Benguela
by Adriano Parreira
in "Historia" (XII, No. 128, May 1990, pp. 65-68)
Em carta datada de 11 de Marco de 1612, e assinada em
Madrid, Manuel Cerveira Pereira, conquistador portugues, elaborou
uma lista pormenorizada do que achava indispensavel para que o
projecto de conquista da regiao de Benguela se realizasse com
sucesso. Pediu entao 300 soldados, 100 mosquetes, <<boa amunicao
de Biscaia>>, artigos de farmacia, doze habitos de ordens
militares, quatro foros de fidalgos etc... Sublinhou ainda a
importancia do pagamento regular das soldas o que, nas suas
proprias palavras, serviria de estimulo <<para os animar
mais>>(1).
Cerveira Pereira estava invadido por um grande optimismo e
pela certeza de levar a bom termo a conquista da regiao a sul da
Kisama, afirmando que os 20000 cruzados, em que foi avaliado o
custo da expedicao, seriam perfeitamente compensados no futuro
imediato. A sua ambicao levou-o a visar objectivos bem mais
longinquos do que a "simples" conquista da regiao: a travessia de
Africa e a conquista do pais do Monomotapa e as suas minas do
ouro, projecto que o antecipava em quatro anos a Luis
Vasconcelos, e em cerca de dois seculos e meio ao que se chamou
<<mapa cor-de-rosa>>.
Cerveira Pereira parece ter merecido a simpatia do rei de
Espanha, que o nomeou, a 10 de Dezembro de 1614, <<capitao-mor e
conquistador do Reino de Benguela>>, apesar de se reconhecer que
a missao <<era muito dificultosa de efectuar-se e sustentar-
se>>(2). O facto de ser considerado um dos mais experimentados
oficiais Portugueses nas campanhas militares no Ndongo, e ter
exercido, entre 1603 e 1606, o cargo de governador Portugues de
Luanda, pesou certamente na sua nomeacao.
A expedicao militar para o sul do rio Kwanza nao foi porem
imediata. Em 1615, uma inesperada nomeacao para governador fe-lo
adiar a partida, que seria de novo retardada desta vez por falta
de cavalos. A partida deu-se finalmente a 1 de Abril de 1617,
levando consigo 130 soldados e nao os 300 que inicialmente
pretendia levar(3), facto que se ficou a dever as constantes
desercoes dos seus homens que se refugiavam na Funda(4), e se
recusavam a acompanhar o conquistador, chegando a opor-se
violentamente ao recrutamento coercivo(5).
Os Europeus, que desembarcaram na Baia da Torre a 17 de Maio
de 1617, quarenta e seis dias depois de sairem de Luanda(6),
estavam de tal forma confiantes na suposta superioridade do seu
armamento que nao hesitaram entrar peol sertao a procura das tao
desejadas minas de cobre(7). Para obterem os alimentos
praticaram sistematicamente o roubo de gado, no que eram ajudados
pelos seus aliados "Jaga". Aos Mukimbe, pastores da regiao, so
num assalto roubaram <<mais de 4000 vacas e carneiros>>(8).
Entre os "Jaga" seus aliados, Pereira contou nos primeiros meses
com a ajuda do soba Kalunda, que se tinha apresentado como o
legitimo senhor das minas de cobre, prometendo a sua exploracao
aos Europeus, desde que estes o ajudassem a recuperar as terras
que, segundo Kalunda, tinham sido invadidas por um usurpador.
A alianca entre Kalunda e os Portugueses parece ter durado
muito pouco tempo, defrontando-se pouco depois os seus exercitos
em confrontacao aberta. A batalha que se seguiu fou talvez a
unica grande confrontacao de que Cerveira Pereira saiu vencedor,
mandando saquear 150 vacas e <<abrazar todas as suas povoacoes, e
destruir sementeiras, destruir palmares, que tudo ficou
assolado>>(9).
Numa outra ocasiao, em batalha travada contra o soba
Peringue, o exercito europeu cativou 40 homens e apoderou-se de
40 cabecas de gado, pegando a seguir fogo a uma povoacao.
Curiosamente, o soba Peringue e o soba Kitumbela foram seus
aliados num segundo assalto aos Mukimbe, no dia 28 de Maio de
1618, em que o exercito de Cerveira Pereira capturou 1000 cabecas
de gado bovino <<e outras tantas de ovelhas e carneiros>>. Nessa
ocasiao mataram um pastor e cativaram <<tres velhas que nao
poderam correr>>(10).
Numa carta datada de 15 de Junho de 1618, Cerveira Pereira
alude as <<grandes prezas>> de gado, <<alem do muito marfim>>,
que obrinham como resultado das guerras(11). As prezas de guerra
eram tantas que o conquistador informava que depois da sua
chegada ja tinham seguido dois navios para Luanda, um com
escravos e outro com gado, e que mais nao seguia por falta de
embarcacao. Apontou na circunstancia para as potencialidades da
regiao, para a sua grande riqueza em cana-de-acucar e algodao,
que cresciam espontaneamente, e para a prodigiosa fertilidade dos
solos, sublinhando o possivel papel que Benguela poderia
desempenhar no trafico transatlantico de escravos e no
fornecimento de minerio de cobre, metal que rareava em Castela e
em Portugal, e que os estados ibericos tao insistentemente
procuravam(12).
Um ano e meio apos a sua chegada, o optimismo comecou a
desvanecer-se dos horizontes do conquistador. O balanco da
situacao apontava para uma realidade nada animadora: dos 130
soldados que trouxera para Benquela, <<alguns>> tinham desertado,
38 tinham falecido, entre os quais um irmao, um cunhado e um
sobrinho seus. O proprio Cerveira Pereira escreveu mais tarde
que lhe restavam apenas 90 homens e 80 <<negros de guerra>>(13).
O endurecimento dos combates pode eventualmente explicar,
pelo menos em parte, os constantes motins e desercoes continuavam
e que tinha havido diversos levantamentos contro ele. Um desses
levantamentos provocou a fuga de 70 soldados, que depois furtaram
um pataxo e navegaram rumo a Luanda. Diz ainda que tinha sido
vitima de uma tentativa de assassinio por parte de um espanhol a
quem estretanto perdoara <<porque se houvera de castigar todos os
culpados ficava so>>!(14). Lamentou-se tambem que um "Jaga" seu
antigo aliado subvertera os soldados Africanos incorporados no
seu exercito, deixando-o isolado, e que aos seus apelos de
alianca respondia <<que os brancos eram mulheres em terra e que
so no mar eram homens>>(15). O "Jaga" foi ainda acusado de
saquear os Europeus e de lhes queimar as sementeiras(16).
Em Benguela, assim como no Ndongo, a solidariedade das
diversas autoridades Africanas para com os Europeus parece ter
sido determinada pela forca das circunstancias, nunca implicando
comprometimentos definitivos. Os convenios entre Africanos e
Europeus reflectiam necessidades pontuais, assentes em bases
utilitaristas e pragmeticas, sendo por isso instaveis, nao
permitindo a cristalizacao de qualquer compromisso duradoiro.
A dificil situacao em que os Europeus se encontravam
provocou a seguir <<muitos levantamentos>> e <<traicoes>> da
parte dos seus soldados, o que levou Cerveira Pereira a desistir
da conquista e a pedir autorizacao para regressar a Portugal
justificando a sua avancada idade, a quase cegueira e o estado
<<muito fraco e debilitado da doenca>>. Antes de ter recebido
reposta, e depois de escapar a mais uma tentativa de homicidio
por envenenamento, na manha de 12 de Janeiro de 1619, seis dos
seus doldados, um <<mourisco>>, um Judeu, um degredado de Luanda,
um Portugues, <<homem facinoro>>, um padre Franciscano e um
clerigo <<preto da terra>>, atentaram mais uma vez contra a vida
de Cerveira Pereira. Depois de o apunhalarem friamente,
apropriaram-se dos seus bens, confiscando-lhe <<ouro, prata,
escravos soltos de guerra, escravas soltas, grande copia de
muitas fazendas de resgates e noventa pecas ... que tudo passava
de trinta e dois mil cruzados>>(17).
A primeira "conquista" de Benguela acabou tragicamente na
noite de 15 de Janeiro de 1619, terca-feira. Cerveira Pereira
foi expulso de Benguela e posto a deriva <<em um batel ... com
um mastro quebrado e uma vela rota, ... sem mantimento, ... sem
cama e sem vestidos mais do que tinha quando ... o
prenderam>>(18). Doente, praticamente cego de uma vista e na
miseria, Cerveira Pereira chegou a Luanda, arrastado pela
corrente, no dia 20 de Janeiro de 1619.
Referencias
1) AHU 1-20
2) AHU 3-28
3) Delgado, R. II, 43
4) Cadornega I, 63
5) Arquivos de Angola, vol. XVII, no. 67-70, 2 serie, 202;
Cadornega I, 64
6) AHU 1-7, Delgado, J.M. in Cadornega I, 64 nt. 1
7) Benguela e seu Sertao, 9-10
8) ibid, 12
9) ibid, ibid
10) AHU 1-87
11) ibid, 9
12) AHU 1-96; AHU Codice 31, fls 5861
13) AHU 1-87
14) ibid
15) ibid
16) AHU 1-103
17) ibid
18) ibid
Bibliografia
AHU=Manuscrito do Arquivo Historico Ultramarino. Quando nao
se trata de um codice, o primerio numero refere-se a Caixa em que
o documento propriamente dito.
Arquivo de Angola, vol. XVII, no. 67-70, 2 serie, 202.
Luanda: Museu de Angola, 1960.
Benguela e seu Sertao. Anonimo editado por Luciano Cardoso.
Lisboa, 1881.
Cadornega, A.O. Historia Geral das Guerras Angolanas.
Vols. I-III. Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1972
Delgado, J.M. in Cadornega, A.O., 1972.
Delgado, R. Historia de Angola. Vols. I-IV. Luanda: Banco
de Angola.
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