Edmundo Pedro
Dirigente histórico do
PS
Nasceu em Samouco, concelho de Alcochete, a 8 de Novembro de
1918
Operário no Arsenal até ser preso no Tarrafal, correspondente de
línguas estrangeiras, deputado do PS durante 11 anos e administrador de
empresas
Em Memórias - Um Combate pela
Liberdade, que a Editora Âncora vai lançar em Novembro, Edmundo Pedro
descreve a mais rocambolesca tentativa de fuga do Tarrafal, esse "campo da
morte lenta" aberto pelo regime fascista faz hoje 70 anos. À margem da
organização prisional do PCP, Edmundo Pedro, Gabriel Pedro (seu pai), Augusto
Macedo, Tomás Rato e Nascimento Gomes planearam uma fuga quase ignorada na
bibliografia tarrafalista.
Como surgiu a ideia de fugir da ilha?
A fuga foi decidida à revelia da organização prisional do PCP (a
que pertencia), porque a estrutura reservava o direito de escolher quem devia
fugir. Durante muitos anos, acatei a orientação, mas, às tantas, convenci-me
que eles não fugiam nem deixavam fugir. E a disciplina partidária era um
obstáculo mais forte que o arame farpado.
Qual era o plano?
Aproveitava-se haver um barco de cabotagem que passava pela ilha
[Santiago, em Cabo Verde] uma vez por mês. Tínhamos quatro horas até darem
pela saída para chegar ao barco, tomar conta dele e rumar em direcção ao
continente africano. Só por grande azar é que não conseguimos. Falhou por uma
coisa estúpida.
Mas como iludiram a vigilância?
O
controlo da saída era feito num quadro onde o guarda punha um traço a giz por
cada preso que saía. Do campo só saiam os "rachados" [arrependidos], que
andavam à vontade cá fora e regressavam à noite; ou os que tinham um pretexto.
Eu e o Macedo saímos com uma bateria para ir carregar na central eléctrica; o
Rato e o Nascimento para ir rachar lenha na messe dos guardas. Decidíramos
sair uns minutos antes da rendição, porque o guarda que entrava já não sabia
se o traço correspondia a um "rachado" ou a um preso que tinha acabado de
sair. O mais difícil era o meu pai, porque não tinha pretexto. A fuga só
prosseguiria se conseguisse deixar o campo sem ser notado. Ele andava a
descarregar a água - transportada desde a fonte até ao campo em quatro bidões
de 200 litros -, foi empurrando a vagoneta até à porta e conseguiu passar
encostado aos bidões do lado contrário ao guarda - e nós a ver.
Que
falhou?
O Rato e o Nascimento foram passar junto do sítio onde
estavam os "rachados", em vez de fazerem o contrário, que era dar a volta ao
campo e dirigir-se ao monte, situado a quatro quilómetros, onde nos
encontraríamos todos. Os "rachados" denunciaram-nos. Nós os três, que já
estávamos no alto do monte, a certa altura começámos a ver os capacetes
brancos dos guardas a correr atrás de duas pessoas. Eles encaminharam-se para
o centro da ilha, procurando desviar as atenções. O meu pai, que passara pela
praia, tinha visto um barco de pescadores abandonado. Corremos nessa direcção
e, quando chegámos à praia, estavam lá dois barcos e três cabo-verdianos.
Ameaçámo-los com uma pistola de imitação que eu tinha feito e um raspador
[lima afiada] que parecia um punhal. Tentámos comprar o barco com o dinheiro
que conseguíramos arranjar, mas eles não quiseram, pois viram que éramos
prisioneiros fugidos. Tomámos o barco à força, levando os remos do outro
também, com a ideia de chegarmos ao porto, a cinco quilómetros, e tomar conta
do palhabote, um barco a vela e a motor.
Os pescadores ficaram
quietos?
Assim que se viram livres de nós, correram até ao campo
para nos denunciar e terão encontrado os guardas que perseguiam os camaradas.
Então, eles deixaram os outros fugitivos (um só foi apanhado quatro dias
depois e o outro dez dias após a fuga) e correram para a praia. Quando lá
chegaram, gritaram, dispararam vários tiros, mas nós continuámos a remar.
Estávamos convencidos que não havia outro barco capaz de nos perseguir, mas,
infelizmente, havia. O barco que nos perseguia era cada vez maior e o meu pai
estava completamente esgotado. Até que não tivemos outra solução que não fosse
ir para terra. Só que ali não havia praia, o barco foi contra as rochas e
desfez-se em mil bocados. Caminhámos ao longo de um carreiro que havia no
planalto e, a certa altura, eles pararam, mas eu não aceitava render-me. Andei
mais uns 400 metros até encontrar um gruta baixa e profunda. Vim ter com eles
para lhes propor que nos escondêssemos até à noite.
O esconderijo
não seria seguro?
Tínhamos fugido às dez da manhã, a contagem era
feita às duas da tarde e, naquele momento, devia ser meio-dia. Ficámos à
espera. Passaram as três, as quatro, as cinco horas e já considerávamos que,
chegada a noite, podíamos sair dali. Ao fim da tarde, começámos a ouvir um
barulho ao fundo do vale e, às tantas, apareceu um exército de maltrapilhos,
porque tinham posto a nossa cabeça a prémio, com uns 30 ou 40 cabo-verdianos,
com pedras e paus, mais dois soldados indígenas com as espingardas
Mauser e os dois guardas prisionais. O primeiro a espreitar foi um
miúdo com uns dez anos. Chamou o dono do barco que tínhamos destruído, um
gigante, que olhou para dentro da gruta e gritou: "cata gajo!"