eles, e segundo o esprito constitucional de que S. A.
Real est animado, urgente estabelecer a organizao
poltica do Brasil sobre instituies monrquicas, que
tendendo a consolidar a mesma organizao poltica
neutralizem a ao do partido democrtico. Para consumar
porm esta obra entendem os grandes homens de Estado com os
quais tenho falado, que S. A. Real no deixe subordinar sua
poltica s decises caprichosas da faco regeneradora de
Lisboa, mas sim nica e privativamente ao que for de
interesse do Brasil, e concernente a dar-lhe o merecido
realce, porque a todo tempo ter lugar o estipular com o
governo de Portugal (logo que ali haja um governo legtimo)
as condies decorosas, e razoveis da unio dos dois
reinos".
Na atmosfera poltica europia Barbacena
ainda podia julgar possvel a manuteno do Reino Unido pelo
vinculo pessoal de um soberano comum; mas alm-mar j se
evidenciara a impossibilidade dessa preservao poltica e
se tornara palpvel e at imediata a soluo da
independncia. A questo estava antes, ou melhor dito estava
toda na subseqente modalidade constitucional. As
assemblias tumulturias, anrquicas e tirnicas inspiravam
desconfiana e receio. Por isso os "grandes homens de
Estado" a quem Barbacena aludia entendiam, como alis sentia
Jos Bonifcio, que "no estado atual da exaltao do
esprito pblico nesse Reino ser imprudente a convocao de
todo corpo deliberante mui numeroso, e julgam que para
discutir nesta conjuntura quanto diz respeito a organizao
poltica do Brasil suficiente fora o Conselho de Estado
convocado pelo Decreto de 16 de fevereiro, contanto que se
d a devida importncia s suas deliberaes".
Barbacena no se descuidara de
discretamente procurar influir, como lhe cumpria, para criar
na imprensa uma opinio favorvel ao Brasil, para isto
valendo-se dos seus conhecimentos. Os sucessos por si eram
porm sugestivos e diretamente ditavam as apreciaes que a
diplomacia buscava. Referindo-se aos debates violentos das
Cortes de Lisboa, o Times escrevera por exemplo que
negcios dessa natureza no se terminavam com argumentos de
retrica e de lgica, mas com fora fsica, e quando foi do
13 de maio, isto , da declarao do Prncipe Regente de
aceitar o ttulo de defensor perptuo, o mesmo rgo, com
todo o prestgio que lhe dava a respeitabilidade de que
gozou no sculo XIX, aconselhava Portugal a que no cavasse
a sua total runa, "lembrando-lhe que se Inglaterra
no pde com os Estados Unidos, se Espanha no pde
conservar ao menos uma Provncia com suas expedies, que
far Portugal com o sistema de guerra?" (286).
* * *
Barbacena entrou em negociaes diretas
para o reconhecimento do Reino do Brasil, antes da
proclamao do Imprio subseqente independncia,
servindo-se dos bons ofcios do encarregado de negcios da
ustria baro Neuman. Ficou previamente entendido que para
no haver comprometimento ele falaria como general ao
servio de S. A. Real, sem declarar antes de tempo sua
comisso diplomtica, isto , sem assumir carter poltico.
O baro Neuman prestara-se mediao mesmo porque
acreditava, ou pelo menos julgava adequado que o gabinete
ingls se concertasse para tal fim com os outros aliados. De
fato porm tal reconhecimento por parte da Gr-Bretanha, com
a subsistncia bem entendido da suserania de Dom Joo VI nos
dois hemisfrios, teria sido pronto se apenas o Brasil se
houvesse desde logo prestado a abolir o trfico dos
escravos.
Canning esquivava-se ao reconhecimento de
uma independncia integral porque esta o obrigaria
moralmente a reconhecer as naes neo-espanholas da Amrica,
o que ainda era considerado prematuro nesse momento. Tambm
Canning se recusava a admitir o estado de cativeiro do
monarca portugus porquanto, a admiti-lo, teria que retirar
seu ministro de Lisboa e qui interromper as relaes
comerciais com Portugal. No deixava entretanto de dar razo
s queixas do Brasil contra a antiga metrpole e na atitude
do reino americano s tinha que censurar sua obstinao em
prolongar o trfico negreiro. vista das esperanas que
sobre o assunto lhe deu o agente brasileiro, Canning
mostrou-se to conciliador e to simptico causa
ultra-marina que conveio at em receber ministro e cnsules
do Brasil, alegando-se para Portugal o interesse britnico
de no interromper suas relaes mercantis (287).
Tendo Canning solicitado de Barbacena uma
exposio escrita de motivos, objetou este que s em carter
pblico o poderia fazer, mas o secretrio de Estado dos
negcios estrangeiros advertiu que o objeto do seu pedido
era precisamente apresentar ao conselho de ministros as
razes para o reconhecimento da categoria diplomtica do
enviado, pelo que concordou Barbacena em continuar a agir
como militar to somente.
A pedido de Canning, Barbacena suprimiu
da exposio que primeiro mandou quanto se referia coao
real, insistindo apenas, pela recomendao do mesmo, nas
injustias cometidas por Portugal contra o Brasil e nos
mritos do Prncipe Regente para resistir s Cortes de
Lisboa. O agente brasileiro observou com inteno que muito
estimariam os portugueses que no fosse a Inglaterra a
primeira potncia a praticar esse ato de justia
internacional, para poderem fomentar intrigas no Brasil
contra os negociantes ingleses. Canning no era entretanto
homem que se deixasse levar por argumentos que no fossem
muito positivos e voltou por sua parte ao ponto que mais
tinha a peito prometendo at o reconhecimento da
independncia se Dom Pedro de seu lado prometesse abolir o
trfico de escravos.
Respondeu Barbacena que nela ele, nem
ningum poderia na Europa garantir que o prncipe faria isto
ou aquilo; pois que dependia das circunstncias em que
entravam a exaltao nacional, os agravos dos regeneradores
e a indiferena ou simpatia dos soberanos aliados.
Tudo isto pesava mais no esprito do prncipe do que seus
prprios sentimentos, os quais eram indubitavelmente
filantrpicos e concordavam alis com a razo, pelo que no
duvidaria Barbacena apostar que, feito imediatamente o
reconhecimento, cessaria em quatro anos o nefando comrcio,
mxime se a Inglaterra admitisse o consumo do acar
brasileiro.
Barbacena era da escola dos que tratam
logo de tirar o maior nmero de vantagens e j nessa ocasio
(16 de novembro) tinha informao, posto que no
oficialmente confirmada, do 7 de setembro. Nesse mesmo dia
16 teve ele nova entrevista com Canning, nela reclamando o
estabelecimento com reciprocidade da representao
diplomtica e a exigncia pelo governo britnico, como
medianeiro em Lisboa, da suspenso de novas expedies
contra o reino americano e retirada das tropas portuguesas
da Bahia. Assim sendo estaria o governo brasileiro disposto
a favorecer as relaes comerciais com a antiga metrpole.
Era portanto uma transao o que ele propunha, ou pelo menos
a correspondncia de uma promessa a um ato positivo de
benevolncia, mas no tocante questo dos negros, Barbacena
estava longe de querer comprometer-se igualmente com a
Inglaterra, sob pretexto de que os brasileiros eram gente
que "por generosidade e gratido faro tudo, mas por ameaa
coisa nenhuma".
O reconhecimento da independncia puro e
simples, sem condio alguma, mas acompanhado de uma
interveno para acabar com as hostilidades entre Portugal e
Brasil -, eis o que o agente brasileiro esperava do governo
britnico, o qual por si apenas exprimiria o desejo de que
no Rio de Janeiro se soubesse dar valor a essa poltica
generosa, cimentando a amizade das duas naes com uma
medida francamente abolicionista. Barbacena ajuntou para
reforo da sua argumentao na conversa com Canning que
"perderia a cabea" se o prncipe Regente procedesse
diversamente, no deixando entretanto de ponderar para 1
(288) que "pouco importa que eu perca a cabea uma vez
que o Brasil consiga o que deseja". de justia
acrescentar que pessoalmente Barbacena opinava pela abolio
do trfico.
Canning e lord Liverpool, que era o
primeiro ministro, no se entregaram diplomacia de
Barbacena, alegando que reconhecimento e mediao deviam ser
resolues conexas com a abolio, porque de outro modo o
gabinete se sujeitaria a graves ataques parlamentares; pois
que continuando suspenso o reconhecimento dos pases de
origem espanhola que tinham extinguido o trfico de
escravos, assim catando a simpatia inglesa, seria pelo menos
ilgico, seno inquo, que se reconhecesse precisamente o
pas que persistia em fomentar to horrendo comrcio.
Alm disso oposio parlamentar
britnica os liberais portugueses no podiam ser
antipticos, porquanto professavam a doutrina constitucional
em forma embora extremada, ao passo que o Prncipe Regente
do Brasil era por eles denunciado como desptico. As
negociaes fracassaram neste ponto e por esse motivo, com
grande desapontamento de Barbacena que por si admitiria a
condio - ad referendum como no podia deixar de ser
- porque estava persuadido de que o Brasil no lograria
resistir presso moral, mais ainda do que material, que
sobre ele se exerceria para que se enfileirasse na cruzada
humanitria que o interesse econmico de alguns pases urgia
associado com o adiantamento dos tempos. Quando no fosse
seno para castigar o Brasil, embora prejudicando Portugal
com o conseqente atraso da agricultura brasileira pela
falta do brao escravo, as Cortes tomariam partido pela
Inglaterra menor indicao de Londres.
Hiplito Jos da Costa, que era um arguto
jornalista e conhecia perfeitamente a poltica do seu tempo,
pensava exatamente como Barbacena sobre o assunto e seu
parecer lhe estava de antemo assegurado: Barbacena, porm,
do que mais se arreceiava era de que entretanto, com a nova
regncia nomeada em Lisboa e composta de gente moderada, a
Bahia, cansada de lutar e de gastar, pois que a luta s
trazia gastos s classes sobre que recaa o seu nus, desse
mostras de acomodar-se e se deixasse levar pelo oferecimento
de anistia e pela perspectiva de lucros prximos que lhes
compensassem os prejuzos j sofridos. Longe do teatro da
ao e portanto sem uma noo completa do desenvolvimento
dos acontecimentos, Barbacena no acreditava muito na
eficcia ou sequer na possibilidade dos socorros do Rio, e
argumentava do seguinte modo escrevendo a Jos Bonifcio
(289): "Se a Esquadra do Rio fugiu de navios mercantes
armados em guerra, ousar ela aparecer havendo na Bahia nau,
charruas, e Fragatas?".
O agente brasileiro deliberou aceitar a
proposta do gabinete britnico, mas teve que esperar pela
resposta de Lisboa sugesto de mediao que Canning
formulara no sentido de evitar ainda a separao, a qual
seria fatal se continuassem as coisas como estavam. A
Inglaterra achava-se resolvida a conservar-se em paz com
ambos os reinos e agia debaixo do princpio de serem os dois
independentes, apenas com um s soberano. Era tanto ou mais
do que hoje tm o Canad e a Austrlia. A sugesto estava de
resto de acordo com as declaraes oficiais do Prncipe
Regente e por si s teria o efeito de sustar qualquer
expedio militar, compreendendo Portugal que "ficar s na
contenda".
Sobreveio contudo a notcia do rompimento
do Brasil e Canning mostrou-se dela mais surpreendido do que
de fato se sentia, porque desse acontecimento queria tirar
partido para a sua poltica abolicionista. "Como entender
isto sr. General? perguntava ele a Barbacena a 30 de
novembro, mostrando-lhe o edital da cmara do Rio de Janeiro
com o anncio da aclamao imperial. Como contar com
qualquer ajuste, ou assero do ministrio do Rio, quando
nos atos de maior ponderao mostra freqente mudana de
principios?" (290). E a Barbacena o que se lhe
deparava melhor para responder era que a fermentao no
Brasil era tal, que o Prncipe Regente nem sempre podia
fazer o que entendia mais acertado e devia por vezes ceder
torrente que as medidas violentas das Cortes de Lisboa
faziam avolumar.
Barbacena invocou tambm os decretos, que
qualificou de absurdos, das Cortes para justificar a
aclamao imperial, posto que esta se lhe afigurasse
contraditria com o manifesto de 6 de agosto aos soberanos
estrangeiros. Neste sentido escreveu para uso de Canning um
arrazoado atribuindo a iniciativa da separao "ao povo, e
tropa em massa que se dirigiro a S. A. Real aclamando-o
Imperador, e pedindo que os defendesse das injustias,
hostilidades e ultrajes cometidos pelos facciosos de Lisboa
contra o Brasil" (291). Dom Pedro vira-se, no
dizer de Barbacena, impotente para sufocar a exaltao
pblica que ameaava desintegrar o Brasil se lhe no fosse
dada satisfao.
Era um novo Estado que assim se
constitua pelo que muito depois se haveria de chamar
self determination, e que desejava ardentemente firmar
amizade eterna com a Gr-Bretanha e receber franca e
liberalmente os seus produtos, abrindo todos os seus portos
navegao britnica uma vez que fosse reconhecido seu
status de soberania absoluta, no s a larga autonomia
ou antes a virtual independncia que propusera o citado
manifesto com o qual S. M. Britnica se conformara e de
harmonia com o qual pretendia agir, tendo insinuado para
Lisboa que do mesmo modo procedesse S. M. Fidelssima.
Tanto Barbacena como Gameiro (futuro
visconde de Itabaiana), que era o outro agente diplomtico
que o novo imprio ento mantinha na Europa e que fora a
Verona procurar admisso nos conselhos dos aliados, menos
feliz porm do que Cavour em Paris, em 1855, quando
conseguiu alistar o Piemonte entre as potncias ativas e
deliberantes, no tinham grande confiana num reconhecimento
imediato por parte da Santa Aliana, que ento dominava a
situao, j por causa do ttulo imperial assumido por Dom
Pedro, j pela consagrao na modalidade constitucional das
doutrinas de soberania popular.
Barbacena, que volvera a ser belicoso e
com mais nfase porventura do que sinceridade expressava o
voto que o deixassem acabar a vida com a espada na mo
defendendo os direitos do seu soberano e os de todo o Brasil
(292), escrevia para o Rio que se no devia contar
"com o socorro de ningum" (293): o que melhor
defesa assegurava ao Brasil era o tratar-se de fatos
consumados.
CAPTULO XXI
PETRUS IMPERATOR
AS PRIMEIRAS NUVENS NO CU DA INDEPENDNCIA
Boda molhada, boda abenoada, diz o rifo
portugus, e assim deveria ter sucedido boda do Imperador
com a nao brasileira, a julgar pelas fortes btegas d'gua
que assinalaram o dia da cerimnia posta em cena por Debret,
o pintor de histria emigrado da corte dos Bourbons para o
Rio de Janeiro de Dom Joo VI e em cujo cotao nunca
cessaram de palpitar as saudades da poca napolenica.
A moda conservava-se ainda toda pelos
arcos de triunfo e nada menos de cinco, devidamente
alegricos, se destacavam desde o campo da Aclamao at
rua Direita, para os quais - imitaes de madeira e lona,
destinados a vivre l'espace d'un matin - contribura
largamente o Grande Oriente, que com justa razo considerava
a festa como a sua prpria. Era ao mesmo tempo uma festa
militar, porque mal poderia um imprio desprender-se da
pompa guerreira. Trs mil praas no clculo de Porto Seguro,
seis mil no de Rio Branco, sempre minucioso nos pormenores,
especialmente desta natureza, mas tendendo invariavelmente a
acentuar a valia militar da nao, formaram a guarda do
jovem soberano. Para o seu efetivo concorreram o Rio de
Janeiro, Minas e So Paulo, no faltando o batalho dos
henriques porque as tradies da guerra holandesa associavam
intimamente no esprito pblico as trs raas que nela
tinham combatido juntas pela restaurao portuguesa e
entravam agora a inflamar a nfase da retrica patritica
expressando-se pela voz da independncia, a qual, "mais
poderosa que o trovo, retumbava do Amazonas ao Prata", com
a variante, geograficamente exagerada, "do equador ao plo".
O Espelho, ao descrever os
festejos da Aclamao, o menos que chama Dom Pedro de
numen tutelar, expresso muito usada entre os
publicistas brasileiros, e compara-o com os maiores vultos
da histria - Alexandre, Augusto, Tito, Lus, no sei se So
Lus ou Lus XIV - perdendo positivamente a fala como diz
("as vozes expiram na garganta") quando trata do esplendor
do golpe de vista do espetculo, j pelo luzimento da tropa
a postos, j pelas cores vivas das colchas dependuradas das
janelas e das varandas onde se ostentavam senhoras, muitas
delas vestidas de verde e de amarelo.
O juramento imperial era o que se poderia
denominar a pedra de toque, do ponto de vista poltico, do
regime que se a inaugurar. Os liberais pretendiam
expurg-lo de todo carter aristocrtico e sobretudo excluir
ab initio as prerrogativas da realeza de um sabor que
lhes parecia arcaico, o veto absoluto por exemplo. Na
reunio da cmara municipal do dia 10 de outubro ficara
porm decidido, por proposta de Pedro da Costa Barros, major
da brigada nacional da marinha, que se era "conforme a todos
os slidos princpios do sistema convencional at
reconhecido pelas Cortes de Lisboa, ser livre, quando alguma
nao muda o seu pato social e forma de governo, separar-se
qualquer parte da mesma nao se as condies do novo pacto
lhe no agradarem - o que acontece ao Brasil relativamente a
Portugal, por serem manifestamente lesivas as condies do
mesmo pacto social que este lhe prescreve - no lhe parecia
ser o dia 12 prprio para S. A. Real prestar o juramento do
estilo, por ser costume prestar-se este no ato das coroaes
dos monarcas, ato que se no verificava naquele dia, devendo
reservar-se a prestao do mesmo juramento para o dia da
coroao do mesmo senhor".
Costa Barros mostrou-se assim o que hoje
denominaramos um tradicionalista, mas a sua sugesto foi
por todos aprovada e a ata da sesso traz como primeira
assinatura a de Jos Clemente Pereira, que era dos
constitucionais rubros. O que dois dias depois se inclua na
cerimnia da aclamao era a aceitao do ttulo imperial
mediante a investidura nacional que estabelecia a
legitimidade do regime aos olhos da faco avanada, ao
passo que a consagrao de um novo trono o tornava aceitvel
aos que se apegavam ao passado, no que este pelo menos
oferecia de garantia da ordem e preservativo da anarquia.
Nas curtas palavras proferidas pelo
Imperador fez-se mesmo abstrao de toda referncia futura
lei orgnica, limitando-se Dom Pedro a declarar que aceitava
aquele ttulo soberano, com a restrio de constitucional,
porque estava convencido de que tal era a vontade da nao,
faltando, pela escassez do tempo apenas, as representaes
de certas cmaras a juntar s que tinham sido apresentadas,
e tendo-se pronunciado favoravelmente a respeito o conselho
de Estado e de procuradores gerais.
* * *
A crise poltica comeou pois
verdadeiramente na ocasio da aclamao, ou melhor comeara
poucos dias antes da solenidade, pretendendo a faco
democrtica cercear a autoridade imperial no prprio momento
em que ela era conferida, o que s no tentou realizar
porque o prncipe e seu ministro, sabedores de suas
intenes, tomaram precaues para tolh-las e iludir
semelhante propsito. A questo era de quem predominaria - o
soberano ou a assemblia, a coroa ou a constituio?
Os democratas entendiam que o prncipe
devia subordinar-se lei orgnica adotada, mais do que
isto, elaborada pela nao. Os conservadores, como Jos
Bonifcio, no queriam ver o soberano simples mandatrio da
nao, antes queriam repartir a soberania nacional entre
monarca e parlamento, cabendo muito embora ao monarca a sua
parte pela investidura de uma autoridade superior ao
parlamento que era a vontade direta do povo, manifestada por
uma espcie de plebiscito que lhe confiara a direo
executiva dos negcios pblicos, ao passo que aos
representantes eleitos da nao ficava exclusivamente
reservada a tarefa legislativa, isto , a redao dos
estatutos a serem aplicados pelo executivo. Estabelecia-se
deste modo um pacto em virtude do qual o soberano a nada se
obrigava seno a rejeitar aquilo que fosse inadmissvel,
conservando-se portanto a porta aberta para as suas
afirmaes eventuais de autoridade que contrabalanassem as
demasias da liberdade.
Assim definia Jos Bonifcio a Mareschal
a situao (294) ao explicar-lhe a necessidade da
soluo da completa independncia e fazendo valer a presso
que sobre ele e o prncipe tinha exercido o conhecimento de
certos fatos, entre outros a existncia de um tratado
ofensivo e defensivo de Portugal com a Espanha contendo o
compromisso da devoluo de Montevidu, a negociao de um
emprstimo na Inglaterra, dando o governo constitucional em
garantia a ilha da Madeira para lhe serem facultados os
recursos de debelar a resistncia brasileira, e um projeto
de manifesto do rei contra seu filho a que Dom Joo VI seria
coagido a dar sua assinatura.
Jos Bonifcio insinuava alm disso ao
principal dos governos da Santa Aliana que a aclamao
imperial seria inevitvel uma vez que se reunisse no Rio de
Janeiro a assemblia representativa, e que melhor era que se
fizesse da maneira por que ia ter lugar - este colquio
ocorreu no dia 11 noite - sem colocar numa dependncia
perigosa o Imperador, que assumia tal ttulo merc da
grandeza territorial do pas, um dos maiores da terra.
O diplomata austraco estava de resto
perfeitamente convencido de que o ministro brasileiro tinha
razo, ou pelo menos de que a aclamao era fatal, o que lhe
dava razo, e informou mesmo a sua corte de que o entusiasmo
popular fora muito grande, especialmente quando Dom Pedro e
Dona Leopoldina apareceram na varanda do palacete do campo
de Sant'Anna e mostraram multido, erguida nos braos
paremos, a princesinha Dona Maria da Glria.
O povo no cuidava de melindres
constitucionais: um prncipe desempenado e garboso, capaz de
belas atitudes, produzia mais apelo sobre sua imaginao do
que qualquer teoria de direito pblico. Para aumento da
satisfao geral, recebeu-se de Lisboa poucos dias depois, a
16 de outubro, a notcia de que as tropas destinadas
reconquista do Brasil tinham desembarcado dos navios que as
deviam transportar, o que levava a crer na desistncia pelas
Cortes do seu plano.
Mareschal consolava-se facilmente da
independncia, que era em suma toda em prejuzo de Portugal,
com a convico de que se achava possudo de que cara
inteiramente qualquer idia de repblica tanto assim que a
Monsieur d'Andrada adviera como que uma reconquista
do seu prestgio que os seus inimigos tinham procurado
marear. E tanto melhor, ajuntava o diplomata, porque, a
despeito da sua petulncia e do seu ardor, era ele
incontestavelmente um estadista de recursos e sinceramente
devotado a seu amo e causa monrquica, donde o empenho da
oposio em faz-lo sair do gabinete.
As formas ou convenes, quando no fosse
a cautela inerente profisso, obrigavam porm Mareschal a
no prejulgar os sentimentos do seu governo com relao
transformao poltica de que o agente estrangeiro estava
sendo testemunha; pelo que este se abstinha de dar ao
prncipe e princesa tratamento de majestade e, para evitar
dificuldades dai procedentes, deixava de comparecer na
corte; sem que isto implicasse sombra de desrespeito ou
desafeio para com as augustas personagens, pela ventura
das quais fazia os votos mais calorosos.
Nos conselhos diplomticos da capital
brasileira no reinava a tal propsito uniformidade de
opinies. O cnsul geral e encarregado de negcios da Frana
Maler, que era um esturrado, dera por terminadas as suas
funes polticas e julgava apenas subsistentes nas relaes
mercantis que no excluam mais da corte, como antigamente,
os respectivos agentes comerciais, pelo que os cnsules
gerais ingls e russo, Chamberlain e Langsdorff, assim se
considerando apesar de igualmente encarregados de negcios,
tinham comparecido ao beija-mo do Pao, com isto armando,
no dizer de Mareschal, popularidade brasileira.
Langsdorff, que se interessava pelo pas cientfica e
economicamente, estudando-lhe a histria natural e
ocupando-se de colonizao europia nas suas terras,
aconselhara-se a respeito com Jos Bonifcio e compareceu
at no campo de Sant'Anna.
Se bem que conservasse muitos dos
atributos essenciais e todos os atributos exteriores da
realeza, Dom Pedro no criou logo uma nobreza especial, pelo
que o felicitaram publicamente os democratas, que apontavam
a casta aristocrtica como encerrando o princpio corruptor
das naes. difcil compreender como eles harmonizavam o
seu republicanismo - pois que negavam a coexistncia de
outra soberania com a soberania popular - com a exaltao do
dinasta que outra coisa no era Dom Pedro, no obstante o
carter democrtico que pretendiam emprestar sua ascenso
ao trono. Verdade que no ntimo do seu pensamento o trono
constitua uma soluo temporria, e no dizer de Joo Soares
Lisboa, frente do Correio do Rio de Janeiro,
imperadores desse quilate equivaliam a presidentes, sendo
alis um "Dom Pedro I sem segundo".
Entretanto instigado pelo seu ministro, a
quem os adversrios no poupavam e pensavam em depor por
meio de um pronunciamento que os levasse ao poder, Dom Pedro
patenteava no renunciar sua funo suprema, tanto mais
prestigiosa quanto na sua modalidade se combinavam neste
caso a feio tradicional e a feio popular. Nem hesitou em
aprovar uma srie de medidas contra os seus apologistas
radicais. A 21 de outubro o Correio do Rio de Janeiro
era suprimido e dado ao seu redator o prazo de uma semana
para sair do Imprio; Jos Clemente Pereira era intimado a
solicitar sua demisso; o padre Lessa era desterrado para
vinte lguas da Corte, e a vrios militares eram dadas
comisses no interior, entre os ndios.
Jos Bonifcio quis porm forar a nota,
conquanto no conselho dos procuradores j se tivessem
levantado protestos pelos seus atos arbitrrios, sem forma
de processo, contra a liberdade de imprensa e de reunio.
Entendeu ele englobar nas detenes os seus inimigos
paulistas, a comear pelo Francisco Incio da bernarda,
e pr cobro atividade do Grande Oriente, que o
desfeiteara, vibrando contra o mesmo a deliberao do seu
imperial gro-mestre, o que era um refinamento de vingana.
A fraseologia era a do costume,
qualificando-se os contrrios de "perversos" e os seus
projetos de "tramas infernais", e lanou-se a idia de
decretar a lei marcial contra as chamadas "chicanas
forenses".
Tudo isto, enxergando-se por trs da
divergncia poltica o elemento pessoal que mais a azedava,
determinou prontamente uma reao e Dom Pedro, cuja natureza
era acessvel verdade, despontando facilmente no seu
esprito, amigo de novidades, assomos de deciso
voluntariosa e qui por vezes injusta, mas tambm impulsos
de demncia e magnanimidade, caiu em si quando viu trs
procuradores no conselho protestarem contra as medidas de
rigor e ouviu falar em peties monstros em favor do
jornalista condenado. Ledo, que pretendera pr o mar de
permeio depois que Dom Pedro sobre ele desfechara
verbalmente a sua clera, correndo que emigrara para Buenos
Aires, no o fez porque o soberano se mostrou disposto a
deix-lo ficar em paz.
A reabertura do Grande Oriente foi
ordenada, Dom Pedro no podendo esquecer que, na frase de
Mareschal (295), o ato do dia 12 fora
entirement leur ouvrage. O certo que a 27 de outubro
j Jos Bonifcio informava o agente diplomtico austraco
de que fora aceito o seu pedido de demisso apresentado ao
Imperador e motivado pela discrepncia de vistas. Na verdade
Dom Pedro e Dona Leopoldina tinham ido repetidas vezes
solicitar do ministro que no desamparasse seu posto de
responsabilidade, mas tambm de confiana. Mareschal
reputava o Prncipe capaz de desenvencilhar-se num momento
de apuro dos laos perigosos em que se deixara enlear e que
prolongavam uma situao ambgua, pois no havia dvida que
o "clube obscuro de franco-maonaria" a que se referia
Mareschal tinha realmente tomado a iniciativa da aclamao
imperial, mas com isto lucrando o partido democrata que to
bem se poderia denominar republicano.
Por outro lado a luta poltica que assim
se esboava era de feitio a aular a ndole apaixonada de um
jovem cedo sacudido no terreno de ao e que em alguns dos
seus mpetos dava antes mostra de carecer de influncia
moderadora no exerccio da "maior amplitude de poder"
(296) com que o fora brindar o povo, para que ele
encarnasse superiormente a defesa dos seus direitos.
* * *
O novo ministrio organizou-se com certa
dificuldade, porque mesmo havia a impresso de que seria uma
coisa muito transitria. Foi Jos Bonifcio substitudo nos
negcios do imprio e estrangeiros pelo conde da Palma, por
haver recusado o lugar o baro de Santo Amaro; Caetano Pinto
na justia pelo chefe de polcia Joo Incio da Cunha
(futuro visconde de Alcntara); Martim Francisco na fazenda
pelo desembargador Tinoco da Silva; Lus Pereira da Nbrega
na guerra pelo coronel Joo Vieira de Carvalho (depois
marqus de Lages), e Farinha na marinha pelo chefe de
esquadra Lus da Cunha Moreira, veterano da expedio de
Caiena e depois baro de Cabo Frio:
Nada havia que dizer contra a honradez
deste pessoal escolhido para a alta administrao, mas o
prestgio dos Andradas superava a boa reputao dos seus
substitutos e, como sempre acontece, a opinio, que neste
caso lhes era positivamente favorvel, recebeu estmulo de
uma propaganda eficaz. Mareschal na sua correspondncia,
escrita sob a impresso imediata dos acontecimentos que se
iam desenrolando, no mostrava confiana no futuro desse
gabinete sem cor e sem fora no seu dizer; composto de
verdadeiros verbos de encher (pices de remplissage).
O nico dos ministros que no era uma personagem nula e
desconhecida era o conde da Palma, o qual alis parece que
nem chegou a tomar posse do cargo: galant homme, dele
escrevia o diplomata austraco, mas que dera mostras na
Bahia, ao romper a crise constitucional, de no ter energia
para arcar com as situaes anormais.
Jos Bonifcio retirara-se entretanto
para uma chcara em Botafogo, seno amuado, pois que no
recusou seu concurso para a escolha dos novos ministros,
pelo menos despeitado e patenteando com esse afastamento o
desfavor em que cara em resultado das intrigas armadas em
redor do trono a fim de monopolizar o valimento imperial,
da resultando o que Melo Morais (297) denominou
"funesto choque de animosidades e interesses, uns cidados
se esconjurando contra suspeito despotismo, outros contra
presumido democratismo".
Na cidade entrou logo, a 29 de outubro, a
reinar bastante agitao, julgando-se os liberais ameaados
nas suas franquias e poucos seguros nas suas garantias
porque os andradistas contra eles aularam a populao,
tratando-os de republicanos e carbonrios, acusaes que
ainda correspondiam a pecados graves em vista do
recentssimo consrcio da realeza, personificada em Dom
Pedro, com a autonomia nacional que o ministro da regncia
encaminhara com tanta constncia quanta felicidade.
Jos Bonifcio e Martim Francisco no se
tinham arredado do poder sem a inteno de volverem aos seus
postos, tanto mais quanto a separao se efetuara em bons
termos. tambm natural, que Dom Pedro se no conformasse,
passado o primeiro momento de uma aquiescncia determinada
pelo desejo de superar a exacerbao partidria que via
crescer, com a ausncia do seu acatado conselheiro numa
emergncia semelhante, quando ainda no fora reconhecido o
seu trono nem pelas potncias aliadas, nem muito menos pela
antiga metrpole. Os da faco adversa aos Andradas tinham
igualmente prestado seu apoio soluo monrquica, mas eram
em suma demagogos contrrios a uma coroa bem provida de
prerrogativas e de preferncia pautavam seu modelo pelos
modelos peninsulares, execrados pelos que conservavam o
respeito da autoridade tradicional.
Ainda era cedo para nutrir o soberano
receios de tutela. As representaes em favor da
reintegrao dos ministros demissionrios atingiram pelo
esforo dos seus amigos considerveis propores; a
fraseologia apologtica desmanchou-se: os Andradas eram os
Franklins brasileiros, os anjos tutelares da regenerao
poltica, a nica ncora de salvao do Imprio, os Atlas
que carregavam nos seus ombros o peso da repblica, os
traumaturgos da independncia. "O Imperador pareceu qual
Csar circunvalado no Capitlio" - como Melo Moraes define
a situao.
O gosto pelos pronunciamentos militares,
introduzido quando o constitucionalismo portugus se
estendeu ao Brasil, fazia com que fossem de temer novas
manifestaes dessa ndole e se por um lado o democrata
Nbrega era popular entra a tropa, por outro os amigos dos
Andradas no se descuidaram de chamar a si oficiais da
guarnio para que se juntassem as peties respeitosas
dirigidas ao soberano para repor nas suas pastas os
ministros "benemritos da ptria" e punir os conspiradores
desleais, que no tinham hesitado em semear a desunio na
alta esfera governativa.
O povo seria antes sincero no apego que
evidenciou por nomes feitos, cuja obra histrica era visvel
mesmo aos olhos dos ignaros, e o Imperador no foi de
encontro aos seus prprios sentimentos anuindo ao que dele
reclamavam. Segundo narra a Gazeta do Rio de Janeiro
(298), ao ir a casa de Jos Bonifcio, que encontrou
deserta, e ao ver das janelas a "turba imensa que se
apinhava e que mais e mais se aumentava, resolve ir de novo
pessoalmente no j com motivos prprios, mas com motivos
gerais da necessidade pblica, debelar a pundonorosa
resistncia, que at ali havia encontrado naqueles nimos
por extremo sensibilizados".
Saiu o Imperador, acompanhado pela
Imperatriz, em demanda do retiro do seu ministro; seguia-os
grande magote popular. Em caminho, na rua da Glria,
encontraram-se com outro magote que entre aclamaes - em
charola, escreve com pouca gravidade o cronista Melo Moraes
- trazia para a cidade os dois Andradas triunfantes. Vinham
ambos a cavalo e Dom Pedro apeou-se do carrinho para abraar
Jos Bonifcio e o irmo e perguntar ao primeiro se no
havia previsto bem a oposio popular sua sada?
Porto Seguro, sempre hostil aos Andradas,
quer que o encontro com o casal imperial tivesse sido casual
e descreve, com intuito de ridicularizar, o espetculo do
ministro reintegrado debulhado em lgrimas, prostrado de
joelhos diante de seu amo na casa do largo do Rocio, esquina
da rua do Sacramento, onde este de novo compareceu, e dando
expanso ao seu reconhecimento com as mos levantadas para o
cu. Era natural a emoo de Jos Bonifcio diante do que se
passava, mas Mareschal na sua correspondncia diplomtica
no insere trao algum grotesco. Jos Bonifcio conservou
suficiente domnio sobre si mesmo para declarar da janela,
onde apareceu com Dom Pedro, que s aceitava a reintegrao
com a condio de serem punidos os culpados, e o seu
reconhecimento para com o soberano que o estava por tal modo
distinguindo traduziu-se nos vivas que soltou e a que o povo
correspondeu com jbilo. Vivam Pedro primeiro, segundo,
terceiro, quarto, bradou ele, aludindo ao Pedro sem segundo
dos democratas (299).
O gabinete recomps-se com os dois
Andradas e Caetano Pinto, que partilhou das ovaes,
continuando os dois novos ministros da guerra e marinha.
Como intendente geral da polcia ficou provisoriamente o
desembargador Frana Miranda. Jos Bonifcio queria
sobretudo ver-se livre dos seus adversrios, desembaraar-se
de uma oposio incmoda porque tendia a colocar sobre o
tapete da discusso, apesar do protesto escrito de Ledo, de
que trabalhara com afinco pelo sistema monrquico, a
essncia mesma do regime que o paulista ajudara tanto a
fundar. No decreto de reintegrao, de medo de parecer haver
cedido ao povo com desprestgio da coroa, o Imperador afirma
antes a sua prerrogativa constitucional de nomear ou demitir
livremente os seus ministros, segundo as convenincias do
servio pblico, e at declara que aceitou as demisses
solicitadas pelos dois Andradas e pelo seu amigo Caetano
Pinto para que o povo pudesse pronunciar-se a respeito,
"fazendo justia probidade e virtude" e condenando "os
autores desta vil cabala com que eles pretendiam
engrandecer-se e promover tumultos, dissenes e finalmente
a guerra civil".
claro que semelhante consulta ao povo
no passava de um pretexto para dar realce concesso, que
s se no pode dizer arrancada porque da parte de quem a
fez, havia para isto boa vontade. Melhor fora ter deixado a
as coisas. Jos Bonifcio devia ver logo, alis, que uma
devassa no daria o resultado buscado, por no ser possvel
chegar a provar nada de positivo. O crime, se o havia -
crime poltico bem entendido -, estava nas intenes mais do
que nos atos, e os acusados eram pessoas de recursos
intelectuais, que sabiam defender-se, sem falar na roda que
lhes seguia o parecer.
O governo estava de antemo certo de
encontrar resistncias ao pr em prtica sua perseguio.
Entretanto no esmoreceu, denunciando por uma portaria
dirigida a todas as juntas provinciais e cmaras municipais
o "partido anarquista descoberto pelo povo e pela tropa a 30
de outubro". A portaria no s apontava o perigo, como
indicava os meios de prevenir-lhe os efeitos mediante a
vigilncia e priso dos emissrios despachados do foco da
conspirao, cujos dirigentes eram mandados deter apesar de
exporem - Nbrega alm de Ledo - a razo que os assistia em
arredarem de si as acusaes de meditarem e promoverem a
runa de instituies de comum acordo adotadas. Nbrega foi
levado para a fortaleza de Santa Cruz; outros, como Ledo e
Jos Clemente, homiziaram-se no primeiro momento, o que
constitua para Jos Bonifcio a melhor das solues porque,
conforme escrevia Mareschal para a sua corte (300),
fcil verificar pela justa ansiedade do ministrio de pr
os acusados distncia que o processo a nada pode conduzir.
Pessoalmente Dom Pedro ganhava em relevo
pela chegada Bahia nos comeos de novembro dos reforos de
Lisboa, que se supusera de vez suspensos. Eram socorros
militares, que iam dar novo alento a resistncia portuguesa
em So Salvador e navais, que representavam uma ameaa para
toda a costa. O Imprio sentia-se falho de meios de ao e,
com receio de que os dos contrrios ainda se acrescessem com
as tropas portuguesas de Montevidu, onde Lecor, fiel a Dom
Pedro, fazia causa a parte, tendo estabelecido em So Jos
seu quartel-general, mandou o governo do Rio de Janeiro, a
14 de novembro, os transportes necessrios para conduzi-las
de l para a Europa.
O governo do Rio de Janeiro sentia-se
porm em dificuldades no fixar sua atitude para com Portugal
e politicamente, neste terreno caminhava s tontas. Pensara,
informava Mareschal para Viena, em declarar abertamente a
guerra contra a ex-metrpole, outorgar cartas de corso e
tratar com toda severidade os portugueses residentes no
Brasil que fossem hostis ao Imprio, assim se prevenindo,
pelas medidas prescritas, contra os constitucionais
portugueses e espanhis que as perturbaes polticas nos
seus respectivos pases fizessem porventura emigrar para a
Amrica. Um senso mais vivo das realidades depressa
convencera porm o ministrio brasileiro de que uma
declarao de guerra era ociosa, desde o momento em que
existia um estado de hostilidades; que a instituio de
corsrios produziria prejuzos comerciais de que sobretudo
se aproveitariam aventureiros estrangeiros, mas no
contribuiria para se formar uma marinha nacional; e que
providncias opressoras sem uma razo de salvao pblica
tornariam odioso o governo e s fortaleceriam o partido
democrata (301).
* * *
A devassa foi reclamada pelo prprio Ledo
na representao que dirigiu a Dom Pedro a 2 de novembro e
na qual censura seus adversrios no poder pelo esquecimento
que suas arbitrariedades evidenciavam das frmulas e dos
princpios constitucionais, necessrios para chamar ao
grmio da unio poltica, "que ainda flutua nos embates da
contradio entre os povos das provncias" aquelas "cuja
acesso ao nosso sistema no est geralmente decidido". Os
acontecimentos de 1823 e 1824 vieram depressa dar razo ao
leader democrata, que no referido documento desafiava
seus perseguidores a exibirem "o corpo de delito sobre que
assenta sua nojosa e negra inculpao a tal respeito".
Ledo achava que ele era quem tinha razo
de insurgir-se contra prticas anrquicas dos detentores da
autoridade, como por exemplo as "assemblias tumulturias",
segundo denomina os ajuntamentos populares promovidos contra
ele e seus amigos defronte da casa onde se reunia o senado
da cmara. Requerendo uma ao criminal, conforme a lei, a
fim de ser apurada sua conduta, mostrava ele impavidez
fsica e moral, no se deixando acobardar pela atitude de
manifesta parcialidade adotada por Dom Pedro para com o seu
ministro, de quem dissera o soberano ser o dia de triunfo e
caber todas as homenagens, recusando por se permitir que o
povo puxasse o seu carro desde o ponto do encontro com Jos
Bonifcio at o corao da cidade.
A devassa foi no prprio dia mandada
abrir, mas o governo como que antecipava seu resultado
qualificando as pessoas contra quem ia proceder o inqurito
dos representantes do poder judicirio de "facciosas e
perturbadoras da ordem" - "j infamadas na opinio pblica"
na expresso de Cairu. E sem esperar mesmo pela palavra da
justia e sem que se os pudesse argir de flagrante delito,
foram deportados para o Havre, a 20 de dezembro, Nbrega,
Jos Clemente, afinal encontrado, e o cnego Janurio da
Cunha Barbosa, de regresso de Minas. Ledo conseguiu
permanecer acoutado at poder embarcar s ocultas para o Rio
da Prata numa embarcao sueca, pela proteo do respectivo
cnsul que assim o livrou das tramas dos aduladores dos
Andradas e das violncias dos capangas oficiais.
A vrios outros se estendeu a
malevolncia do governo, inculpando-os de quererem que fosse
adotada provisoriamente a Constituio Portuguesa quase
integral enquanto os representantes brasileiros no
elaborassem a do Imprio. Os acusados foram contudo
declarados afinal inocentes por falta de provas, apesar dos
esforos do juiz sindicante para culp-los, aduzindo adrede
fatos que os perseguidos taxaram de "desfigurados e
falsificados" (302).
O bom senso alis indicava que os mesmos
que a 12 de outubro tanto se tinham assinalado na aclamao
imperial, no se haviam de por dezoito dias depois a
conspirar para destrurem sua prpria obra. Sua questo era
no com o imprio: na sua representao a Dom Pedro, Ledo
at aventa que "os povos querem ser bem governados e no se
importam com formas de governo". Ele combatia os Andradas,
que Armitage acusa de terem-se tornado arbitrrios e
intolerantes quando empolgaram o poder (303) .
As testemunhas, visivelmente preocupadas
em agradar o poderoso ministro reintegrado no favor
imperial, depuseram sobretudo que tinham ouvido este ou
aquele Ledo ou Jos Clemente especialmente desacreditar Jos
Bonifcio, sugerir a convenincia que haveria em derrub-lo,
qualificar de desptico seu governo, aspirar por uma mudana
radical em vez do prolongamento do passado. Tudo se cifrava
pois em conversas, quando muito em propsitos, no se
mencionando propriamente gestos positivos de tentativa
armada contra as instituies.
A testemunha mais fidedigna e menos
sujeita talvez a influncia dos Andradas foi Antnio Teles
da Silva, futuro marqus de Resende, fidalgo da casa de
Penalva, camarista predileto e amigo dedicado de Dom Pedro.
Este falou sem hesitar em conspirao tramada nos clubes
secretos em que, sob a denominao de "franco-maonaria" se
reunia o "nefando partido, cujos infames membros tinham por
fim a destituio do governo monrquico no Brasil, pela
introduo dos princpios demaggicos e anrquicos que se
contm nos estatutos das sociedades dos carbonrios,
radicais, comneros e cavaleiros de liberdade, nomes da
mesma seita em diferentes pases, que parecendo-se com a
sociedade dos pedreiros livres nas exterioridades, diferem
sumamente nos fins e alvo a que tendem".
Teles da Silva era porm duplamente
suspeito para o caso: em primeiro lugar, como ele prprio
declarou no seu depoimento, tinha profundas queixas dos
acusados, os quais haviam pretendido macular sua reputao
por motivo de discordncia de opinies polticas; em segundo
lugar tal discordncia era irreconcilivel, porque Teles da
Silva aborrecia de corao O sistema constitucional, tanto
que se referindo assemblia representativa do Brasil que
se ia reunir, no diz que ela teria que elaborar a lei
orgnica da nao, mas sim que havia de coordenar as leis
fundamentais do Estado. No seu entender eram entretanto os
contrrios que ignoravam o verdadeiro esprito
constitucional e advogavam a adoo de princpios quimricos
"inconjugveis com a forma de um governo monrquico e que,
apresentando uma aparente perspectiva de beleza considerados
teoricamente, so realmente inexeqveis na prtica".
O mais que se apurou contra os democratas
foi que se declaravam avessos a despotismos e que no
queriam absolutamente ser tidos como corcundas. No
fundo v-se a inteno dos seus inimigos de
irremediavelmente malquist-los com o Imperador; insistindo
em que, por ocasio da publicao dos primeiros decretos das
Cortes, o pensamento dos democratas no foi resistir, nem
representar em contrrio, antes obedecei; organizando-se de
acordo com as recomendaes de Lisboa uma junta fluminense,
como as havia noutras provncias, tendo esta embora o
Prncipe por Presidente.
Jos Clemente, a figura central do
Fico, teria pois apenas sido um convertido pelo "grande
concurso dos leais habitantes do Rio de Janeiro, que o
constituram rgo de seus puros sentimentos" (depoimento de
Teles da Silva). Tambm pelo que toca aclamao imperial,
a cooperao dos democratas teria sido nula desde o momento
em que tal era a vontade geral das populaes,
manifestando-se em So Paulo, em Pernambuco, nas Alagoas e
noutros pontos "restando unicamente dar aos desejos dos
povos uma forma legal". Ainda assim, recordou a testemunha,
em desabono dos acusados; que no conselho de Estado do dia
11 de outubro, Ledo opinara que o prncipe daria prova da
sua coerncia com os princpios do liberalismo que
professava, deferindo o uso do ttulo imperial para tempo
posterior a instalao da Assemblia Geral e recebendo
portanto dela, que era a representao nacional, a
investidura da sua dignidade.
Teles da Silva e os que com ele
comungavam, enchiam-se de horror, ou pelo menos assim o
diziam, com a doutrina aventada no Correio do Rio de
Janeiro, de que os reis eram "meros administradores do
tesouro das graas e poderiam ser argidos e at refutados
rus pela nao quando se demasiassem na distribuio das
graas".
Algumas testemunhas secundrias falaram
em tratarem os conspiradores "de arranjar uma Repblica"
(depoimento do tenente-coronel Couto de Meneses, natural de
Braga), tirando-se do Brasil o tigrezinho ou o
leozinho, porque ambas as denominaes, alis distintas
na hierarquia zoolgica, eram dadas a Dom Pedro. As provas
porm dessa intentada mudana de regime no passavam do
juramento prvio e incondicional da Constituio que fosse
elaborada pela Assemblia e da retirada do ministrio dos
dois Andradas, a qual os liberais tanto almejavam. O padre
Jos Cupertino de Jesus, paulista residente no Rio de
Janeiro, deps mesmo que num Jantar em casa do cnego
Janurio, a que assistia Ldo, ambos estes corifeus
democratas declararam "que no convinha por enquanto outro
governo seno o monrquico constitucional, e que s depois
de aclarado o povo poderia admitir-se o governo federativo,
imitao do da Amrica Setentrional, atenta a nmia
distncia entre umas e outras provncias".
Isto o que era o lgico e razovel, o
que estava de acordo com as circunstncias que aconselhavam
de preferncia a adoo de um regime monrquico, posto que
assegurando por meio de garantias liberais os direitos
polticos dos cidados e os foros soberanos da nao.
possvel que Ledo tivesse de si prprio a opinio que
exarava quando se gabava de que ele e Jos Clemente seriam
capazes de revolucionar um reino uma testemunha chegou a
dizer ao mundo inteiro -, mas no ficou demonstrado que ele
visasse mais do que a queda dos ministros e que se
abalanasse at a queda do prncipe que fora mais nas suas
mos do que um instrumento de liberdade, que fora um agente
consciente dessa liberdade. Na folha democrtica pelo menos,
na frase da testemunha Vasconcelos Drummond, "as mximas
revolucionrias apareciam com honestas cores".
A 21 de abril de 1823, declararia o
imperador, ao remeter a devassa ao chanceler servindo de
regedor da Casa da Suplicao, que "no queria ver a
inocncia oprimida, nem o Imprio do Brasil perturbado com
faces". Era o ocaso do favor dos Andradas que se
anunciava.
* * *
Prosseguira entrementes o governo
imperial a cercar-se dos atributos da soberania. A 10 de
novembro era o corpo diplomtico estrangeiro na capital
notificado da adoo da bandeira e do tope do Brasil, sem
que entretanto lhe houvesse sido previamente participada
oficialmente a aclamao. No mesmo dia3o4 distribua o
imperador aos regimentos da guarnio do Rio de Janeiro o
novo emblema da ptria independente, depois de benzido pelo
bispo capelo-mor; ratificando-se, por ato de piedade
religiosa, diz Melo Moraes, a proviso rgia de 25 de maro
de 1646 pela qual Dom Joo IV o fundador da dinastia de
Bragana, tomou Nossa Senhora da Conceio por padroeira do
reino de Portugal e seus domnios.
Dom Pedro, invocando sua qualidade de
generalssimo, pronunciou nessa ocasio uma alocuo
vibrante, e os navios de guerra da Inglaterra e da Frana
ancorados no porto do Rio de Janeiro, saudaram com os tiros
das suas peas a bandeira imperial iada no tope de proa,
ato que contudo no envolvia o reconhecimento por parte dos
seus governos e no passava de uma cortesia do hspede
estrangeiro para com o nico pavilho nacional desfraldado.
Os democratas, segundo o depoimento do
capito-mor Jos Joaquim da Rocha, "queriam pr em Dom Pedro
a coroa, cingir-lhe a espada imperial, revesti-lo de todas
as exterioridades magnficas, porque reverte para a nao
tudo quanto se lhe d" e ele no passava a seu ver do
mandatrio executivo da mesma, qual cabia at, por meio
dos seus representantes, conceder as recompensas em vez do
imperador; a quem os servios pblicos eram prestados como
ao chefe do Estado e no a ttulo pessoal. Por isso a
opinio democrtica no aprovou a criao da Ordem de
Cavalaria do Cruzeiro, simultnea da coroao, bem como o
incio da formao de uma classe aristocrtica pela
concesso do ttulo de baro da Torre de Garcia d'vila.
A coroao teve lugar a 1. de dezembro,
aniversrio da restaurao portuguesa do senhorio da Espanha
associada com a Casa de Bragana, e foi um misto do
cerimonial usado na sagrao de Napoleo em Notre Dame e dos
imperadores da ustria em Frankfort, combinao portanto de
tradicionalismo e de modernismo revivido dos romanos.
Imitou-se tambm um pormenor da coroao dos reis da
Hungria, consistindo em fender o ar com o gldio, aluso
nacional ao ttulo de Dom Pedro de defensor perptuo do
Brasil, sua primeira investidura popular tornada hereditria
na sua famlia, o que a despojava do primitivo carter
democrtico se que a no queriam mesmo converter, no dizer
de Mareschal305, numa arma contra a democracia.
O Imperador apareceu vestido de uma
tnica de seda verde golpeada, calado de botas de montaria
com esporas e ostentando um manto de veludo verde forrado de
cetim amarelo, bordado de estrelas e com uma guarnio de
ouro. No se julgando que a nota nacional fosse
suficientemente fornecida pelos diamantes mineiros da coroa
e no intuito de remontar at a nota indgena pela exibio
da arte plumria dos aborgenes, ajuntou-se a indumentria
imperial uma romeira de papos de tucano.
A cerimnia dividiu-se entre o Pao da
Cidade, com as salas forradas de verde e ouro, e a capela
imperial, ligada quele por uma galeria adornada e
alcatifada por onde o povo viu desfilar a corte - frente
os arqueiros com suas alabardas, logo os msicos com seus
tmbales e charamelas, depois o rei de armas, arauto e
passavante, em seguida procuradores gerais das provncias
carregando as insgnias imperiais, moos fidalgos fazendo
sua aprendizagem, dignitrios novos de velhos cargos, como o
de condestvel, preenchido pelo conde da Palma. Atrs do
plio, sob cujo docel caminhava o soberano e cujas varas
eram sustentadas por outros procuradores das provncias,
como que a afirmarem a coeso nacional operada pelo imprio,
marchava o senado da cmara, rematando o prstito nova
guarda de arqueiros.
Aps o ritual eclesistico, precedido de
um sermo de frei Sampaio, que tomou por tema a uno de
Salomo, e concludo pelo Te Deum das solenidades
festivas, volveu o cortejo ao Pao, onde o Imperador,
sentado no trono, firmou o juramento pronunciado sobre o
evangelho, ao p do altar, e depois repetido ao povo, de uma
das varandas, como sendo o cumprimento do que ele prometera.
Esse juramento era de zelar a religio catlica apostlica
romana, sustentar e defender os direitos da nao, manter e
observar a constituio que a Assemblia Legislativa
elaborasse, contanto que ela fosse digna dele e do Brasil.
Ao efetuar-se a coroao que no dizer de
Mareschal despertou vivo entusiasmo, j se tinha recebido a
notcia do xito do combate de Piraj travado a 8 de
novembro e que constituiu uma vitria das armas brasileiras
sobre as portuguesas na terra baiana. O pavilho imperial j
tremulava portanto aos olhos dos brasileiros, nesse
instante, aureolado de glria militar, se bem que algumas
nuvens maculassem o azul do cu da independncia, que
todavia ainda se no enfarruscara.
O imperador recebera a uno sagrada que
o fazia aos olhos dos monarcas europeus soberano legtimo e
aos seus prprios olhos e do seu povo plus que roi:
para que florescesse verdadeiramente um imprio, faltavam
porm as condies necessrias. Sobre que fundamentos havia
de descansar um regime de essncia monrquica posto que
constitucional, onde no existiam uma nobreza privilegiada,
um exrcito disciplinado e um clero sectrio do direito
divino dos reis? O clero brasileiro era das classes
nacionais a mais liberal; o exrcito s se conseguia
reforar com mercenrios; a nobreza no se trazia do bero,
antes se conquistava no decorrer da existncia, deixando de
formar uma casta para significar uma distino individual. O
Imprio foi pois de fato desde o seu incio uma democracia
coroada, em que o executivo comeou por prevalecer e o
legislativo acabou por predominar.
NOTA COMPLEMENTAR
Entre os papis do arquivo particular do
autor, desencaixotados em Washington depois de terminado
este livro, acham-se apontamentos provenientes da leitura da
correspondncia diplomtica inglesa nos anos de 1820 e 1821,
conservada no Record Office de Londres, os quais
confirmam em vrios pontos os dizeres deste livro e que por
isso pareceu acertado resumir nesta nota complementar,
subordinando-a aos tpicos mais importantes.
REGRESSO DO REI OU IDA DO PRNCIPE
Assim, se v claramente que a Inglaterra
desejava que fosse posto cobro a situao anormal de
Portugal que produziu a revoluo de 1820. O despacho de 25
de maio de 1820, dirigido ao ministro Thornton, reza, a
propsito do zelo com que o governo britnico proclamava
meses antes do movimento constitucional de agosto, mas j
depois da sedio de Cadiz que foi a 1. de janeiro,
ocupar-se da segurana do domnio europeu da monarquia
portuguesa:
"No ocultareis contudo a S. M. a
indispensvel necessidade de fazer imediatamente da sua
parte os arranjos necessrios a fim de que, caso sua
majestade no possa em pessoa voltar j para Lisboa, ao seu
governo em Portugal sejam atribudas a relevncia e a
popularidade de ter sua frente um dos membros da famlia
real. O carter provincial que a presente condio faculta
ao esprito de uma nao de h muito acostumada a
considerar-se a sede do Imprio, de natureza a expor os
interesses de S. M. F. aos mais srios perigos".
O despacho informava que Palmela ia
tratar deste assunto, cumprindo portanto ao ministro
britnico no se antecipar, se bem que os deveres
internacionais derivados dos tratados pblicos no
permitissem ao governo de Londres guardar o silncio,
devendo seu representante diplomtico tornar bem patente que
a garantia de integridade territorial a que a Gr-Bretanha
se obrigara para com Portugal se prendia essencialmente a
uma soluo satisfatria de uma tal questo, tanto mais
quanto no fora concedida tendo em vista um estado de coisas
to pouco consoante os sentimentos e os interesses do povo
portugus".
A 31 de julho de 1820 comunicava Thornton
para Londres que na audincia que obtivera do rei para
falar-lhe dos negcios da Espanha e das instrues mandadas
a Sir Henry Wellesley lhe apontara a necessidade e
convenincia de volver a visitar seus domnios europeus.
"Esta sugesto, escrevia o ministro, foi acolhida por S. M.
com sua habitual complacncia, mas num absoluto mutismo, sem
a menor observao". Os negcios da Espanha tinham, na
opinio de Thornton, importncia bastante para que devesse o
rei refletir seriamente em ir pessoalmente ou mandar o filho
para Lisboa, mas "o caraterstico do governo portugus
consistia em ser muito sensvel s primeiras impresses e
gradualmente recair na mesma norma de proceder, desde que
aquelas entrassem a desvanecer-se ou a tornar-se familiares,
a menos que no fossem renovadas por ulteriores impulsos".
Segundo o ofcio de Thornton de 24 de
outubro tratou-se com maior insistncia, por ocasio da
chegada ao Rio de Janeiro das primeiras notcias de Lisboa,
na ida do Prncipe Real, a qual no constitua portanto uma
novidade do momento, antes fora uma hiptese anteriormente
formulada. O ministro britnico achava este alvitre o mais
razovel porque distncia ficava o rei mais livre de
aceitar ou no os acontecimentos e, ao expor a Dom Joo VI o
seu modo de ver, este interrompeu-o confirmando que "sua
sano no poderia assim ser arrancada pelas exigncias
tumulturias de um exrcito amotinado, como na Espanha, ou
com a baioneta nas goelas, como ocorreu ao rei de Npoles".
Oportunamente poderia o monarca dizer o que julgava infrao
aos direitos e prerrogativas da coroa ou invaso de uma
classe social por outra. Haveria assim o ensejo de
elaborar-se uma constituio, cuja modalidade a um tempo
assegurasse a prosperidade e as liberdades do povo sem o
sacrifcio do que fosse essencial conservao da
monarquia.
No prprio dia 24 teve o ministro ingls
outra entrevista com Dom Joo VI, a qual relatava num ofcio
do dia imediato. Prometeu-lhe por essa ocasio o Rei que lhe
mandaria notcias definitivas das suas resolues a fim de
que ele as transmitisse corte inglesa, j tendo contudo
deliberado aceitar a adeso da regncia de Lisboa reunio
das Cortes. Sobre a ida do Prncipe Real que o rei se
mostrava hesitante. Insinuou-lhe Thornton que a junta
governativa de Lisboa devia ser quase inteiramente mudada,
cercando-se o Prncipe Real, cabea da nova regncia, de
homens de talento e comprovada fidelidade as instituies,
como Palmela, os quais indicariam o bem a ser feito e os
males a serem remediados em Portugal.
Neste ponto atalhou o rei: "Bem est; mas
se o povo o aclamar rei a chegada?" - o que no deixava de
ser possvel. "Repudiei veementemente que tal eventualidade
pudesse ocorrer - escreve Thornton haver respondido - no a
julgando absolutamente provvel em vista da grande dedicao
pessoa do soberano. S. M. persistiu todavia em afirmar a
possibilidade dela, dizendo que seu povo poderia acus-lo de
falta de palavra, no tendo voltado para Portugal, de acordo
com sua promessa, quando os negcios da Europa volveram a
uma condio de tranqilidade".
Para Thornton esse temor real fornecia a
chave do enigma e assim o comunicava ele a lord Castlereagh,
ajuntando que os conselheiros brasileiros do rei ou aqueles
que no desejavam ver partir o Prncipe com receio de
perderem por completo sua influncia junto a este, estavam
envidando esforos para incutir no Rei semelhante sentimento
de cime; do qual a sua ndole o tornava suficientemente
suscetvel.
Quatro dias depois declarava El-Rei a
Thornton ser sua inteno positiva mandar seguir Dom Pedro
para Portugal: entretanto no sabia ele ento qual dos
filhos iria, porque tambm se falava em Dom Miguel, ou se
iria mesmo um dos dois. O que verdade que at esse
momento o Rei ainda no dissera a Dom Pedro que nutria
qualquer inteno de mand-lo como seu representante. Sua
natural irresoluo, que se fosse menos se chamaria
prudncia, era justamente na ocasio estimulada pelas
notcias da interveno austraca na Pennsula Itlica por
motivo da revoluo de Npoles, dando-lhe a esperana de que
a Santa Aliana interviria igualmente na Pennsula Ibrica.
A Gazeta do Rio de Janeiro reflete essa persuaso.
Com a chegada de novas notcias de
Lisboa, entrou Thornton a urgir El-Rei a despachar logo o
seu herdeiro, tomando as medidas rpidas e urgentes que o
caso exigia e que ele tinha vindo protelando, pois que
Beresford j fora ao Brasil nesse ano, segundo o ofcio
secreto e confidencial de Thornton de 31 de maio, no intuito
de descrever a El-Rei a deplorvel situao do reino de
Portugal e a necessidade imperiosa de melhor-la: o que a
regncia considerava ser para ela uma tarefa impossvel e
apenas exeqvel regressando Dom Joo VI ou indo encabe-la
o Prncipe Real.
Beresford confessava no alimentar
esperana de conseguir quer uma quer outra coisa,
parecendo-lhe que na primeira se no devia porventura pensar
ento, nem mesmo jamais, apesar do matreiro do rei afetar
saudades de Portugal, que na verdade no experimentava.
Thornton tampouco julgava, realizvel a segunda hiptese, j
pelo cime que ele reputava constitucional da monarquia
portuguesa, j pelo carter mesmo do monarca, que no
gostava de se ver desamparado e muito menos de abdicar da
sua autoridade.
Pretendia Beresford, antes que a
revoluo de agosto lhe cortasse os planos, ser ele o
verdadeiro delegado real. No se contentando, como no Egito
moderno lord Kitchener a princpio, com ser somente o Sirdar
ou comandante em chefe do exrcito, aspirava a participar da
autoridade civil, e participar nesse caso significaria
encarn-la. Seria ele deste modo o que nas margens do Nilo
foi lord Cromei; com voz preponderante no captulo acerca de
todas as matrias do servio pblico. Para ist9,
que era do interesse da Inglaterra, consentia o governo
britnico em que ele se naturalizasse portugus.
O que Beresford particularmente buscava
era a excluso prtica da regncia de D. Miguel de Forjaz,
patriota mais rebelde com quem se no entendia, alegando
para tanto que regentes havia que exerciam simultaneamente
outras funes, as quais lhes permitiam abusarem e oprimirem
a populao. Havia portanto necessidade de uma medida de
incompatibilidade, menos para ele bem entendido. E assim
aconteceu: ao passo que a D. Miguel de Forjaz era vedado
votar nos assuntos militares, contrariando as idias de
Beresford, este adquiria por uma nova carta a suprema
direo do departamento da guerra e voz no conselho de
regncia, onde passaria a ter assento sem ser propriamente
um dos governadores do reino. Tal distino era-lhe
conferida em resultado mesmo do posto com que foi
galardoado, de marechal-general junto pessoa do rei,
dando-lhe o direito de comunicar-se diretamente com o
soberano, sem interveno de qualquer ministro.
Dom Joo VI no suportaria de boa mente
junto a si essa espcie de tutoria, mas no desgostava de
ter longe, ao lado da regncia que o representava, um fiscal
de tamanho prestgio. O conde dos Arcos hostilizara as
pretenses de Beresford, favorecidas pelo contrrio por
Toms Antnio, confidente do monarca. O Rei entrara a
desconfiar de Arcos por ser este o conselheiro de Dom Pedro
e Thornton chegava a informar para Londres ter sabido de
muito boa fonte que aquele ministro no tivera conhecimento
do teor das instrues expedidas regncia de Lisboa pelo
brigue portugus de guerra.
Thornton no formava um alto conceito da
personalidade de Arcos como homem pblico. Nas suas palavras
no possua ele, nem o talento superior que poderia induzir
El-Rei a dominar seus preconceitos pessoais, nem sequer
influncia bastante sobre o seu afeto para convenc-lo de
repudiar semelhantes preconceitos. Entre impulsos agindo em
sentido oposto, receava o ministro britnico que Dom Joo
VI, cujo carter, dizia ele, feito de irresoluo e
incerteza, no adotaria qualquer deciso segura ou pronta ou
mesmo deciso alguma, a no ser sob a ao de uma nova e
violenta emergncia em que toda deciso seria porventura
tardia.
No tocante ida do prncipe no pode em
rigor dizer-se que EI-Rei vacilava, pois que sempre lhe foi
intimamente adverso. Ainda no seu ofcio de 18 de novembro
de 1820 escrevia Thornton que a meno que dessa partida
fizera dias antes fora pouco calorosamente acolhida,
sugerindo-lhe o fato o seguinte comentrio: "Seja que as
pessoas que convivem de perto com S. M. tenham inoculado no
seu esprito um crescente cime de S. A. Real, seja - o que
mais provvel - que os prprios acontecimentos de Portugal
tenham avolumado suas apreenses de que o povo se valha da
presena do Prncipe para aclam-lo rei, a verdade essa.
EI-Rei no me deu ensejo algum de supor que adotara
definitivamente a resoluo de mandar S. A. Real para
Lisboa".
Dom Joo VI ressentia-se alis da
interferncia estrangeira nos assuntos que considerava
domsticos.
GARANTIA BRITNICA
Dizendo-lhe Thornton, no ms de novembro,
que aguardava pelo paquete prximo instrues do seu governo
sobre as medidas que ao governo portugus do Rio urgia
tomai; El-Rei insinuara sua esperana ou desejo ou persuaso
(no pude apanhar a expresso precisa) que no havia da
parte do governo britnico inteno alguma de intervir nos
negcios internos do reino". A esta observao, feita de um
modo frio e seco se bem que despido de mau humor, diz
Thornton, que julgou do seu dever responder que em certo
sentido nunca poderia ser inteno do seu governo
imiscuir-se na administrao portuguesa; mas que no esprito
de boa amizade e tendo em vista a paz e bem-estar do pas
amigo, julgava ser obrigao do governo do seu soberano
oferecer o seu parecer nas conjunturas crticas sobre as
medidas que se afigurassem corresponder melhor aos grandes
fins.
Acrescenta Thornton que no quis dizer
que a garantia concedida pela Gr-Bretanha a Portugal
justificava qualquer interferncia por parte do seu governo.
Nem poderia em rigor afirm-lo, porquanto o despacho de
Castlereagh, de 25 de maio, punha limites aquela garantia,
nele se recomendando, por meio do representante britnico, a
D. Joo VI que se no aproveitasse dos embaraos da
monarquia espanhola para promover seus prprios interesses
na Amrica, sob pena de concitar contra si os soberanos
aliados e at provocar um ataque contra Portugal, o qual
colocaria o governo britnico em situao mesmo de hesitar
quanto propriedade em semelhante caso de tornar efetiva a
sua garantia. Entretanto admitia o gabinete de Londres o
fracasso da mediao assumida pela Santa Aliana entre os
Reis de Portugal e da Espanha e no atribua a culpa desse
malogro ao rei de Portugal.
A 15 de novembro a ateno de Thornton
era chamada pelo Foreign Office para dois tpicos
importantes: o primeiro, que a corte portuguesa no fundasse
sobre o que se denominava a Santa Aliana qualquer
expectativa que El-Rei pudesse graas a ela e por meio dela
reconquistar Portugal aos liberais, sendo tal recurso pura
iluso; o segundo, que no supusesse jamais El-Rei que a
garantia britnica, se aplicava questo de autoridade que
se levantara entre o soberano e seus sditos. No se podia a
esse propsito esperar que a Gr-Bretanha, na hiptese por
exemplo da interferncia de uma terceira potncia como a
Espanha, chamasse a si todo o nus de preservar os
interesses reais contra seu prprio povo e contra os
estrangeiros.
Castlereagh dizia pretender tornar
patente a indispensvel necessidade do rei de Portugal
conformar-se com o que pudesse salvar do naufrgio do seu
prprio poder, por ele exposto a uma completa destruio
pela sua direo dada e por um injustificvel cime de
prestgio britnico, gerando indiferena aos conselhos de
Londres. Tal aviso era dado a Thornton, ou antes lhe era
reiterado, a fim de que os esforos envidados pelo governo
britnico junto a corte de Madri no sentido de mant-la numa
atitude correta, fossem pela corte portuguesa interpretados
de modo a empenhar a solicitude inglesa at o ponto de impor
pela guerra as advertncias feitas.
Achava o Foreign Office preciso
firmar este ponto, pois que por parte de algumas das
autoridades portuguesas se notava como que um desgnio fixo
de considerar por um prisma exagerado o proceder dos agentes
espanhis, lanando assim os fundamentos de uma situao em
que a Gr-Bretanha, em vez de uma auxiliar, como os tratados
a estabeleciam, aparecia como o elemento principal da defesa
de Portugal, no contra uma invaso de fora, mas contra
movimentos revolucionrios de que os compromissos britnicos
nunca tinham cogitado.
Ficava pois destarte previamente
resolvido que a garantia britnica no cobria a questo da
separao do Reino Unido, uma vez que fosse ela posta.
Thornton achava que a revoluo espanhola pouco perigo
oferecia de produzir na Amrica Portuguesa distrbios
polticos para os quais faleciam os elementos. No entanto,
da sua correspondncia mesmo se deduz que uma reao
constitucional poderia surgir a qualquer momento alm-mar,
pois que o assunto j estava fornecendo tema a palestras e
discusses que eram muito fora dos hbitos correntes, s
lhes podendo emprestar vigor o interesse crescente dos novos
acontecimentos na Pennsula e a mal calculada ansiedade do
governo em empatar sua divulgao, e sendo notrio o horror
com que o rei ouvia ou pronunciava o nome de constituio.
Quando se deu a revoluo portuguesa,
Thornton no achou a princpio muito visvel o efeito dela
sobre o esprito pblico no Brasil, mas calculava ser
grande, no dizer do seu ofcio de 18 de novembro. Apenas era
difcil or-la exatamente quem quer que no mantivesse um
intercurso familiar e mesmo confidencial com a gente da
terra. Do que no havia dvida era que o proceder do
governo, reprimindo a circulao das novas da Europa, era
pouco judicioso porque suscitava despeitos e ressentimentos,
e era alm disso ocioso porque as notcias transpiravam
sempre das cartas recebidas e das conversaes que as
propalavam.
A INFILTRAO DO CONSTITUCIONALISMO E O
FUTURO DO REINO UNIDO
A implantao do constitucionalismo era
fatal alm-mar e a incerteza s podia ocorrer quanto ao
aspecto, que assumiriam num futuro imediato as relaes
entre os dois reinos. Castlereagh oficiava a 17 de outubro
de 1820 ao representante britnico em Portugal, Ward, que
Palmela suspeitava, por uma conversa que tivera com dois
membros proeminentes da junta liberal portuguesa, que no
havia um verdadeiro desejo que a famlia real ou qualquer
membro dela volvesse a antiga sede da monarquia. O
constitucionalismo portugus melhor agiria por si s.
Nas cartas de Dona Leopoldina ao marqus
de Marialva, de que possuidor o Sr. Dr. Alberto Lamego, se
encontra o reflexo da incerteza especialmente reinante
acerca do porvir da unio luso-brasileira. A 20 de setembro
de 1821 mostrava-se ela satisfeita da partida, que parecia
ento dever pr termo regncia de Dom Pedro. A 9 de junho,
quatro dias depois do conhecido pronunciamento, escrevera a
Princesa Real a Marialva que melhor era guardar em Paris os
livros de cincias naturais que encomendara, pois que as
circunstncias, "qui me rendent bien, bien melancholique",
lhe aconselhavam isso, "jusqu' ce que je puisse vous
assurer quelle est notre vraie patrie".
As tropas portuguesas provocavam quase
diariamente no seu dizer motins revolucionrios, no se
podendo prever com segurana o desenlace do terrvel
turbilho constitucional, o qual ela considerava perigoso e
de um funesto prognstico apesar de confessar-se "coupable
de sentimens libraux". Sua simpatia pela terra de que seria
imperatriz j se denunciava, achando que o povo e exrcito
do Brasil se compunham de sditos fiis e excelentes, a quem
a fora impunha silncio. A 26 de maro de 1822 mandava ela
ordem para a remessa dos livros para o Rio de Janeiro e
ajuntava uma grande lista de obras de histria, geografia,
viagens e histria natural. O Brasil seduzia o seu gnio
estudioso, que Dom Pedro II herdou, como um terreno fecundo,
mas inexplorado. A 10 de maio a sua carta a Marialva
expressava positivo contentamento de poder devotar-se ao
adiantamento de um pas que sofria do mal da rotina e
carecia de poder livremente expandir sua atividade, para
isto acolhendo sem inveja e sem dio - tais eram suas
expresses - o concurso dos estrangeiros.
Eis como Dona Leopoldina se manifestava:
"Voil une vraie fortune que notre sjour au Brsil est
dcid, pour ma manire de voir et penser en politique,
c'est l'unique moyen de conserver la monarchie portugaise de
sa chute totale; je puis vous assurer que je suis
parfaitement contente, tant reunie a tous les objets que
j'adore, et sachant par les temoignages qu'on nous prodigue
par toute part, que le peuple brsilien est heureux voyant
les efforts et sacrifices, que mon bien aim Epoux fait pour
le bien et tranquillit publique, et reunion de toutes les
Provinces de ce vaste Empire. Croyez-moi que nous Brsiliens
ne serons jamais capables de soufrir les extravagances de la
Mre Patrie, et que nous marcherons toujours le chemin de
l'honneur et fidelit".
A Arquiduquesa da ustria identificara-se
bem com os destinos da sua nova ptria, do que dava
testemunho a ltima em data das cartas adquiridas pelo
referido distinto biblifilo, na qual, de 26 de novembro de
1822, se nos depara o seguinte comeo: "Meu querido marqus!
Segundo o seu desejo, vou escrever-lhe como brasileira em
nossa amada lngua portuguesa..."
APNDICE
O PAPEL DE JOS BONIFCIO NO MOVIMENTO DA
INDEPENDNCIA
Conferncia publicada na Obra Seleta
organizada por Barbosa Lima Sobrinho. INL, 1971.
MEUS SENHORES:
O instinto popular raramente ou nunca se
engana. As suas simpatias e antipatias distribuem-se com
eqidade. No se fez preciso que os estudiosos do passado,
acobertando-se com a indulgncia da distncia no tempo,
proclamassem Dom Joo VI um rei benemrito. O povo j como
tal o consagrara, recusando associar-se as chufas que
durante um sculo lhe tem sido dirigidas pelos polticos
daqum e dalm-mar, apoiados em historiadores novelistas. No
exagero das caricaturas grotescas o bom senso, devia talvez
dizer o bom gosto popular, soube descobrir os traos
genunos da sagacidade e da bondade.
O fato que a memria de Dom Joo VI
vivia cercada de estima quando pretendeu reabilit-la num
assomo de justia a crtica histrica, que mais no fez do
que corroborar uma feliz intuio nacional, da mesma forma
que a crtica filolgica nobilita as felizes expresses
plebias, concedendo-lhes foros literrios. Todos, no
Brasil, tiveram a saudade do rei excelente, antes mesmo que
ele, constrangido, nos deixasse, e, quase um ano depois, o
encarregado de Negcios da Frana, de quem o governo da
regncia nutria queixas por desafeto nova ordem de coisas
que se preparava, fazia notar na sua correspondncia oficial
que os libelos mais descabelados e mais licenciosos sados
dos tristes prelos da Capital - os qualificativos so dele -
poupavam sempre o monarca portugus, a quem nunca deixavam
de referir-se com amizade e venerao.
Outro tanto acontece com Jos Bonifcio.
Aclamado por uns, denegrido por outros, em vida e depois de
morto, o sentimento pblico, quero dizer a voz popular;
atribuiu-lhe a autoria da Independncia, cognominando-o de
seu patriarca. Se alguns ainda lhe contestam, movidos por um
impulso, que s vezes degenera em mania de destruir legendas
e reformar tradies, com a primazia do esforo a
legitimidade do ttulo, ningum ousaria desligar seu nome da
direo do movimento, felizmente iniciado e felizmente
concludo, da nossa autonomia poltica. Seria faltar a
verdade essencial dos fatos.
Outros podem compartilhar da glria, mas
os seus nomes no so como o dele representativos do
acontecimento. Calar o de Jos Bonifcio, quando se trate da
nossa emancipao poltica, seria o mesmo que falar da
Reforma sem mencionar Lutero ou recordar o Ressurgimento
escondendo Cavour.
A teoria dos homens providenciais pode
ter sido suplantada por uma doutrina mais conforme com os
princpios de uma sociologia inspirada na harmonia
biolgica, e, sobretudo, mais adequada s justas
reivindicaes das multides cansadas do anonimato. Os
grandes homens subsistiro na Histria e continuaro a
aparecer no mundo, seno como fatores nicos de
acontecimentos decisivos, pelo menos como representantes
supremos das aspiraes coletivas, em todo o caso, como
entes excepcionais.
Neste sentido continua Jos Bonifcio a
ser um grande homem visto que o Prncipe Dom Pedro aparece
nas suas mos como o instrumento precioso - um instrumento
mgico que fosse dotado de conscincia e vibrasse com
inteligncia prpria - por meio do qual se realizaram as
aspiraes polticas e se preservou a integridade
territorial e moral de uma nao, cujo lugar amplo na
geografia e cujo papel dever ser notvel na histria
universal.
Sabeis todos quem foi Jos Bonifcio. O
vosso intenso e legtimo orgulho paulista dele se desvanece,
como se desvanece dos aventureiros sem temor que rasgaram
largos horizontes continentais populao do litoral e
transformaram em fazendas do interior esses arraiais da
costa, embebidos na contemplao do vasto oceano que lhes
trazia, frescas nas suas brisas as recordaes das aldeias
brancas, da "casinhas da serra" que o poeta mais tarde
cantaria "co'a lua da sua terra".
H que respeitar-vos o sentimento e
partilh-lo. Os bandeirantes paulistas foram os
"conquistadores" brasileiros, os criadores desta ptria que
o ministro de 1822 conseguiu - ele mais do que ningum -
manter ainda sob o cetro imperial de um soberano imaginoso,
j quase um romntico, cheio de vida, com todas as iluses e
esperanas desta, e prestigioso tanto porque nascera
prncipe como porque tinha por si a mocidade, o garbo, a
fora e a exuberncia.
O santista era um sbio, um mineralogista
de merecimento. A poltica foi busc-lo no meio dos seus
quartzos e dos seus calcrios. Latino Coelho, incumbido do
seu elogio acadmico em Portugal, pas ao qual pertence Jos
Bonifcio pelos estudos da sua mocidade e pelas preocupaes
intelectuais da sua virilidade, no-lo descreveu, em seu
soberbo estilo escultural, percorrendo a Europa culta,
centro por centro, ouvindo professores eminentes das
Universidades francesas, alems e suecas, visitando
laboratrios, colees e minas.
A cincia, porm, lhe no consumiu outros
ardores. Foi soldado do batalho acadmico que se formou ao
tempo das invases francesas; a poltica empolgou-o num
instante crtico da nossa existncia nacional, e at o poeta
que versejara a margem do Mondego e na Bertioga reapareceu
no exlio.
Em Bordus, com efeito, no ano de 1825,
foi que Amrico Elsio - ainda duravam os apelidos buclicos
dos rcades do sculo pastoril, num prolongamento patritico
mitolgico - autenticou seus arroubos, colecionando suas
composies de uma inspirao emperrada mas de um estro
sensual:
Se te vejo, as entranhas se me embebem
De inslito alvoroo;
O sangue ferve em borbotes nas veias!
Sou todo lume, fico todo amores!
Ao mesmo tempo que publicava essas suas
cantatas e odes, deixava ele correr o fel dos seus despeitos
nas cartas que hoje so em parte do domnio de toda a gente,
e nas quais se mostra esquecido de quando metrificava em
Coimbra, dirigindo-se ao amigo Armindo:
Ignorados da "turba" viveremos
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridculas
Frenticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.
Jos Bonifcio foi um homem de
sentimentos muito vivos: os seus entusiasmos eram fortes
como os seus dios. Ainda no chegara ao Rio, chamado pelo
Regente para aconselh-lo sobre a organizao do Governo,
que de portugus ia passar a brasileiro, e ajud-lo a por
cobro a uma desordem que tocava em anarquia, e j o
encarregado de Negcios da Frana, instrudo da sua
reputao, o descrevia para Paris como um homem fougueux
et trs ardent. Este foi o seu principal defeito, se
defeito se pode chamar a manifestao irreprimvel de um
temperamento apaixonado.
O referido agente diplomtico, Coronel
Maler; que tambm pecava por arrebatado... nos escritos por
no poder s-lo nos atos, ao transmitir a notcia da
nomeao de Jos Bonifcio (o qual vinha ostensivamente na
qualidade de deputado da junta de So Paulo perante o
Prncipe Regente) para ministro do Interior e dos Negcios
Estrangeiros, ao mesmo tempo que informava a Corte das
Tulherias do bom conceito geral que mereciam os
conhecimentos do poltico, ontem homem de estudo, elevado ao
poder, inteirava-a da fama certa de impetuoso e exaltado de
que o agraciado gozava sem injustia.
Do que nenhuma dvida nutria o
correspondente diplomtico em questo era de que "Monsieur
d'Andrada" tomaria ascendente sobre o esprito de Dom Pedro,
que parecia firmemente disposto a abraar os interesses
nacionais e se tornaria o diretor influente dos seus colegas
de gabinete. Eram estes colegas: Caetano Pinto de Miranda
Montenegro, o antigo capito-general de Mato Grosso e de
Pernambuco, que tivera o nimo de transitar por terra de um
dos seus dois governos para outro, numa dura, posto que
instrutiva peregrinao pelo imenso serto, mas no tivera
nimo igual para abafar a conspirao donde surgiu a
revoluo de 1817, agora, no obstante, alvo da confiana do
Regente e encarregado das dificlimas finanas de um pas de
tesouro exausto; o Marechal-de-Catupo Joaquim de Oliveira
lvares, portugus do velho Reino, casado e estabelecido no
novo, onde combatera na fronteira do Rio Grande contra a
malta de Artigas, e acabava de comandar as tropas
brasileiras reunidas no Campo de Santana, a 12 de janeiro de
1822, para fazerem frente diviso portuguesa de Jorge de
Avulez, e Manuel Antnio Farinha, que, tendo sido o nico do
antigo gabinete a prestar-se a continuar a assinar o
expediente, permanecia como Ministro da Marinha.
Os acontecimentos que originaram a
substituio do gabinete so geralmente conhecidos.
Achava-se o Prncipe no teatro na noite de 12 de janeiro,
quando o foram prevenir da atitude abertamente insubordinada
da guarnio portuguesa que, ameaada em segredo de
desarmamento, entendia protestar contra a humilhao e
jurava carregar com Dom Pedro para Lisboa, assim desmentindo
praticamente o famoso "fico" pronunciado trs dias antes.
As Cortes, no intuito de bem desagregarem
o Reino ultramarino e privarem os sentimentos polticos
brasileiros do seu centro natural de convergncia, tinham
decretado o estabelecimento de juntas provisrias, uma em
cada provncia, correspondendo-se "diretamente" com a
soberana assemblia das Necessidades, e decidido o regresso
Europa do herdeiro da Coroa, a fim de seguir, nos pases
neste sentido mais adiantados, um curso prtico de singeleza
democrtica e de nulidade constitucional. Precisamente
contra semelhantes resolues se rebelaria a junta de So
Paulo, que, movida por Jos Bonifcio, a 24 de dezembro de
1821, convidava a junta de Minas a reunir-se a ela e fazerem
causa comum, constituindo um ncleo de resistncia. Desta
resistncia, por essa deliberao, de sbito o paulista se
tornava a alma.
Ao propalar-se o boato de um motim
incomparavelmente mais grave do que qualquer outro e tinham
sido freqentes desde um ano - presenciado pelo Rio de
Janeiro, a sala de espetculos do Rocio ficou deserta. O
motim, porm, gorou. Os brasileiros acudiram to
pressurosamente aos seus postos que, ao alvorecer, mais de
4.000 homens, em grande parte gente de milcia trazida do
interior, se tinham congregado em armas. Fora foi aos
regimentos de Avulez, em menor efetivo, capitularem e
anurem intimao de retirada para a Praia Grande, donde
rompeu um manifesto, mas nenhuma hostilidade material. Os
nossos movimentos polticos sempre comeam incruentos, como
que assim se denunciando a nossa instintiva repugnncia s
sangrentas discrdias civis.
Se estava vencida na Corte a resistncia
europia - prenncio de uma fcil emancipao da capital -
restava o problema mais custoso, que era o de assimilar o
centro o esprito provincial, e expelir os focos de ocupao
portuguesa que mantinham um desequilbrio nacional,
sintomtico desse perodo de transio poltica. A
cristalizao no podia aparecer perfeita enquanto o
embaraassem matrias estranhas e a primeira coisa a fazer
devia ser elimin-las - pareceu ao naturalista, numa feliz
aplicao ao mundo moral das regras elementares do mundo
fsico.
Jos Bonifcio entrava na poltica mais
ativa que um pas pode comportar, no outono da existncia
humana, com um nome feito no mundo cientfico da poca
durante quadra mais repousada, e uma farta experincia da
vida com que sustentar a agitao que avocara. Tinha 58 anos
em 1821, assistira durante mais de dez na Europa dalm
Pirineus, colaborara distantemente em publicaes especiais,
privara com tericos e industriais de muitos pases, e em
Portugal exercera cargos no professorado, na magistratura e
na administrao. Observara aspectos vrios da natureza e
aspectos vrios da sociedade, adquirira traquejo e nas
idias alcance, consolidara a feio prtica do seu esprito
como lha emprestara a natureza dos seus principais estudos,
e tingira de liberalismo, seno poltico, pelo menos
econmico, o seu cabedal de planos de utilidade pblica.
Talvez fosse, era mesmo, um delineador
mais do que um executor. Porventura lhe faltava em
maleabilidade de ao o que lhe abundava em sagacidade de
pensar. O representante diplomtico americano - e aos
americanos no falta a perspiccia- teve esta impresso do
ministro de Dom Pedro e exarou-a na sua correspondncia para
Washington, onde a encontrei. Para a crise da independncia
Jos Bonifcio foi todavia o homem indicado, o homem
adequado.
Teve habilidade para jogar com as
circunstncias favorveis e teve deciso para arcar contra
as circunstncias adversas, cabendo naquela fase o ser
brusco em algumas ocasies e o ser enrgico em todas.
Depois, quando o aparelho constitucional entrou em movimento
com suas molas ainda perras, que se fazia preciso mo mais
delicada para dirigir-lhe a marcha e ajeitar-lhe o
andamento; no s uma vista afeita aos trabalhos do
microscpio para examinar nos seus menores detalhes a
composio do complicado maquinismo.
O representante da Frana, da Frana dos
Bourbons, o qual no suportava com pacincia quanto
tresandasse a liberal, negava at ao ministro da
independncia madureza nas idias, ordem metdica nos
projetos, o que ele chamava um desenvolvimento sistemtico
no seu conjunto e aplicao, como se naqueles momentos
difceis e mesmo angustiosos, fosse coisa muito possvel a
serena realizao de um programa fixo de planos.
A essas crticas, porm, responde melhor
do que qualquer defesa literria o xito da poltica servida
pelo vosso conterrneo, esse a quem o Coronel Maler
descrevia nos seus ofcios para Paris como "uma cabea
vulcnica apesar das cs, confundindo tudo no falar e no
administrar, ora divagando, ora perdendo o rumo levado pelo
impulso de seu patriotismo exaltado e pelo seu dio s
Cortes". Maler sobretudo se espantava - reputava na sua
frase um fenmeno - de que um homem de sade to precria
como era Jos Bonifcio pudesse berrar havia ento dez meses
(este ofcio de outubro de 1822) sem estar de todo
esfalfado.
O reverso da medalha gravada pelo francs
to lisonjeiro que merece e deve ser conhecido, para honra
do diplomata e para glria do poltico. como se de um lado
o perfil mais duro do personagem acusasse um queixo redondo
e voluntarioso e um nariz aquilino e dominador, e do outro o
rosto de frente deixasse ver uns olhos de expresso bondosa
e uma larga testa inteligente. O artista que o era Maler; em
estilo oficial pelo menos - pe com efeito mais de uma vez
em relevo as ss opinies do patriota, o seu corao
excelente, o seu inexcedvel desinteresse, a sua detestao
dos princpios antimonrquicos, que combatia com furor. A
estava alis um ponto de concordncia, portanto, de simpatia
entre os dois.
No estou fazendo mais do que reproduzir
textualmente os dizeres do Coronel Maler, que das suas
conversas com Jos Bonifcio, e eram freqentes, se julgou
autorizado a concluir a harmonia das preferncias
monrquico-constitucionais do primeiro-ministro brasileiro
com as bases da Carta francesa da Restaurao.
fato que, como governante, Jos
Bonifcio zelou sempre os foros do Executivo e teve a mo
pesada quando se tratava de represso, e pode bem ser exato
o que referia o encarregado de Negcios, de nutrir o
patriarca uma verdadeira ternura dinstica, ele prprio
afirmando no poder ver sem viva comoo as crianas reais,
os pequeninos rebentos nacionais da casa de Bragana. J
tnhamos ento o Imprio, pois que este outro ofcio de
novembro de 1822.
O "Elogio" de Dona Maria I, pronunciado
em Lisboa, em apurada linguagem, no ano de 1817 e no seio da
Academia Real das Cincias pelo seu ilustre scio paulista,
um testemunho considervel em favor daquele ardor
monrquico, do que em ingls se chamaria com mais simpleza e
mais preciso o loyalism de Jos Bonifcio. "Louvar
um soberano virtuoso acender farol em torre altssima,
para atinarem os outros a carreira" - foi, nas suas
palavras, a regra a que obedeceu a elaborao desse
panegrico de encomenda, de uma intensa devoo dinstica,
deve antes dizer-se de uma marcada deferncia cortes no seu
estilo engalanado, nos seus atavios pagos, nas suas
reminiscncias clssicas, nas suas citaes freqentes de
filsofos gregos e romanos, na sua sensibilidade que era
contudo em demasia afetada para no ser exagerada.
Era, pois, Jos Bonifcio um adversrio
declarado das tendncias republicanas, pelas disposies do
seu temperamento tanto quanto pelos conselhos da sua
inteligncia: o ideal consistia ento nas democracias to
liberais que chegassem a ser ingovernveis. No bastava no
entanto sua viso de estadista evitar a repblica.
Ponhamos ao seu crdito que mais urgente e mais necessrio
lhe apareceu manter a prpria nacionalidade brasileira
ameaada de dissoluo.
O regmen no passava afinal de coisa
secundria diante desse magno problema, que, de resto, uma
vez resolvido pelo prestgio do representante da dinastia e
pela convico geral do interesse patritico, assegurava a
um tempo a unio nacional e a estabilidade monrquica.
Antes mesmo de ser ministro de Dom Pedro
e de se transportar para o que devia ser o centro da
nacionalidade em formao, j Jos Bonifcio compreendera
admiravelmente a situao, abraando com olhar agudo toda a
perspectiva. Ao servio do seu ideal, e nenhum mais nobre se
poderia dar do que evitar o naufrgio de uma agremiao
moral e solidria que custara tanto sangue e representava
tantos esforos, pusera ele aquela combatividade que o
levara, professor, a pegar em armas com seus discpulos para
enxotar de Portugal os agressores franceses.
mister ter bem presente que o Brasil
oferecia tentativa de recolonizao das Cortes uma seara
tima de realidades, no s um terreno frtil em esperanas.
Onde quer que se denunciava o maior vigor do elemento
portugus, tanto quanto onde se revelava o maior fermento do
esprito local, na Bahia e no Maranho como em Pernambuco e
no Cear, em todo o Norte enfim, a idia de rompimento com a
capital de origem colonial e de ligao direta com a sede
das Cortes e da realeza, das autoridades supremas da nao
em sua nova classificao hierrquica - as Cortes primando ~
realeza - recebera um acolhimento o mais simptico.
Com ela pensava lucrar os que meditavam a
recolonizao constitucional - muito parecida nos seus
projetados processos com a colonizao absolutista - e no
menos os que aspiravam independncia democrtica, mais
acessvel ou pelo menos mais compatvel com o fato de uma
libertao de que a emancipao com uma monarquia.
O Sul, no obstante a preocupao
regional ser a tambm viva e muito imperfeita a
solidariedade moral, ento impediu a fragmentao do Brasil;
e no Sul foi o vosso conterrneo quem, decidindo a junta de
So Paulo a prestar obedincia ao Rio de Janeiro e
reconhecer a supremacia do Prncipe-Regente "com autoridade
prpria", arrastou as demais divises administrativas para a
esfera de influncia paulista, constituindo esse trao um
primeiro esboo de unio.
A provncia de Minas Gerais, apesar da
sua superior populao, dependia pela sua localizao
central das do Rio e So Paulo, sem cujo acordo ficaria at
privada das suas melhores comunicaes com o exterior.
Paran no existia ainda; Santa Catarina pouqussimo valia
isoladamente, e So Pedro do Sul era por demais despovoado e
exposto s correrias dos guerrilheiros orientais para que
pudesse desprezar o interesse de uma unio. O influxo de So
Paulo estendeu-se at a Cisplatina, onde, a 19 de julho de
1821, ficara admitida, sob os auspcios do conquistador
Lecor, a suserania fluminense na pessoa do prncipe-regente
e depois Defensor Perptuo do Brasil, mas onde era instvel
o equilbrio pelo valor do fator militar portugus.
Jos Bonifcio entrou para os conselhos
de Dom Pedro certo de que a unificao nacional se efetuaria
se a Coroa - e a Coroa estava mais sobre a cabea do filho
que sobre a do pai, coacto pelas Cortes - quisesse
desempenhar o seu papel tradicional de protetora das
regalias populares contra uma oligarquia de adventcios,
como outrora as defendera contra o feudalismo; certo tambm
de que no momento que atravessavam a Europa culta e suas
descendncias, no mais se podia dizer dependncias
ultramarinas, o esprito liberal, um certo esprito liberal
bem entendido, deveria caracterizar a ao da autoridade.
A fora era indispensvel, mas j se no
suportaria a tirania. Acreditava assim Jos Bonifcio na
eficcia de uma legislao esclarecida, produto sadio da
cincia do Governo que, nas suas palavras elevadas e
orientao prtica, devia consistir "em indagar o que pode
ser um Estado para corresponder aos seus mais altos fins; em
conhecer todos os seus recursos presentes e futuros, e todas
as suas faltas atuais". Nisto, como no gosto extremo pelas
cincias naturais, era ele um digno filho do sculo XVIII, o
sculo da regenerao intelectual e do paternalismo
administrativo.
No "Elogio" da "ptima Maria", conforme
apelidava o acadmico a excelsa soberania defunta,
depara-se-nos uma frase que trai a vibrao da alma do que
apenas era ento um homem de estudo, ainda no um homem de
governo, quando tocada pelo af das conquistas morais.
Referindo-se aos decretos reduzindo os segredos dos
acusados, regulando a jurisdio ilimitada da polcia,
declarando e restringindo a jurisdio dos donativos, o
orador acrescentava como comentrio:
Foi esta uma prova mais do
quanto a nossa Rainha desejava condescender com
as novas luzes, espalhadas pela Europa,
comeando assim gradualmente a limpar o edifcio
social da ferrugem de tempos brbaros e escuros.
No deve surpreender-vos que, quem assim
pensava, fosse, caso raro entre os nossos homens pblicos da
poca, infenso instituio servil, que por ele se haveria
extinguido quase simultaneamente com o resto de dependncia
colonial que ficara aps o reinado americano de Dom Joo VI
e a organizao do reino do Brasil. No era oportunista em
tal matria, e se no obteve ganho de causa o ilustre
paulista, em seu adiantado modo de ver neste ponto, foi
porque os acontecimentos decidiram diversamente, no porque
lhe faltassem coragem e vontade.
O predomnio mesmo de Jos Bonifcio no
Governo durou pouco: cessou com a cessao da crise cuja
terminao foi principalmente obra sua. Os Andradas foram
derrubados e votados ao ostracismo quando, por um lado, o
Prncipe, naturalmente arvorado em emblema da unio, mostrou
ter sugado no bero o leite do despotismo, e por outro lado
os elementos radicais, contidos ou contendo-se durante a
luta pela integridade nacional, se no quiseram submeter por
mais tempo, cederam s suas paixes e levantaram suas
resistncias. Colocado entre as duas correntes opostas, no
ponto pior do embate, o estadista da Independncia perdeu o
prumo e desgarrou: tambm estava cumprida a sua alta misso,
que fora a de salvar o Brasil por meio do Imprio
constitucional.
A histria das relaes ntimas entre Dom
Pedro e Jos Bonifcio, entre Telmaco e Mentor, uma
histria ainda por fazer e para a qual faltam infelizmente
as contribuies de carter pessoal que mais interessante a
tornariam. Os Andradas, transformados em "corcundas", depois
da abdicao, partidrios quase nicos no Brasil da
restaurao imperial do Duque de Bragana, cujas tendncias
autoritrias reconheceram afinal quanto se casavam com a
concepo que eles tinham da autoridade, calaram seus
ressentimentos de 1823 e no deixaram revelaes bastantes
ou interessantes bastante.
Um momento houve, que a ningum escapa,
no qual o ministro se imps ao Prncipe como se imps
situao. Dom Pedro procurava com a maior assiduidade e a
qualquer hora o seu conselheiro na modesta casa por ele
ocupada. Maler conta que, passando pelo Rocio a cavalo, na
ocasio de uma dessas visitas, ouvira que um popular, com
aquela zombaria to peculiar populao fluminense e as
mais das vezes apropriada e conceituosa, alcunhava o Regente
de "ajudante-de-campo de Jos Bonifcio".
No faltaria quem fizesse chegar a So
Cristvo ditos semelhantes. Muitos seriam os que, uns por
pura maldade, outros por inveja rancorosa, tentariam
envenenar relaes que eram mais a conjugao de duas
energias do que o encontro de duas simpatias.
S os homens verdadeiramente superiores
aparecem despidos de pequenas invejas, e so rarssimos.
Poucos so tambm os reis que, dotados de imaginao e
atividade, suportam a colaborao de grandes ministros. Ora,
Jos Bonifcio chegara a crescer tanto em popularidade, em
poder e em iniciativa, que ofuscava o trono. Alis, sua
influncia se derivava em boa parte da aura que cercava o
Prncipe-Regente depois das suas manifestaes brasileiras;
assim como o prestgio de Dom Pedro proviera muito do acerto
das resolues promovidas pelo seu conselheiro.
A inteligncia entre estas duas foras
repousava sobre uma base concreta, pois que era recproca a
vantagem; mas ao se separarem, Dom Pedro teve o arranco de
quem sacudia uma canga e Jos Bonifcio a melancolia de quem
lidara com um ingrato, ocorrendo que a ambos assistia a
razo. Um e outro possuam a ndole violenta e o gesto
pronto. A continuao da associao requeria abnegao, que
tendia, porm, a relaxar-se uma vez passada a crise, e
exigia delicadeza, que no era o predicado caracterstico de
nenhum dos dois personagens.
Quando digo delicadeza, quero referir-me,
claro, polidez superficial das maneiras, no
delicadeza ntima dos sentimentos. Jos Bonifcio tinha o
doesto fcil e grosseiro. As viagens pelos pases mais
cultos no tinham envernizado completamente esse portugus -
que o era, de ptria at 1822, de educao e feitio toda a
vida - forte na sua delgadeza, colrico, de poucas
contemplaes estudadas e de bastante jactncia. A sua alma,
porm, tinha vibraes que desciam at s senzalas: alma
fidalga num invlucro comparativamente rstico, o que vale
mais do que o contraste oposto.
Tambm Dom Pedro tinha uns arrancos
brutais que eram antes manifestaes da falta de educao
familiar de que se ressentira a sua infncia, e da
incoerncia, no quero dizer do desbragado do meio em que
desabrochara a sua mocidade; mas no faltava, no podia
faltar uma sentimentalidade rica a quem se despojou
altivamente de uma coroa para ir defender em incertssima
contenda os direitos de uma criana e se prestava a acabar
como regente em nome da filha, tendo comeado a vida pblica
como regente em nome do pai e sido, no intervalo, imperador
e rei e o outorgador generoso e sincero - porque tanto era
sincero no bem como no mal - de duas cartas constitucionais,
consagrando em suma por parte do direito divino todas as
conquistas polticas, isto , todas as liberdades da
Revoluo.
pena que a boa inteligncia do comeo
no houvesse podido manter-se de lado a lado, entre soberano
e ministro de forma a organizar-se a vida autnoma do pas
sobre os auspcios dessa dupla individualidade, exercendo-se
associada numa mesma orientao e sob uma nica inspirao,
de fato constituindo uma s ao.
Jos Bonifcio dissera ao pronunciar o
elogio da Rainha Dona Maria I - e cito mais de uma vez esta
orao acadmica porque foi escrita na virilidade, mas
quando ainda no pesavam sobre seus ombros, nem coisa alguma
indicava que dentro em pouco pesariam, as responsabilidades
do poder - estar "capacitado de que os grandes projetos
devem ser concebidos e executados por um s homem, e
examinados por muitos; de outro modo desvairam as opinies,
nascem disputas e rivalidades, e vem a faltar aquele centro
comum de fora e de unidade, que to necessrio em tudo, e
mormente em objetivos de suma importncia".
Um s homem para conceber e executar,
entendia ele. Mas no conhecera a mitologia greco-romana um
deus de duas caras dessemelhantes, e no encerrava o panteo
budista uma deusa de cem braos independentes? Por que se
no verificaria politicamente uma anormalidade anatmica que
no fosse um embarao existncia fisiolgica? Porque se
no combinariam na personalidade a diretriz e o crebro
amadurecido do homem de estudo e o brao juvenil do homem de
impulsos e de entusiasmos? A fuso seria perfeita - nada a
contrariava - de um pensamento reflexivo e de uma vontade
espontnea. A unidade moral at se acomodava com a dualidade
fsica.
O encarregado de Negcios da Frana, um
observador arguto, malgrado os seus preconceitos
reacionrios, julgava o estadista mais de molde a concordar
com o Prncipe do que a gui-lo com circunspeco; mas a
verdade que se Dom Pedro se esqueceu inteiramente de que
era herdeiro de um Reino Unido, foi porque a seu lado havia
quem lhe mostrasse a cada passo as vantagens de ser
imperador.
fato que se Dom Pedro foi por vezes
imprudente melhor dito impaciente, numa ocasio alis em que
as delongas eram contra-indicadas, por seu lado Jos
Bonifcio no pecava pelos hbitos de procrastinao. A
ambos se pode atribuir a origem de vrios instantes
sediciosos dessa srie agitada de dias que precedeu e seguiu
de perto a Independncia.
A reflexo velha e quase banal - mas as
banalidades no so mais do que verdades repetidas - de que
nas crises nacionais, e em quaisquer momentos de apuro, aos
governantes cabe dirigirem o movimento, sob pena de serem
levados na enxurrada dos acontecimentos. Faz-se, contudo,
mister que a direo se no descubra muito, para no
provocar os cimes ou ofender as veleidades de rebeldia dos
que disfaradamente se pretende tutelar ou pelo menos
encaminhar.
Dom Pedro e Jos Bonifcio aplicaram a
mxima com a restrio, e deram-se bem com ambas. Uma vez
realizada a separao, a saber, proclamados rotos os laos
de dependncia entre as Cortes de Lisboa e as provncias do
Brasil, ficava por fazer alguma coisa de essencial que era
ajeitar no novo molde esse imenso corpo amorfo e de uma
plasticidade desigual, que tanto podia vir a ser uma
monarquia centralizada como uma repblica federativa - uma
confederao neste caso de escassa durao.
O governo constitudo no abriu mo do
leme, para no naufragar em algum escolho, mas aparentou
deixar o navio flutuar merc das ondas. Foram os
republicanos, os adeptos das doutrinas democrticas pelo
menos, que inventaram de fato o Imprio. Foi Ledo quem
redigiu, fez imprimir e afixou a proclamao de 21 de
setembro, sugerindo a aclamao. Foi Jos Clemente Pereira
quem expediu, em nome da sua Cmara, emissrios s outras
municipalidades para aderirem idia que, adotada na
penumbra de uma loja manica qual pertencia Dom Pedro,
trazia em si uma satisfao vibrante do amor-prprio
nacional e a promessa de demonstraes positivas da
munificncia imperial.
O prncipe relutou, para salvar as
aparncias. Jos Bonifcio fingiu desinteressar-se da forma
e s fazer questo do fundo, mergulhando na passividade para
permitir a atividade aos agitadores profissionais: estes
marcharam para a frente e a procisso acompanhou-os.
Todos, alis, acharam no cortejo o seu
lugar: s o corpo diplomtico estrangeiro, de que tinham
permanecido uns restos na debandada da corte de Dom Joo VI,
com atribuies antes consulares, ficou desnorteado, sem bem
saber que atitude lhe cumpria, ou melhor, sem ousar definir
precisamente sua atitude. Naturalmente refugiaram-se,
aqueles dentre o corpo que revestiam carter diplomtico, na
absteno, que um recurso sempre aberto aos agentes
internacionais.
O encarregado de Negcios da ustria, um
Baro Mareschal, que era muito inteligente e cuja situao
mais delicada se fazia e mais perplexo o tornava pelo fato
de ser a nova imperatriz uma arquiduquesa da linhagem dos
Habsburgos, inventou uma dessas doenas que se denominam
diplomticas - antonomsia de fingidas - para desculpar-se
de no ir ao Pao no dia 12 de outubro - aniversrio de Dom
Pedro e ao mesmo tempo data escolhida para a aclamao
imperial - e rogar ao seu colega de Frana, de, na sua
qualidade de primus inter pares, apresentar por ele
as desculpas e as congratulaes.
O de Frana, que no pecava por tolo,
respondeu-lhe muito francamente que no compareceria na
corte fluminense, por motivo das alteraes a sobrevindas,
sem novas instrues do seu governo, e que, portanto,
reduzido a zero em vez de um, no lhe era lcito por diante
dos olhos "de Suas Altezas" o "triste" boletim de sade do
amigo. Os consules de Inglaterra e da Rssia- que ainda eram
Chamberlam e Langsdorff -, despidos como andavam de carter
diplomtico, no tinham igual motivo para dvidas e
subterfgios, e no pensaram sequer em ausentar-se.
Uma prova, entretanto, indiscutvel de
que Jos Bonifcio no abandonara de fato o timo aos
representantes municipais ou populares, est em que ps
embargos a uma manifestao poltica que se projetava
simultnea com o oferecimento da Coroa, e que consistia em
obter do soberano - impor-lhe seria mais exatamente o termo
- a sua prvia sano da Constituio que viesse a ser
elaborada pela assemblia legislativa adrede convocada.
Teles da Silva, o futuro Marqus de
Resende, foi quem deu parte a Maler do desgnio, que era o
de Jos Clemente e seus amigos e do furor de Jos Bonifcio
ao ouvir falar em tal. O plano, contudo, no vingou na
reunio pblica do Senado da Cmara a 10 de outubro, da qual
a ata publicada fornece uma noo imperfeita, e por isso se
transmudou em jbilo a clera do ministro, que o agente
francs nessa ocasio descrevia preso de uma grande
exaltao patritica que buscava vazo numa extrema
volubilidade de lngua.
No obstou em todo caso o recuo da
Municipalidade que no teatro, onde o espetculo do palco era
menos interessante e menos dramtico que o da sala, e no
Largo do Rocio, cena dos motins e algazarras, o povo,
desafiando a chuva torrencial que caa, misturasse com seu
brados festivos e sinceros em honra do jovem imperante
freqentes e entusisticos vivas Constituio liberal do
Brasil.
Na verdade, se todos num momento dado
aclamavam e aplaudiam o Imprio, cada qual pretendia que o
imperador fosse a seu jeito. A lua-de-mel foi por isso curta
entre conservadores e demagogos, se que estas designaes
correspondem fielmente, uma aos que professavam pela
autoridade um respeito mais decidido, e outra aos que
antepunham s regalias soberanas o fervor pelas franquias
populares, nas suas iluses apelidando o Imperador o
primeiro democrata do Imprio e apontando-o, muito
erradamente decerto, como prestes a converter-se, se tal
fosse a vontade geral, num simples cidado da Repblica
Brasileira.
Merc dessa ironia to comum na histria,
as circunstncias levaram o ministro conservador de 1822 a
afetar em 1823 modos de demagogo, sendo envolto nos sucessos
que assinalaram a dissoluo violenta da Constituinte - ele
que pessoalmente tinha o orgulho no s das tradies
intelectuais de ascendentes prximos, mas tambm da
fidalguia da sua linhagem, que entroncava em casas nobres do
Reino; e cujas inclinaes iam para uma Constituio pautada
pela Carta francesa, na qual se alentasse o poder sem se
sacrificarem as liberdades.
No seu esprito mesmo travavam luta, para
se ajustarem numa frmula estereotipada a Benjamin Constant,
a jurisprudncia severa do antigo desembargador da Relao
do Porto, educado na tradio coimbr e o filosofismo do
discpulo das reformas de Konigsberg, o estudioso do
criticismo racionalista de Kant, do idealismo transcendental
de Fichte e do metafisismo agudo de Schelling.
Aquela aspirao de conciliao poltica
continuou de p depois dele, e no seu menor ttulo
nossa considerao o haver no momento necessrio refreado a
desordem nas ruas, assim como oportunamente contivera a
desordem nos espritos, quando esta ltima podia ter
acarretado, e acarretaria fatalmente, a decomposio desta
nossa nacionalidade que no lograria, fragmentada, cumprir o
destino que lhe anda certamente reservado, de que Jos
Bonifcio expressou a confiana em versos que se acham
recordados em bronze no pedestal do monumento, no Rio, do
descobridor do Brasil, e a que o nosso eminente
representante na Conferncia da Haia, o Sr. Rui Barbosa,
comeou a emprestar realidade perante todo o mundo
civilizado, nas suas admirveis oraes e propostas, vazadas
nas formas de bronze do Direito e da Justia.